quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A PALAVRA, A POESIA E O FEMININO DE TUDO: ASSIM SOMOS

 


A PALAVRA, A POESIA E O FEMININO DE TUDO: ASSIM SOMOS


 Por Margarida Montejano


Mar.. mar.. maravilhoso artigo da divina Elizabete Nascimento, publicado neste Feminário, que brota após a experiência das belas mesas enluaradas!

Um mar de palavras, sentidos e conexões! Um mar que guarda as águas calmas,  bravias e serenas das mulheres do nosso tempo, revestidas de tantos outros tempos.

Pensei no femino-masculino que Bete descreve!

Pensei na força da Deusa Selene! Nos movimentos que provoca no mar. Na palavra mar.

Ilustração Deusa Selene de Daniel Firmino - danielbrafir@gmail.com - para a Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Sarasvati Editora, 2021)

Pensei no mar de Neruda e na sua mãe Rosa Basoalto! Pensei na peneira que carregava água, de Manoel de Barros e, em Alice Pompeu, sua mãe. Voltei a  ler o artigo “O abismo sublime das enluaradas: a poética do abraço” no Feminário Conexões, e  novamente pensei em Neruda. Mergulhei no seu mar. No mar de palavras  e nas ondas da escrita reordenei as ideias e refleti sobre  as mulheres e homens que se arvoram a escrever. Pensei nas mães, avós e nas tantas antepassadas que nos constituíram e nos constituem. Pensei no que somos.

Lembrei-me, madrugada adentro, de Carlos Drummond de Andrade, de Gabriel Garcia Marques, Chico Buarque, Paulo Freire, de Adelias, Cecílias, Rutes, Martas, Patrícias e as tantas Marias que somos.  Pensei em suas mães, em nossas mães, avós, irmãs,  filhas,  tias, primas e amigas!

Que constatação me bateu, poetas?

Que neste mar de linguagens e poesia que culmina no universo femino-masculino, há sempre uma mulher. Uma grande mulher! Ah! Não fosse essa inspiração…! Essa parte feminina tão presente neles e em nós!

Eis aí a experiência da vida em Gaia nos provando que a mãe é mulher. Que a palavra é mulher! Que a vida e a gestação de tudo  é mulher.

Ilustração Deusa Gaia de Daniel Firmino - danielbrafir@gmail.com - para a Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Sarasvati Editora, 2021)

Meio dormindo-acordada, pensei no infinito amor, que faz germinar, nascer, crescer  e que, constitui a beleza de tudo o que há debaixo do céu, no fundo das águas e acima da terra. No  feminino em canção!

Daí a beleza das coisas. Daí a poesia da vida, me provam as Enluaradas!

Somos, pois, reflexos da Grande Senhora que passeia nas Brumas… Somos, na festa da natureza, a fertilidade do solo, as mulheres que correm com lobos. Que uivam e se transformam em defesa da cria e da criação de si. A feitiçaria da poesia que brota de nosso ser!

Somos a natureza divina e, em essência, somos a nossa ancestralidade.

Nas coletâneas Enluaradas e no mar de poesias desse coletivo feminino me vi no 1º FLENLUA… Me encontrei nua, banhando nestas águas que me mostram, como diz Elizabete em seu artigo recheado de beleza, que sou una e múltipla.  Assim, as águas deste mar de escritas e de vida  fazem com que eu me sinta mulher valorosa, empoderada da palavra e da possibilidade de senti-la, de escrevê-la e de dizê-la. Livre! Fazem com que eu assim,  “seja”!

Mas… só “sou” com vocês. Assim somos neste coletivo constituído de outras mulheres Enluaradas de hoje, de ontem e do amanhã.

*_*    *_*    *_*

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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

PROTAGONISMO FEMININO EM FOCO: TAIASMIN OHNMACHT

       

 
PROTAGONISMO|02


MEMÓRIA E ANCESTRALIDADE EM "VOZES DE RETRATOS ÍNTIMOS, 
DE TAIASMIN OHNMACHT

     POR HELIENE ROSA

    

            Natural de Porto Alegre, a escritora e poeta Taiasmin Ohnmacht tem se dedicado à atividade literária como forma de produzir rupturas em um sistema editorial, cuja tendência predominante vem sendo adotar e promover narrativas únicas. Sua escrita incisiva desestabiliza esse tipo de estratégia de legitimação e de sacralização dos privilégios da branquitude no cenário da literatura contemporânea brasileira.

        Além de sua inserção na literatura, Ohnmacht é psicóloga e psicanalista, possui mestrado em Psicanálise, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eu a conheci exercitando os seus amplos conhecimentos acerca da teoria literária, durante a realização de um curso de curta duração sobre poesia negra. O diálogo estabelecido com a psicanálise foi o chamariz para esse estudo, oferecido por ela, com desenvoltura e maestria, no site da Com verso: Psicanálise e Poesia.

             Determinada a trabalhar pelo resgate da capacidade de conviver com a diferença e a contradição, a escritora atua também na área clínica e, embora reconheça que a psicanálise possa inspirar a atividade escrita, ela afirma manter, de forma deliberada, uma distância considerável entre sua prática clínica e a produção de narrativas literárias.

             No contexto de sua poética questionadora, a voz lírica interpela: “Quem tem medo da folha branca? Da face branca, dos olhos claros que procuram selar destinos?” Diante dessa interrogação, ela mesma responde, provocativa:


Eu tenho medo da folha branca da História

 Lavada em sangue de tantos povos

O alvejante é corrosivo e faz mal à pele

 Foi inventado na Europa.


        Nessa perspectiva, em seu primeiro romance, Vozes de Retratos Íntimos (2021), recentemente lançado pela Editora Taverna, a autora enriquece a história amefricana com alguns relatos familiares. Ao resgatar a memória de sua ancestralidade, Ohnmacht celebra suas origens afro-indígenas e europeias, promovendo reflexões essenciais a respeito das identidades, no contexto da pós-colonialidade.

            Diante disso, a própria autora afirma: “Escrevi Vozes de Retratos Íntimos inspirada em histórias contadas na minha família, mas nem todos os personagens são históricos, contudo, o personagem João realmente existiu”. E o romance corrobora: “Mas por décadas o que sobrou da memória de João para a família foi a figura de um homem idealista e irresponsável, [...] Daqui de onde olho, quase um século depois, parece que todos pagaram um preço muito alto por suas escolhas...” (p. 45, 46). Não sem razão, despertara admiração: “Sim, inteligente, bonito, idealista. Um herói! Assim que o conheceu, Benedita só viu qualidades.” (p.45). Inspiração e criatividade para tecer entremeando uma colcha de poucos retalhos.

        A figura enigmática do avô levou Taiasmin Ohnmacht a desejar conhecer melhor o passado de sua família. O resultado dessas buscas foi determinante para a concretização do projeto literário da autora, que relatou a mim:


A semente do livro foi plantada quando eu redescobri a existência dele para além das esparsas falas familiares. A curiosidade em saber mais sobre ele veio por uma necessidade de resgate de meus antepassados negros e embora temporalmente ele não seja um parente tão distante de mim, eu não o conheci; tampouco a narrativa familiar me ajudou nessa busca. Meu avô era aquariano e talvez fosse preciso esperar a existência de uma tecnologia que resgatasse o passado para reencontrar alguns traços dele. Foi através de pesquisas na internet que tive contato com textos que registram uma época de sua passagem pelo mundo, fase de muitas lutas políticas, de entrega da própria vida a uma causa justa. Não sem consequências: a pobreza e a prisão.

 

            Ao tatear as marcas deixadas pelo avô, a autora construiu esse conjunto de narrativas que remetem ao passado familiar e se conjugam não apenas entre si, mas também a outras histórias de pessoas e fatos e lugares, todas, de alguma forma, conectadas em tempos e espaços que compõem uma história maior. Em primeira mão, a autora nos revela:


Em um dos desvios de minha trajetória trabalhei no sistema penitenciário, sabe-se lá se algo em mim pensou em encontrar alguma pista do vô João naquelas grades. Trabalhar no cárcere é doloroso para quem espera por Justiça e acredita nos Direitos Humanos. Bem melhor foi encontrar João Adderley nas páginas da história.


        Consciente da grande responsabilidade herdada dos griôs, Taiasmin Ohnmacht reconhece: “Assim, a narrativa foi se transformando da história de um homem para a história de muitos. Muitos mais do que somente os meus e isso me autorizou a contá-la”. Sua obra se contrapõe à uma tendência massiva, contra a qual nos alerta a escritora nigeriana Chimamanda Adichie: o perigo de uma história única.

            Assim, são essas vozes plurais que encontram guarida em narrativas como o romance e os contos da escritora porto-alegrense que se somam para fazer frente a essa importante missão de contar as histórias secularmente silenciadas. Por outro lado, revelar ao leitor essa multiplicidade de olhares, de visões e de experiências que permite ampliar a compreensão dos fatos sobre nós mesmos e sobre o nosso país.

            Recebemos o primeiro romance de Taiasmin com a certeza de que a literatura é também o lugar da desconstrução de estereótipos limitantes a respeito do nosso povo brasileiro. A constituição múltipla e plural de nossa sociedade faz com que a diversidade deva ser celebrada como valor e isso pode contribuir com a minimização dos preconceitos que interferem de forma negativa nas interações sociais, não apenas no âmbito familiar. Compreender as trajetórias das famílias, nesse cenário, torna-se fundamental para a compreensão dos fenômenos que permeiam a nossa história de nação. Como já disse, na linda canção Tocando em frente, o poeta violeiro Almir Sater: “Cada um de nós compõe a sua história”.

           Nesse sentido, percebemos que as vozes ancestrais ecoam fortemente nessa narrativa intrigante e complexa, em que o deslugar já era determinante de subjetividades, desde antes da travessia do Atlântico. Há também relatos que refazem a trajetória do bisavô para o Brasil, sugerem esse sentimento de inadequação por parte do bisavô que vivia na Suíça: “Alvo das chacotas de crianças e de jovens de sua idade, pela estatura baixa e por seu sobrenome, Carlos Ohnmacht precisou se impor pela força desde muito novo...” (p.25), e a narradora reitera: “Veio para o Brasil sozinho, fugindo de sua própria ira, uma história que para a família não existe, mas que meu pai não deixou de me contar”. (p. 24). Não vou dar o “spoiler”, no que diz respeito à vinda de Carlos Onhmacht para o Brasil, antes recomendo a leitura do livro.

                No cenário desse romance, desenrolam-se as cenas revisitadas e ficcionalizadas, em que escritora completa os quadros escuros da memória e supre lacunas dos poucos retratos dos quais ela extrai cativantes narrativas. Na obra, lemos: “... não se conta uma história sem algum grau de profanação...” (Ohnmacht, 2021, p.13), mirando-se no espelho de Oxum. Nesse universo de resgate histórico e de ficção criativa desfilam figuras que bem poderiam povoar os livros de uma verdadeira História do Brasil. Uma História que tivesse sido contada originalmente por quem vivenciou os acontecimentos e fatos.

            Em seu trabalho de mineração para a construção narrativa, as variadas tramas se erguem majestosas refazendo o caminho histórico da família que, em alguma medida, se confunde e se mescla à história da sociedade brasileira. Essa mesma história que vem sendo sistematicamente negada e silenciada, ao longo dos séculos, pelos discursos da branquitude. Esse encontro permite aos leitores e leitoras compreender que há uma multiplicidade de vozes no tecido social, cultural e histórico e que todas merecem ser conhecidas.

            Em meio às lutas ferrenhas pela sobrevivência nos espaços urbanos hostis, a avó Benedita é apresentada:


 Minha avó também construiu a própria casa, sozinha, estilo fugindo da favela. Era muito econômica e seu maior orgulho era ter conseguido comprar um terreno regularizado e abandonar o quarto de despejo. Entre comprar o terreno e construir sua casa, levou um tempo de idas e vindas entre a favela e o bairro na zona leste de São Paulo, carregando material como podia. Seus vizinhos a chamavam de preta metida (OHNMACHT, 2021, p.31).


            A autora ressalta a figura altiva da avó com a qual manteve pouco contato e reitera; “A morte insiste em pontuar sua vida, zombando de seu nome de batismo – Benedita. (2021, p.31). A luta e a vitória de uma mulher negra e pobre para garantir moradia na selva de concreto não é reconhecida como conquista pelos vizinhos. Do contrário, o racismo fez com que ela fosse vista e tratada como intrusa, naquele espaço.

        A avó Benedita não pode conhecer a mãe, que morreu no parto. Mulher indígena raptada de sua aldeia durante um ataque:


Então Sebastião a viu. Estava assustada e se escondendo ao lado de uma construção de pau a pique, já nas imediações da mata. Mas um pouco e teria conseguido fugir, mas para onde? Era bastante jovem e linda. Sem pensar muito, Sebastião a pegou pelo braço e a levou consigo. Ninguém questionou, não era algo incomum. Quando faziam expedições ao interior, costumava acontecer de alguém voltar com uma índia na garupa. (OHNMACHT, 2021, p.41)


            E assim, a narrativa vai confirmando o suplício das mulheres ao longo dos processos de formação do que se concebe hoje como a sociedade brasileira. Mulheres negras, indígenas e pobres massacradas, estigmatizadas e silenciadas, mas que não se abalam, não desistem e não se calam diante das injustiças.

            A escrita das mulheres tem esse poder revolucionário de reposicionar os fatos e os lugares sociais. São escritos que apresentam a vantagem de trazer para a cena literária vozes e tramas silenciadas pelo discurso oficial que elegeu o cânone como referência de valor e de prestígio na literatura.

            Que o protagonismo dessas mulheres intelectuais negras brasileiras seja inspiração para muitas outras mulheres e que possamos usar a palavra escrita como instrumento de superação do silenciamento dessas vozes e das injustiças cristalizadas em nossa sociedade. Só assim, a hipocrisia, o machismo e o preconceito serão combatidos com veemência. Eu parabenizo a escritora Taiasmin Ohnmacht e espero que seu protagonismo seja contagiante para as leitoras do nosso blog Feminário Conexões.



segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O ABISMO SUBLIME DAS ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 



O ABISMO SUBLIME DAS ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO


 Por Elizabete Nascimento


A trajetória de vida de cada autora desta coletânea nos interessa, nos faz crescer, nos fortalece, porque toda voz que paramos a escutar se mistura a tantas outras e nos faz mergulhar, de forma particular e especial, no profundo rio da Consciência Feminina, numa conexão que vai além do humano, alcança esferas divinas outras, nos abraça, nos comove e nos enche de inspiração e paixão pela vida.

              {Marta Cortezão}

 

Pretendo apenas esboçar um desenho do movimento literário das Enluaradas, uma colcha de retalhos/mosaico, figuração das faces desdobráveis da figura feminina contida na obra Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021), conduzida pela observação de que as letras podem alçar voos, regar os jardins das humanidades e, quem sabe impulsionar a escrita da mulher, de modo a plantar utopias e destilar sonhos. A coletânea conta com a participação de mulheres que residem em diversos países, como destacado no prefácio da obra, trata-se de: “[...] um movimento histórico de resistência feminina que surge das/nas margens do cânone, cuja prioridade é contribuir para a consolidação da mulher no espaço literário, divulgando a literaturas de autoras da contemporaneidade”. (CORTEZÃO, 2021, p. 08-09).

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A seguinte frase de um vídeo no facebook, dita por um homem, instigou-me à reflexão: “temos que ler mulheres porque são boas, tem qualidade, não porque são mulheres”, não pretendo discordar, muito pelo contrário, almejo, quem sabe, apenas levantar alguns questionamentos para que possamos refletir sobre o lugar/espaço da mulher na cena contemporânea: quais são os sentidos de “boas e/ou de qualidade” adotados pelo olhar convencional? Como nós olhamos/sentimos a produção de autoria feminina? Como se deu o percurso histórico/literário da mulher na trajetória da produção escrita, especialmente no âmbito da literatura. E, ao considerar, essas proposições ainda questiono: como podemos, se é que é possível, conceituar “boas” e ou “de qualidade”, sem antes realizar uma leitura criteriosa da produção?, e acrescemos ainda, “por que esconde seu bigode/na lâmina afiada dos julgamentos?” (B. Raquel, 2021, p. 175), se “sei apenas que, de tempos em tempos, me faço rosa/e nutro meus sonhos, de amor ou de vento”. (MARQUEZI, 2021, p. 184) e que “cada portal que se abre a outras dá passagem!” (PINHEIRO, 2021, p. 185).

Os questionamentos supramencionados vêm ao encontro das abordagens das mulheres que participaram do Primeiro Festival Literário de lançamento da Coletânea Enluaradas II/FLENLUA-2021, mulheres que enfatizam o poder inenarrável da poesia e ressaltaram que a mesma as salvaram de momentos de medo, de angústia, de desespero, de alegria, de saudade e de si mesmas porque permite sonhar, caminhar por outros espaços e fazerem-se livres das amarras patriarcalistas.

Pensar a produção de autoria feminina a partir da coletânea consiste em descobrir os sentidos provenientes da arte de enlaçar sorrisos, versos e prosas, a partir da essência de mulheres que versam sobre suas (re)existências e, o melhor, mulheres que contam com a generosidade de umas com as outras, no sentido de serem autoras e leitoras, num círculo que aprofunda/tece, cada vez mais, a efetiva rede da sororidade.

Em As enluaradas, a poesia desprende da pele feminina e a questiona, alfineta e provoca-a a romper com o medo e com a insegurança para entrar no círculo e compor as engrenagens da ciranda poética, como um veículo mágico que permite transitar por vários espaços ao mesmo tempo, ocupar lugares que são e/ou que deveriam ser de tod@s. Ela aponta para o que está oculto/silenciado e/ou abre caminhos que precisam ser descobertos/contemplados. Constata-se que a poesia torna-se parte essencial da vida, com quem é possível confidenciar as dores e as alegrias, estabelecer uma relação amorosa que espalha sementes, pois “ser invisível não basta/preciso penetrar no impenetrável/e de lá fazer o necessário./[...] cega de sentidos/religo os pontos/dessa infantil brincadeira” (TIMM, 2021, p. 130). Aqui nos reportamos ao olhar crianceiro tão trabalhado na produção do poeta mato-grossense Manoel de Barros, ou a ver as coisas sempre como se estivesse contemplando pela primeira vez, como diria Fernando Pessoa.

A luta é, cada vez mais, necessária e urgente, não podemos retroceder, no entanto, ir avante necessita da força de nós por nós mesmas, no sentido de darmos crédito a essas produções, de juntas legitimarem nossas vozes, rasgar o cerco e conquistar espaço. É preciso nos desafiar todos os dias, na busca incessante do que acreditamos e, ao mesmo tempo, muitas vezes, nem sabemos ainda em que acreditamos, porque a vida não vem feita, é constituída de relações, que surgem todos os dias e nos indagam a todo o momento: quem somos? O que desejamos? Assim, vamos sem data marcada, não sendo... mas, por outro, lado; querendo ser. É desse desejo vivo e fecundo, que tiramos a seiva para nos manter em constante busca por superação dos limites que nos impõem para que outras mulheres possam também ir além, acreditar em si mesmas e vencer alguns obstáculos.

Vale compreender que: “[...] Somos o ventre do mundo/[...]Temos o poder que ousamos suspeitar./[...] Somos Mulheres!/A máquina da criação! Criamos tudo.../E ainda poesia para alegrar nossos dias./E quando nos sobra tempo somos apenas mulheres! (CACAU, 2021, p.171). Essas palavras estão encharcadas da intensa, profunda e específica experiência de mulher porque traz a identidade plural da alma feminina no que ela tem de mais sagrado, o poder inenarrável da gestação - “o mistério da criação habita em nós”, é algo inegável, está intrínseco no corpo da mulher - “a magia da vida”, a fina flor que perfuma todos os corpos - somos únicas e plurais. É desse lugar de mulher que falamos, que poetizamos a vida e, penso que raramente, “somos apenas mulheres!”. Com isto sendo dito, não queremos menosprezar a produção de autoria masculina, muito pelo contrário, mas lutar por equidade, conscientes dessa nossa tarefa ética e moral, lembrando de que, como disse Mário Quintana: “quem faz um poema abre uma janela/Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela,/[...] quem faz um poema salva um afogado”. 

Necessitamos do ar que entra pela janela, poetizado por Mário Quintana e, precisamos também, do vazio de Dilercy Adler (2021, p.75) porque a poesia nasce de vazios preenchidos por significações líricas que surpreendem e permitem o vi/ver que há uma mágica fusão do eu com o tu, aberta a um mundo alheio à racionalidade porque faz sonhar, caminha pelo campo da subjetividade: “cheio de ausências/e de lágrimas sentidas”. Ou ainda porque é urgente uma “Polinização por afeto [com a qual] nos meus poros/Quando tu depositas tuas estimas/Germinam-se jardins” (IANCOSKI, 2021, p.123). Portanto, “livrai-nos da crença cega/nenhuma figueira nasce cega” (GERMANO, 2021, p. 170).

Se formos à pesquisa sobre a produção feminina podemos constatar que esta surgiu de um parto bastante moroso e complexo. Ao ouvirmos as autoras da coletânea, o processo de autoria, da maioria dessas mulheres, também foi uma gestação, muitas conviveram com seus escritos por muito tempo antes de vir a publicá-los, ouvindo-as lembrei-me das palavras de Carlos Drummond de Andrade: “não forces o poema a desprender-se do limbo./não colhas no chão o poema que se perdeu./não adules o poema./aceita-o/como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

A coletânea: Enluaradas II, pretende coroar um tempo em que se vive o presente correndo por cima dos trilhos, pelas curvas, pelos declives, pelos abismos e pelos precipícios, como Voyeur das nuances da paisagem porque gosta é da vertigem (DIPP, 2021, p. 142), pois: “Assim, enquanto sou/encontro a mim e ao que me toca/às margens sinuosas deste rio” (BAUMGARTEN, 2021, p. 140). A vida constitui o rio que somos, portanto, “[...] Aquilo que flor, arco-íris/eu serei, nos hiatos, majestade!” (RABELLO, 2021, p. 135). “e pelas chagas das minhas mãos/passam mensagens do futuro” (SAVIO, 2021, p. 132).

A palavra não tem destinatário certo e não pode estar restrita apenas a um emissor, somos plurais e, portanto, também produzimos sentidos plurais sobre o que vemos, lemos, ouvimos e sentimos. Conceitos e afirmações são movediços e precisamos descobrir que: “As estrelas e mariposas/brilham cada uma, do seu jeito/ E eu, poeto a alma da noite/aqui, no lago do meu leito” (MARY, 2021, p.100), pois “viver entre palavras era/[é] a única boia nesse mar de incertezas” (SAVIO, 2021, p. 131). Não somos nós quem degustamos das palavras, são elas quem nos queimam a pele:

 

Corpo nu

 [Marta Cortezão]

Tateio o corpo nu da palavra

buscando tua bronzeada tez...

na solitária barca noturna

de sonhos e tolos devaneios

esfrego-me no verbo amar

com sede de conjugações carnais

sucumbo no sexo das palavras...

oh! A língua de Camões me abrasa

o âmago profundo do prazer

sêmen(te) que embriaga

quando goteja fecunda

e explode no branco do papel:

orgia poética de palavras!

 

Essa dimensão erótica e sedutora da relação do eu-poemático com as palavras nos reporta ao poema Sedução da Adélia Prado: “A poesia me pega com sua roda dentada/[...] Me abraça detrás do muro, levanta/ a saia pra eu ver, amorosa e doida”. Assim ressalto, tal qual Adélia, que a poesia é hermafrodita e, estas que compõem a Coletânea Enluaradas II são escritas por mulheres e desejam ser fecundadas por todos, para que juntas, possam romper com o silêncio, subir no palco, protagonizar histórias, virar os holofotes e desafiar a lógica social.

Permanece, tanto no poema de Marta Cortezão, quanto em muitas outras páginas da coletânea, a possível relação entre o eu e o tu, imagens que, de certa forma, conduz ao fortalecimento de uma identidade po-ética e plural, capaz de germinar outras. Portanto, “[...] respira fundo e voa/que o teu limite é infinito/ que o teu coração é o mar” (MONTEJANO, 2021, p.147) e “há sempre o que se ganhar/ao paralisada não ficar” (LIMA, 2021, p. 146). Afinal, “[...] talvez, em um futuro/ distante, alguém compreenda que a beleza/é um espelho de muitas faces” (VELOSO, 2021, p. 101).

A obra em destaque apresenta a poética de mulheres, com “desejos e feituras/que alimentam a fome” (NASCIMENTO, 2021, p. 88), no sentido de que são versos carregados de levezas que miram o recomeço (LAGO, 2021, p. 86), a busca incessante por equidade, por solidariedade, por empatia e/ou surgem na ânsia de que percebam as “insignificâncias a desfilarem/ nos dias de chuva” (QUEIROZ, 2021, p. 181) e/ou “os versos curadores/curandeiros de mim” (ALMEIDA, 2021, p.168) que nos apontam que “[...] entre os espaços das paredes, lagartas e feras se entranham/A algumas damos lábios. A outras, mistério./Mulher, quando nos cingimos entre paredes,/a larva dá voo à palavra, onde nos reconhecemos” (GERMANO, 2021, p. 169). E, assim, podemos deixar “pegadas perfumadas com cheiro de absinto” (MOTA, 2021, p. 89) porque “no silêncio e nas palavras,/a mensagem grita” (CLARES, 2021, p. 201).

Finalizo, por ora, ressaltando que estamos nessas páginas, mulheres, porque ousamos nos levantar dos abismos em forma de poemas. Mulheres gostam de coisas profundas, “E no agora com uma legião de deusas/ cirandamos como aves bailarinas/guiadas pela luz dessa galáxia menina” (MANACÁ, 2021, p. 121.) porque “na passagem de um estado/para outro [nos desenhamos, juntas, imortais] (LOPES, 2021, p. 56) e “carregamos em nossas vidas/a imensidão dos belos tecidos (ALVES, 2021, p. 192).






quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

EMPOEME-SE EM POESIA: Poemas de Juraci Cruz




EMPOEME-SE EM POESIA/24


Poemas de Juraci Cruz


Leitura de Marta Cortezão


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


 

MINHA ESCRITA

 

Já escrevi versos

Com o peito sangrando

Os olhos chovendo sequidão

Os lábios sorrindo prantos

Punhos serrados

Sem mãos segurando

Segui escrevendo

 

Já escrevi versos

Num grito de silêncio

Com olhos fechados

Vendo o mundo todo

Com o peito apertado

Por não ter um abraço

Segui tirando nós

E criando laços.

 

Já escrevi versos

Na solidão a dois, a três ou mais

Segui a multidão sendo eu e eu

Já fiz versos com as flores do canteiro vazio

Escrevi cachoeira onde nem uma gota de chuva caiu

Não me prendo ao outono

Não conto as folhas que caem

Conto os galhos, antevendo os botões desabrochando

Sou primavera

Não importa quantas podas

Volto inteira.


*-*


MILAGRE NO CORAÇÃO

 

Como chuva em terra seca

Como bálsamo derramado sobre a ferida

Como perfume que uma vez aberto enche a casa

Mudando a atmosfera

Sem passar despercebido

Como semente que brota em terra que está improdutiva

Renovando a fé e a esperança

Como óleo que faz a engrenagem funcionar

Mais ágil e leve

Como abraço num momento de dor

Como remédio que manifesta o calor humano

É a gratidão no coração

Um coração agradecido

Manifesta vida

Muda o ambiente

É termostato em meio as dificuldades, muda a temperatura

É o grito de liberdade em meio às circunstâncias.

Gratidão é a porta aberta para a abundante vida que Deus tem pra nós.


*-*




sexta-feira, 26 de novembro de 2021

MOMENTO COM GAIA: Poesia em tempos de pandemia|75



Momento com Gaia/75


Esse projeto, de autoria da poeta Janete Manacá, nasceu em 16 de março de 2020, com a chegada da Pandemia causada pelo novo Covid-19. Por se tratar de algo até então desconhecido, muitas pessoas passaram a desenvolver ansiedade, depressão e síndrome de pânico. Com o desejo de propiciar a essas um “momento poético” no conforto dos seus lares, toda a noite é enviado, via WhatsApp, um áudio com poesias de sua autoria para centenas de pessoas do Brasil e de outros países. E estas são replicadas pelos receptores. Acompanhe o poema abaixo:


Por Janete Manacá




Para ouvir o PODCAST clique AQUI.


Não nos ensinaram a viver


morremos um pouco a cada dia 

quando adiamos os nossos sonhos

deixamos de perdoar por motivos fúteis


sacrificamos o agora em prol do amanhã

ignoramos as virtudes do outro

esquecemos de declarar o nosso amor


morremos um pouco a cada dia 

entrelaçados com as nossas vaidades

ao alimentarmos o nosso egoísmo


ocupando espaço no nosso coração

para inveja, maldade e julgamentos

e quando deixamos de estender a mão


morremos um pouco a cada dia 

ao cruzarmos os braços diante das injustiças

e silenciarmos ante as atrocidades


ao negarmos um pedaço de pão

fingimos não ver a fome no mundo

contribuímos om a destruição do planeta


com a miserabilidade das nossas ações

pela incapacidade de ir além dos nossos umbigos

morremos... porque não nos ensinaram a viver




NAS TEIAS DO POEMA XIII: DA FORÇA PERENE DA PALAVRA


NAS TEIAS DO POEMA XIII: DA FORÇA PERENE DA PALAVRA

                                                         Por Marta Cortezão

 

Brado com a língua da serpente que sou: pelas mulheres que aguentam toda a merda desse mundo, que se achavam incapazes, para as que vieram antes, para as que virão depois que eu virar pó. Para o norte que existe e é lindo. Para Santarém. Para o rio escuro que faz o magma do meu coração. Para os orixás que dançam comigo, bebo e como de seu manjar. Sou filha da rua e meu território vai ser sempre onde meu pé firmar como vela. Eu vou escrever até o fim, porque estou de passagem, mas a palavra é eterna.

 

{Monique Malcher[1]}

Em mais um episódio do Nas Teias do Poema, nos animamos para o inquietante mergulho neste paradoxal rio de palavras que nos mantém em constante vigília em nosso próprio caos. Armadas de palavras, enfrentamos o mundo que nos devora dias e dias a fio na solidão de uma alcova qualquer, mas as palavras, fruto do ventre da alcova, têm como destino as multidões; são velozes, retilíneas, aladas, altruístas e possuem a chama do conhecimento, a essência da sabedoria, pois como escritoras também assumimos o papel de pensadoras de nossa literatura. E nunca é tarde para chegar, porque “na arte é impossível chegar tarde; que, não importa de que se alimente ou o que procure ressuscitar, a arte é em si própria avanço.” (TSVETÁIEVA: 2017, p.5).

Olhamos para trás com os olhos rasos d’água, com a boca cavernosa prenhe das dores mapeadas pelo corpo, mas caminhamos em frente com a língua viperina destilando o grito e o contragrito entalado na garganta “pelas mulheres que aguentam toda a merda desse mundo, que se achavam incapazes, para as que vieram antes, para as que virão depois”. Nunca nos esqueçamos que em toda margem residem as várias facetas da criatividade artística e todo ser marginado revela-se um conquistador por excelência. É por isso que seguimos determinadas, nos vemos refletidas nas palavras de Monique Malcher: “Eu vou escrever até o fim, porque estou de passagem, mas a palavra é eterna.”

A palavra é eterna porque nossa escrita se conjuga e reverbera no perene rio do tempo, revelando nossa essência, sobre quem somos, de onde falamos... No dizer de Susan Sontag, as palavras têm consciência, “são flechas. Flechas cravadas na pele dura da realidade.” Entretanto, é preciso entender que só avançamos à medida que nossa arte avança.

Celebramos a palavra, celebramos em ciranda esta chama que se revela no fazer literário e no florido canteiro de nossas tantas (in)certezas! Escrevamos todo grito e contragrito que nos condiciona no tempo do silenciamento. Rebelemo-nos e marchemos para a metamorfose, porque os sinos se dobram e anunciam: é tempo de esperançar e poetizar no rio de nossas utopias, pois a literatura é este sopro que nos faz acreditar na humanidade!

Nas Teias do Poema de hoje conta com a poética presença das autorias:

JOELMA QUEIROZ é Pedagoga, Escritora e Contadora de histórias (Jó conta e encanta no YOUTUBE). Já publicou 4 livros infantis: Cadê minha gatinha, O Renascer da Floresta, Dudu e o espelho da bisa e Bia liga-desliga. Participante de Antologias.  Membro do Coletivo Mulherio das Letras, da AILB e da AIML (Academia Internacional Mulheres das Letras). Instagram @joelmaestelaqueiroz.

GLAFIRA MENEZES CORTI, professora paulistana, membro do Coletivo São Paulo de Literatura e da Academia Contemporânea de Letras. Atua voluntariamente como palhaça Pitanga, oficineira de escrita/ leitura e contadora de histórias. Tem três livros publicados “Tamborilando com Letras”, “PraVocê” e o infantil “Eu fizio porque quizio”.

VALÉRIA  PISAURO, natural de Campinas-SP, exerce intensa atividade cultural na literatura e na música, como poeta, roteirista e letrista musical. Participa de certames culturais, de idôneas antologias e de festivais de música, tendo sido premiada em vários deles.

 

REFERÊNCIAS:

 

SONTAG, Susan. Ao mesmo Tempo – Ensaios e discursos [recurso eletrônico]. Trad. Rubens Figueredo, Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008.

TSVETÁIEVA, Marina. O poeta e o tempo. [recurso eletrônico]. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Disponível no link: https://docero.com.br/doc/sx5x55x.  Acesso 20/11/2020.

 

 

 



[1] Texto postado, dia 26/11/2021, pela própria autora em seu perfil do Facebook, no link https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=4950427471668210&id=100001030198631&sfnsn=scwspmo, em referência ao 63º Prêmio Jabuti de 2021, cujo livro “Flor de gume” (Editora Jandaíra), foi vencedor na categoria conto.

 


O Projeto Enluaradas parabeniza a todas(os) as vencedoras e os vencedores do 63º Prêmio Jabuti/2021



terça-feira, 23 de novembro de 2021

ELES LEEM ELAS: FLOR DE LINZ, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 

ELES LEEM ELAS|08

Flor de Linz de Danielli Cavalcanti

CRÔNICA DE UMA MIGRANTE BRASILEIRA NA EUROPA

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

 

“Flor de Linz”, da escritora brasileira Danielli Cavalcanti, é livro que deveria ser lido e relido por aqueles que sonham com paraísos europeus onde tudo ‘floresce’ e a vida humana é plena de realizações e prosperidade. Tendo como palco o fictício café “Flor de Linz” existente na cidade austríaca de Linz e que se afigura como um ponto de apoio e encontro de imigrantes, uma voz narrativa (que traduz as experiências da própria autora que de fato ali residiu por anos), expõe o cotidiano dos migrantes, sobretudo brasileiros, que, por um motivo ou outro, acabaram indo dar com os costados naquelas paragens às margens do rio Danúbio.

Positivamente vivemos época em que a distinção entre “migrantes” e “refugiados” é cada vez mais tênue. De fato, vem ocorrendo no mundo uma forte mutabilidade e variedade dos fluxos migratórios, porque impulsionados por mudanças mais densas, imbricadas e complexas do que em épocas anteriores. São múltiplas as confluências e semelhanças entre ambos os conceitos e indiferenciadas muitas das causas e consequências desses fluxos. Difícil, muito mesmo, diferenciar movimentos “voluntários” dos “forçados” por guerras e/ou perseguições políticas, tal a natureza híbrida dos mesmos. Muitos dos migrantes “voluntários” – por vezes designados como migrantes econômicos – são na realidade “forçados” a deixar suas regiões de origem, devido a situações de grande privação (absoluta ou relativa), como parece ser caso da maioria dos migrantes brasileiros que optam por tal alternativa ante um quadro social extremamente instável, de avanços e recuos cada vez maiores no país.

A velha questão de ausência de perspectiva de melhoria de vida, aliada à um quadro de instabilidade, violência crescente, corrupção e crise constante, tem empurrado muitos às aventuras em terras europeias.Decorre de tal situação, que a vivência e convivência em tal ambiência é sempre marcada também por muito sofrimento físico e psíquico (pois o tal homo sapiens ainda acredita piamente que não existe paraíso sem serpente, e as vezes trabalha com afinco para que assim continue). As narrativas da senhora Danielli Cavalcanti, embora adornadas por uma tonalidade poética e por certo carinho pela cidade de Linz e alguns de seus habitantes mais cordiais, não esconde a brutalidade do racismo, o preconceito, e a imposição de uma mentalidade europeia que se pensa superior ao resto do mundo.

Há casos que beiram o cômico como é o caso de Açucena (os personagens femininos têm sempre nomes de flores) que se envolve em um triângulo amoroso que quase acaba em morte, ou o caso de Oleandro que precisou que uma pessoa austríaca falasse por ele – o simples sotaque estrangeiro por vezes é uma porta enorme bem trancada -, para fechar um contrato de locação de um imóvel. Interessante notar que, nesse caso específico, havia um amor em jogo, mais havia também outros interesses urgentes, e imagine-se o que é viver em tal condição:

“Para ela [a noiva], foi a forma de fazer diferença na vida de alguém. Para Oleandro foi a possibilidade de legalizar sua estadia e, finalmente, conseguir permissão para trabalhar e ter seguridade social. Sua emoção não cabia no coração. O Danúbio é testemunha das muitas vezes que Oleandro tremeu de tanto chorar as dores de anos trabalhando no submundo da construção civil. Durante todo o seu tempo de trabalhador indocumentado, teve sonhos destruídos e outros muitos adaptados.”O que pensar disto?

“Os ânimos a todo vapor me renderam duas visitas dos faróis azuis. Na primeira, controlaram minha permissão de estadia na Áustria e o alvará do café. Na segunda visita, as botinas pretas insaciáveis começaram a controlar as pessoas convidadas.”

Ainda pior: “Antes de abrir o café, eu tive um horário marcado no departamento para assuntos de imigração, para renovar meu título de residência permanente. Dessa vez, foi exigido também uma declaração de uma associação, que eu nunca ouvira falar, constando que eu não solicitara nenhum empréstimo bancário. E lá se foram 20 euros, para um papel comprovar que falei a verdade.”

Assombrosa a história de uma certa moça chamada Tulipa (brasileira), casada com um tal Hibisco (austríaco), que foi convidada para um jantar local. Observe-se uma a realidade que subjaz envolvendo mulheres migrantes. Primeiro a pergunta de uma ‘dama’ austríaca:“— Hibisco te escolheu de um catálogo, não foi?”, ante a estranheza que uma tal pergunta causou, veio a resposta:“— Sim, catálogo! Há muitos homens que não encontram mulheres aqui e as buscam de catálogos de outros países. Principalmente as mulheres do Sul são requisitadas pela sua submissão cultural.”

Há ainda outras observações que transmitem bem como é o dia a dia para os imigrantes:Na crônica “Florescimento contínuo” a tradução do que muitos europeus pensam sobre os migrantes: “Parece que, ao carimbarmos o passaporte num país estrangeiro, recebemos de cortesia o carimbo da menos valia, da incompetência. Por mais que nos esforcemos, nunca somos, suficientemente, bons.” Porque: “Nossas habilidades estão sempre sendo questionadas, quando não menosprezadas. Nossas capacidades subestimadas, ao ponto de sermos infantilizadas.”

Entretanto o livro, não trata somente de tristezas e desencantos, há espaço também para belos momentos de solidariedade a ajuda mútua, onde grandes amizades se constroem. Assim mesmo, cala forte nossas consciências quando lemos a crônica “Uma flor de jaçanã”, que narra toda aquela tragédia ocorrida bem na Áustria em 2015 (quem se lembra?), quando no final de agosto daquele ano, “um caminhão com 71 corpos foi encontrado numa autovia, e a Áustria sentiu o peso da presença daquelas vidas ausentes. Eram pessoas vindas na maioria, da Síria. Morreram asfixiadas, dentro de um caminhão, tentando atravessar a Áustria para chegarem à Alemanha.” Fica mesmo a terrível mácula, que o tempo não apaga, e que o texto refere com muita propriedade:

“E se tem que suportar o peso de suas almas gritando na consciência, e seus corpos expondo as crueldades de uma política de exploração e de extermínio. Chegam pelas águas como algas, estão em todos os lugares para nos lembrar do nosso fracasso como humanos.”




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