Catálogo Virtual Literário do Feminino

sexta-feira, 29 de julho de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|11


CRÔNICA: CONEXÕES

Por Carollina Costa


Ontem estive em um encontro de mulheres que surgiu através de uma postagem de Instagram incentivando a nós, mulheres, a nos unirmos mais. Fiquei pensando na postagem, nesse movimento, na necessidade de nós, mulheres, olharmos mais para nós mesmas e me surgiu a crônica que segue. Mesmo que curta, espero que possa incentivar você, leitora, a buscar a si mesma e conexões que apoiem o seu transformar.


Conexões

É comum que ao nos compararmos com outras pessoas sigamos um desses dois vieses: ou acreditamos que todos têm uma vida igual a nossa ou que somos a única pessoa no mundo que vive de determinada forma e ninguém é capaz de nos compreender. Dois extremos problemáticos. O primeiro não nos permite enxergar as diferenças, ora sutis ora gritantes, que existem entre uma pessoa e outra, uma forma de vida e outra. A segunda nos cega quanto às semelhanças que partilhamos, seja nos detalhes expostos do dia a dia ou na sutileza do nosso modo de ver e pensar sobre as coisas da vida.

Esses dias, por causa de uma simples, porém não tão simples postagem de Instagram, conheci diversas mulheres que se reuniram no intuito de partilharem suas jornadas individuais com outras mulheres e formarem, juntas, uma rede de conexão para que não nos sintamos tão sós em nossas caminhadas. Nessa conexão o foco somos nós, para nós e por nós, individualmente e coletivamente. Parece pouco, mas é uma atitude e tanto.

É comum às mulheres olharmos sempre para o outro: o que o outro pensa, como o outro nos vê, o que o outro acha de nós, o que o outro quer de nós, como podemos agradar mais ao outro, como podemos ser mais e melhor aceita pelo outro... E esse outro não é necessariamente um parceiro, pode ser a família, um grupo de amigos, um grupo de convívio social ou mesmo a sociedade onipresente como um todo. Mas é sempre um outro, nunca ela. Nunca nós. Entramos, assim, numa espiral descendente de desejos e expectativas do outro sobre nós que, honestamente, jamais serão supridas, visto que é próprio do ser humano, seja homem ou mulher, desejar constantemente. Nessa espiral nós também desejamos constantemente e sem retorno, porque ao desejar incansavelmente a aprovação do outro que nunca estará completamente satisfeito nos perdemos de nós e aí descemos mais e mais, nos perdendo cada vez mais.

Ao traçar o limite entre o eu e o outro — lembrando que limite não é muro, é sobrevivência e sanidade — muitos chãos tremem, muitos laços se desfazem e cordas se rompem. É nesse lugar meio limbo meio transformação em que buscamos novas mãos amigas para nos levantarem enquanto ainda não conseguimos ficar de pé. Um lugar partilhado por muitas de nós quando decidimos conhecer quem nós somos fora dos moldes pré-dispostos nas prateleiras do convívio, e é aí que essa postagem de Instagram e tantos outros movimentos de união entram, nos convidando a sair desse lugar e concretizar o novo.

Cada mulher que caminha em direção a outra e estende suas mãos para esse movimento de união pode transformar a condição daquela que ainda não conseguiu se levantar. Não é sobre sair da sua caminhada para incorporar os passos de outra, mas sobre cada uma de nós, seguindo seu próprio ritmo e caminho, respeitar e ajudar a mulher ao lado a caminhar com suas próprias pernas em sua própria jornada com mais sororidade.




quarta-feira, 13 de julho de 2022

OUTUBRO, POR FLAVIA FERRARI

 




POESIA NA REDE|06


OUTUBRO

                                                                                                 Por Flavia Ferrari


mergulho-risco quando pixo – Nina Rizzi*

 

é preciso cuidar bem do coração
te mando um salve enquanto
os manos incendeiam uma viatura aqui na rua
é preciso politizar a ferida
com a mão inteira acariñar a chispa
que arde fundo cá dentro. dá-me tua mão
é preciso cuidar bem do coração

 

 

            O poema de Nina Rizzi, especialmente no verso “é preciso politizar a ferida”, nos convida a pensarmos sobre o destino que podemos dar a todas as nossas feridas. E são muitas! A rede tem mostrado as inúmeras reações de indignação, revolta, tristeza e desesperança ao crime bárbaro de estupro, cometido por um médico contra uma paciente durante o parto. A questão sobre ser mulher no Brasil (e também no mundo) carrega em si todas as violências prováveis e possíveis que diariamente vemos – ou imaginamos – no nosso cotidiano.

            A mudança que queremos, que desejamos, que sonhamos, assim como a transformação social e cultural necessárias para vivemos em uma sociedade menos violenta e mais igualitária para todos os gêneros passa também pela esfera educacional, política, econômica e jurídica. Transformar e transformar-se é tarefa coletiva e em uma época de individualismos celebrados, um dos caminhos para a mudança é valorizar os grupos que têm propostas de ações sociais para reduzir as desigualdades.

            Somos seres políticos e agimos no mundo de acordo com nossas convicções, motivações e valores. Outubro é o mês em que todos nós iremos às urnas escolher os novos representantes do poder executivo e também legislativo. Engajar a juventude, divulgar nossas ideias, argumentar sobre o que acreditamos e desejamos visando eleger políticos que efetivamente trabalhem para reduzir os problemas sociais é uma forma de luta que está ao alcance de todas, todos e todes. Assim como a poesia. É urgente escrever! Para não sucumbirmos ao abismo que se anuncia. E para não nos esquecermos: “é preciso cuidar bem do coração.”

 

 

 

*_*    *_*   *_*    *_*


Referência: *Nina rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. Formada em História pela UNESP e Mestra em Literatura Comparada pela UFC. Traduziu obras de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Ijeoma Oluo, Abi Daré, entre outres. É autora de tambores pra n’zinga, a duração do deserto, geografia dos ossos, quando vieres ver um banzo cor de fogo e sereia no copo d’água e do infantil A melhor mãe do mundo; nasceu em Campinas e vive em Fortaleza há 15 anos, onde faz laboratórios de escrita criativa com mulheres e integra as coletivas Pretarau - Sarau Das Pretas e Sarau da B1. Poema “mergulho-risco quando pixo” disponível em https://www.cemanade22.com/homenagens/nina-rizzi



sexta-feira, 8 de julho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO IV: DO PEDREGO(ZO)SO CAMINHO DA ESCRITA



CALDEIRÃO LITERÁRIO IV: DO PEDREGO(ZO)SO CAMINHO DA ESCRITA

 

Por Marta Cortezão

 

Ano passado, enquanto me dedicava à construção da Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Editora Sarasvati, 2021), fui tocada por uma preocupação antiga, que estava meio adormecida em mim, acerca do processo de escrita. Mas que naquele momento aflorou com muita força, pois estava mergulhada no processo de escuta das autoras Enluaradas que participavam das lives. E só então me dei conta de que essas inseguranças, essas dúvidas fazem parte do processo de construção literária e nos atravessam a todas; umas com mais ou menos intensidade que outras, mas sempre estão no percurso. Assim que resolvi iniciar uma pesquisa muito subjetiva a respeito do que diziam as várias autoras (séc. XIX, XX e XXI) acerca do próprio processo de criação artística

De tudo que lia dessas autoras, naquele momento, me vinha uma necessidade de dialogar com elas, na intenção de dizer também das minhas impressões, dos meus questionamentos e das muitas inseguranças que me acompanhavam e que me acompanham fielmente, já que é escrevendo que também nos ouvimos e é nos ouvindo que entendemos as nossas fraquezas e nos abrimos a novas perspectivas, assumindo os riscos e os abismos que a palavra nos apresenta. É importante encontrar meios próprios para conviver com esses medos que estarão sempre conosco a cada novo projeto que nos cruze o caminho.

Naquele momento, encontrei-me com um pensamento de Natalie Clifford Barney (1876-1972), nascida nos Estados Unidos, poeta, ensaísta, romancista que dizia o seguinte:

“Ser o nosso próprio mestre é ser escravo de nós mesmos.”

O que me fez escrever:

Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar; o voo é livre, e a destreza de voar com asas de cera exige prudência e sensatez. Acreditar em nosso processo de construção da escrita e/ ou nosso fazer poético é um bem necessário, divino até. Você já se perguntou por que somos tão receosas em assumirmos nossa escrita? Seja qual seja a resposta, escreva! Não se importe com o que o “júri de plantão” irá dizer (especialmente aquela voz que nos adora sabotar), pois não se pode crescer, em nenhum ofício, sem nele exercitar-se. E, além do mais, o brilho e o calor do sol nos abraçam a todas, apenas cuidemos de nossas asas de cera, nem tanto ao calor do sol, nem tanto à umidade do mar.

Outras leituras que anotava nos cadernos a fim de voltar a elas, como foi o caso do livro Fico besta quando me entendem – entrevistas com Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz. No trecho abaixo, Hilda Hilst (1930-2004), uma das grandes escritoras do século XX, diz o seguinte sobre “o sofrido caminho da criação artística”:

          “As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensando em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas. [...] Também o ato de escrever para mim revela às vezes a insegurança, pois o escritor é um ser frágil, inseguro, ansioso, que procura respostas para todos os mistérios da vida.”

Portanto, acalmemos os ânimos e o coração, tudo é estrada, tudo faz parte desse processo de construção da escrita e de nós mesmas. E digo mais, consumir e fazer literatura também nos humaniza e nos ensina a envelhecer plenas de juventude. E a insegurança será sempre nossa companheira e profetisa de vida, porque é dela que vem o desejo de superar os obstáculos. Escreva sempre, porque, como diz a máxima latina, as palavras voam, mas o que está escrito permanece!

Então não esqueça que HOJE, 09|JUL, SÁBADO, às 17h (Brasília), no canal BANZEIRO CONEXÕES, realizaremos o nosso CALDEIRÃO LITERÁRIO IV.

Estaremos na companhia das companheiras-escritoras: Heliana Barriga, que nos falará sobre o seu livro Palavra de boca, Palavra de mão (Editora Paka-Tatu, 2022); Manuela Lopes Dipp com seu Poemas para colocar dentro de uma garrafa, (Editora Bestiário, 2021); Heliene Rosa, com o livro Rodas de Contação de Histórias - Eliane Potiguara e Conceição Evaristo (Editora Subsolo, 2022);  também a poeta Patrícia Cacau  com Quintais (Editora In-Finita, 2020), Marina Marino, com seu Tudo foi vivido (Editora Voo Livre, 2021) e Marta Cortezão, que também apresenta o seu livro Amazonidades: gesta das águas (Editora Penalux, 2021).

 

Venha participar conosco!🧹🧙‍♀️

Confira a sinopse dos livros das autoras participantes do Caldeirão Literário IV:

Obs: todos os textos abaixo foram enviados por cada uma das autoras convidadas.



PALAVRA DE BOCA, PALAVRA DE MÃO | HELIANA BARRIGA

 

Nós o chamamos O PALAVRA. Um conteiner de idéias construído com zelo e luta, a quatorze mãos. Mãos desta autora, de duas filhas e três netos. Um sobrevivente irreverente. Um teimoso reticente. Um destinado à cabeça e ao corpo. Para todas as vivacidades. Para as crianças juntas com seus e suas professoras, suas famílias, amigos ou sozinhas mesmo. Uma saída para a alegria. Uma desistência do suicídio. Prosas e poemicências novas desta autora inventadeira, que propõe a seu público, as leituras sem ataduras.  Para ler, alterar, divertir, escrever, e não desistir.

 


POEMAS PARA COLOCAR DENTRO DE UMA GARRAFA | MANUELA LOPES DIPP

A poesia escapa pelas frestas do cotidiano, corre solta pelas esquinas e pelos silêncios, encontra acolhida na encosta dos olhos, faz abrigo nas esperas, no amor e nas mãos, verte profunda das nascentes do coração de quem sente e vive o poema, a poesia desenha oceanos. “Poemas para colocar dentro de uma garrafa” abre-se como um horizonte marítimo de versos, é um mergulho nas águas poéticas de Manuela Dipp. Manuela que absorve da vida que transborda matéria-prima para o poema, reúne nesse livro uma generosa e bela seleta de poesias que constelam temas como o amor, as paixões, o fazer poético, o navegar. De ritmo potente, a poética de Manuela carrega o movimento das águas: intensa e suave, desaguando em metáforas sinestésicas, em imagens que ampliam os significados da dimensão dos afetos, dos territórios do corpo. “Poemas para colocar dentro de uma garrafa” tem o princípio das cheganças, dos abismos e da devoção por sentir-viver poesia derramada em palavras. A experiência dessa leitura transcende qualquer mapa, linha, letra, fronteira ou caminho, é uma vivência-mergulho arrebatadora.

                                                                     Michelle C. Buss

João Pessoa, agosto 2021

 


RODAS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS – ELIANE POTIGUARA E CONCEIÇÃO EVARISTO | HELIANE ROSA

Este livro é fruto do projeto extensionista “Rodas de Contação de Histórias: Eliane Potiguara e Conceição Evaristo”, o qual homenageia duas intelectuais brasileiras contemporâneas que têm contribuído para o fortalecimento identitário e literário das mulheres indígenas e pretas em nossa sociedade. Eliane Potiguara representa os agenciamentos das intelectuais indígenas brasileiras, expressando, nos limites da escrita poética, suas lutas, seus sonhos, seus desejos, suas potencialidades e suas subjetividades. Desde a década de 1970, ela é uma mulher expoente da literatura contemporânea de autoria indígena, bem como militante do Movimento Indígena Brasileiro. Já Conceição Evaristo representa as intelectuais negras brasileiras que faz reverberar, em textos literários “escreviventes”, as opressões impostas por uma sociedade racista, sexista, de base escravocrata e patriarcal, cuja violência contra as mulheres pretas cresce exponencialmente. Ela é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Possui livros de poesia e narrativas nos quais se transitam figuras femininas negras representativas de seus papéis sociais no Brasil.

 


QUINTAIS | PATRÍCIA CACAU

O livro quintais é um espaço de refúgio, aconchego.

A expressão orgânica de uma mulher comum, quanto tantas sem lugar de privilégio que usa o seu caderno como amigo mais íntimo, onde desabafa as suas angústias e anseios no seu profundo desejo de seguir em frente e reinventar seus sonhos, e libertar-se do que outrora afligia o seu viver e descobre:

Que escrever é como respirar pelo papel.

Patrícia Cacau POETA

 


TUDO FOI VIVIDO | MARINA MARINO

Um encontro esperado há reencarnações.

Mulheres que distribuem seus dons, através de suas profissões atuais, no jornalismo, na fotografia, na relojoaria, na medicina, na culinária, sem ao menos saberem que os possuem.

Mas como tudo o que foi vivido jamais é esquecido porque fica gravado no coração, elas recordarão sua verdadeira identidade quando se reencontrarem.

TUDO FOI VIVIDO, um livro para ser lido com o coração.

 


AMAZONIDADES: GESTA DAS ÁGUAS | MARTA CORTEZAO

Amazonidades: gesta das águas passa por um livro de poesia, mas é muito mais que isso: é um compêndio de Amazônia, uma súmula do imaginário dessa região que se espraia por nove países e, no Brasil, por nove estados, e agora, em domínios de Castela e Leão, funda um virtual território independente, representado pela poesia de Marta Cortezão.

Ler as trovas de Marta é como remexer uma biblioteca de sonhos, o imaginário amazônico, onde todo o conhecimento do “povo das doces águas” está reunido: os acesumes, as comilanças, as leseiras, as caboquices, os encantados – nossos mitos ancestrais. Marta inventa palavras e, como Drummond, torna outras mais belas: “Apeixono-me de escama / em noite de virar bicho”; “canoei todo um rio-mar”; “O que assaranha uma vida?”; “Sevava palavras cruas”; “e na cólera das horas”; “pois janeirava à tardinha”. São apenas amostras. O leitor poderá “caniçar” outras dezenas de exemplos brilhantes.  

Duas linhas de pensamento são recorrentes: a sensualidade e a metalinguagem. Às vezes, elas vêm juntas: “A traquinagem do verso / faz vaginar pensamentos; / então me entrego, de certo, / ao falo afoito do vento.”  As metáforas são sempre construídas com elementos do imaginário: “Pensamentos escamei, / aparei todas as abas, / as cicatrizes limpei / e salmourei as palavras.” E observem o domínio da métrica e das rimas – toantes, inclusive.

Senhora de seus elementos, Marta Cortezão revela-se, sobretudo, senhora de seu ofício.

  Zemaria Pinto, escritor.

sábado, 2 de julho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO III: DAS PULSÕES SUBVERSIVAS DA LINGUAGEM

 


CALDEIRÃO LITERÁRIO III: DAS PULSÕES SUBVERSIVAS DA LINGUAGEM


Por Marta Cortezão


a poeta

– artífice da palavra –

cultiva seu canteiro

sílaba a sílaba

tateia o mundo dos significantes

e de seus significados

subverte funções

e disfunções da linguagem

mergulha em conceitos metafísicos

 

em voo indomável e paradoxal

ultrapassa o universo linguístico

das coisas corpóreas e incopóreas...


e do adubo fértil da alma

 a poesia se faz germinar! 

[Marta Cortezão]


Escrevi este poema, sem título ainda, no ano passado, no momento da construção da Coletânea II: uma Ciranda de Deusas, publicada pela Editora Sarasvati, em parceria com o Selo Editorial Enluaradas, e que (é bom enfatizar!) está concorrendo ao Prêmio Jabuti 2022. Ao reler o poema, hoje, me veio a necessidade de fazer nele algumas modificações. Senti que era preciso adubar o solo fértil da linguagem, podar algumas palavras de essência capim, porque estendem seu ambíguo significado e tomam conta de tudo e sufocam a outras palavrinhas miúdas, e acabam minguando o poema. 

Quis aplicá-lo os cuidados para senti-lo um poema-planta viçoso, com nuances hiperbólicas de nova semente, quase invisíveis à alma nua. E não porque seja difícil identificar tais modificações entre as duas versões, não me refiro a isso, mas ao fato de, como poeta, encontrar-me neste particular e ansiado estado de "alma nua" para cultivar férteis canteiros de poesia. Nesse processo de preparação, há um laborioso trabalho nos campos linguísticos dos vocábulos, e é importante curvar-se sobre estes campos para ará-los com paciência, com a dedicação monótona de uma jardineira que enfia as mãos no solo úmido e movediço das palavras e tateia com minúcia sua superfície subversiva, prenhe de epifanias do cotidiano, a fim de trazer o novo à vida.

Anteontem li um artigo sobre o discurso da poeta Wisława Szymborska (1923-2012) proferido por ocasião da premiação do Nobel de 1996, cujo título é O poeta e o mundo. Nesse discurso, me tocou muito a ponte que Szymborska fez com os versos do poeta bíblico Eclesiastes (1:9) que tratam das vaidades humanas. Ela imagina o prazer do diálogo com o poeta que admira, tomando-o pela mão e dizendo-lhe, com poeticidade: 

“Nada de novo sob o sol” — escreveste, Eclesiastes. No entanto tu mesmo nasceu novo sob o sol. E o poema que criaste também é novo sob o sol, já que ninguém o escreveu antes de ti. E novos sob o sol são todos os teus leitores, pois os que viveram antes de ti não puderam ler teu poema. E também o cipreste à sombra do qual sentaste não cresce aqui desde o começo do mundo. Ele surgiu de outro cipreste parecido com o teu, mas não exatamente o mesmo. E além disso, Eclesiastes, queria te perguntar o que de novo sob o sol tenciona escrever agora. Será algo com que ainda complementes teus pensamentos ou acaso estás tentando a contradizer alguns deles? Na tua obra anterior, vislumbraste a alegria — que importa que seja fugaz? Portanto, quem sabe será sobre ela teu novo poema novo sob o sol? Já tens anotações, os primeiros rascunhos? Não dirás decerto: “Escrevi tudo, não tenho nada a acrescentar”. Nenhum poeta no mundo pode dizer tal coisa, muito menos um poeta como tu.   

E como trazer o novo neste mundo tomado pela celeridade das informações e pela impaciência de demorar-se sobre as coisas e sobre as outras pessoas? Como não se angustiar com a ‘avalanche criativa’ do mundo cibernético? Como não sucumbir às vaidades das vaidades e armadilhas do ego? Eu, na minha tão pequena existência, me aproprio do diálogo filosófico da poeta Szymborska, um antídoto para as angústias do voraz século XXI, e ouso dizer que a resposta, para mim, está em parar para cultivar o próprio e único canteiro, pois as palavras-sementes que nele vingarem terão a essência única, o cheiro de flor que somente será peculiar à própria alma de quem o cultivou. Ainda que as mesmas sementes-palavras ecoem pelo mundo em outros tantos cultivos, no seu canteiro terão beleza, textura, cor e pulsão únicas e plurais, porque há um novo que cresce e floresce em cada humana existência que lateja sob o sol, apesar do cansaço e desilusão vividos dia após dia. É sempre tempo de arar os campos da linguagem e subverter seu uso, interessar-se também pela natureza das ervas daninhas que nos visitam os canteiros e permitir que os pássaros famintos se alimentem no canteiro-alma.

          E para cultivar os campos da linguagem deste Caldeirão Literário III, que acontece HOJE, às 17h (Brasília), contamos com a técnica das jardineiras-escritoras: Liana Timm (RS), com seu mais recente canteiro A Dimensão da Palavra - 36 anos de poesia - Editora Território das Artes, 2021; Lindevania Martins (MA), com A Moça da Limpeza, Editora Primata, 2021; Flavia Ferrari (SP) e seu Meio-Fio: Poemas de Passagem, publicado pela Editora Toma aí um Poema, 2021; também a poeta Dalva Lobo (MG), com Poesilha: dos pequenos tratados do cotidiano, Editora Siano, 2021 e a poeta Cristiane de Mesquita Alves (PA), com seu Riscos de Mulher, pela Editora Todas as Musas, 2021.

E quem tem o privilégio de receber estas autoras queridas é a poeta Marta Cortezão, juntamente com VOCÊ, parte importante desse Caldeirão Literário! Aguardamos sua companhia desde já!

Confira os belos canteiros cultivados pelas autoras:

Obs: todos os textos abaixo foram enviados por cada uma das autoras convidadas.

 


A DIMENSÃO DA PALAVRA | LIANA TIMM


O livro reúne 35 anos de poesia da artista multimídia LIANA TIMM. Em 494 páginas, os 18 livros da poeta já publicados, foram reunidos para dar conta dessa trajetória. Desde a adolescência escrevia, mas textos inconsequentes e pueris, até que resolve dar visibilidade à palavra. Então busca a sabedoria de mestres, tanto no contato pessoas quanto na leitura e passa dez anos adquirindo conhecimento e praticando a escrita de forma consciente, até publicar seu primeiro livro em 1986 e participar de antologias.

“Escolher a palavra certa que rime com nosso interior é mais que rimar a sílaba forçando uma artificial musicalidade. É harmonizar o prazer da estética que, espontâneo, busca se aconchegar em outras palavras carregando-as de significações. Na poesia testamos, com a sonoridade de nosso coração, todo verso que atravessando o corpo despreza qualquer tradução. Há mais ou menos 12.775 dias vivo a poesia sem intervalos nem concessões. Na solidão da escrita sou tudo o que quiser ser!”, revela a artista.

Esse constante movimento foi reconhecido com 17 premiações. Entre elas, o Prêmio de Melhor Livro do Ano na categoria Poesia, da Associação Gaúcha de Escritores (AGES) para “Água passante” (2010) e “Os potes da sede” (2012). O primeiro, nas palavras da crítica literária, ex-professora da UFRGS, da PUC e ex-diretora do Instituto Estadual do Livro (IEL), Léa Masina: “Liana oferece ao leitor um mergulho nas profundezas de uma estética em constante movimento, apreendida na fragmentação das coisas e na possibilidade de uni-las provisoriamente, sem deixar-se aprisionar pela estrutura previsível e imediata da realidade".



A MOÇA DA LIMPEZA | LINDEVANIA MARTINS

 

É o quinto livro da escritora Lindevania Martins. Publicado pela Editora Primata, apresenta onze contos inéditos que dialogam profundamente com o tempo presente, suas inquietações e desafios. A obra passou por rígida seleção do Governo do Estado do Maranhão através do edital público Conexão Cultural Literatura, que viabilizou sua publicação.

Do professor universitário, pesquisador e membro da Academia Maranhense de Letras JOSÉ NERES, morador de São Luís do Maranhão:

“Admiro o talento de Lindevania Martins desde o primeiro contato com sua prosa no livro “Anônimos”.  De lá para cá, venho acompanhando o desenvolvimento de seus trabalhos artísticos.  Seus textos são refinados e cheios de nuances que oscilam entre os aspectos sociais e psicológicos. Em seu novo livro de contos - “A Moça da Limpeza”- ela traz uma série de contos de excelente tessitura e que levam o leitor a “conviver” tanto com os aspectos físicos quanto com as abordagens psicológicas das personagens. Em cada conto, violência, angústia, neuroses e desencontros envolvem todos os ambientes e mostram facetas inusitadas que desnorteiam não apenas os leitores, mas também os companheiros de jornada literária. Uma ótima leitura!”

 


MEIO-FIO: POEMAS DE PASSAGEM | FLAVIA FERRARI

 

É um livro de uma mulher que nasceu preparada para guerra: carrega a força do berro feminino silenciado que se rompe, sem explodir em violência, e sim em uma sensibilidade clariciana, a qual não nega a condição áspera da vida, se esfola e faz da ferida uma janela para a anatomia da vida e das relações humanas.

É um livro raro, de uma sensibilidade acessível e extremamente profunda que não se perde em construções excessivas.  Flavia Ferrari explode suavemente a poesia que respira. Sem dúvidas, é uma poeta que terá um crescimento gradual contínuo que nasce com o dom de dissecar a linguagem poética, descobrindo uma glândula pineal coletiva.

Para Jéssica Iancoski, editora-chefe do Toma Aí Um Poema, “A poesia vem para Flavia Ferrari de maneira cotidiana e intuitiva. Percebe-se que há muita facilidade, como se versar fosse um dom natural".



POESILHA: DOS PEQUENOS TRATADOS DO COTIDIANO | DALVA LOBO

 

Poesilha é um pequeno tratado do cotidiano que convida a degustar as iguarias da vida, da amizade, da memória e da imaginação. Da seção de abertura, quando convida os loucos, os poetas e os errantes até a despedida da poesilha, quando saciados, os convivas contemplam o constante renascer da vida, a autora, entre silêncios e bailarinas, desvela a poética do viver.



RISCOS DE MULHER | CRISTIANE DE MESQUITA ALVES

Este livro deverá surpreender até os leitores mais habituais e amantes da Literatura. A poesia de seus escritos há de encantar e instigar a todos. A leitura de seus escritos há de desnudar a alma de uma mulher que, ao mesmo tempo, em que fala de/por si, dá voz a outras mulheres. Há quem, assim como eu, poderá se sentir representada/o, e partilhar das mesmas sensações, emoções e dores. Sem dúvida, o leitor mais atento, verá aqui uma poetisa que consegue ser singular e, simultaneamente, plural.

A obra reúne sessenta poesias que falam sobre a mulher em suas mais diversas formas, faces e fases. São poesias tecidas por fios feministas com atravessamento de dores, frustrações, violência doméstica, de infância, de injúrias, de traição, de patriarcalismo, feminicídio, mulheres cis e trans, velhice, amor e esperança.

 

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM LINDA BARROS, POR GABRIELA LAGES VELOSO

                                UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES  |08 ENTREVISTA COM LINDA BARROS Por  Gabriela Lages Veloso "Nin...