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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

PROTAGONISMO FEMININO EM FOCO: TAIASMIN OHNMACHT

       

 
PROTAGONISMO|02


MEMÓRIA E ANCESTRALIDADE EM "VOZES DE RETRATOS ÍNTIMOS, 
DE TAIASMIN OHNMACHT

     POR HELIENE ROSA

    

            Natural de Porto Alegre, a escritora e poeta Taiasmin Ohnmacht tem se dedicado à atividade literária como forma de produzir rupturas em um sistema editorial, cuja tendência predominante vem sendo adotar e promover narrativas únicas. Sua escrita incisiva desestabiliza esse tipo de estratégia de legitimação e de sacralização dos privilégios da branquitude no cenário da literatura contemporânea brasileira.

        Além de sua inserção na literatura, Ohnmacht é psicóloga e psicanalista, possui mestrado em Psicanálise, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eu a conheci exercitando os seus amplos conhecimentos acerca da teoria literária, durante a realização de um curso de curta duração sobre poesia negra. O diálogo estabelecido com a psicanálise foi o chamariz para esse estudo, oferecido por ela, com desenvoltura e maestria, no site da Com verso: Psicanálise e Poesia.

             Determinada a trabalhar pelo resgate da capacidade de conviver com a diferença e a contradição, a escritora atua também na área clínica e, embora reconheça que a psicanálise possa inspirar a atividade escrita, ela afirma manter, de forma deliberada, uma distância considerável entre sua prática clínica e a produção de narrativas literárias.

             No contexto de sua poética questionadora, a voz lírica interpela: “Quem tem medo da folha branca? Da face branca, dos olhos claros que procuram selar destinos?” Diante dessa interrogação, ela mesma responde, provocativa:


Eu tenho medo da folha branca da História

 Lavada em sangue de tantos povos

O alvejante é corrosivo e faz mal à pele

 Foi inventado na Europa.


        Nessa perspectiva, em seu primeiro romance, Vozes de Retratos Íntimos (2021), recentemente lançado pela Editora Taverna, a autora enriquece a história amefricana com alguns relatos familiares. Ao resgatar a memória de sua ancestralidade, Ohnmacht celebra suas origens afro-indígenas e europeias, promovendo reflexões essenciais a respeito das identidades, no contexto da pós-colonialidade.

            Diante disso, a própria autora afirma: “Escrevi Vozes de Retratos Íntimos inspirada em histórias contadas na minha família, mas nem todos os personagens são históricos, contudo, o personagem João realmente existiu”. E o romance corrobora: “Mas por décadas o que sobrou da memória de João para a família foi a figura de um homem idealista e irresponsável, [...] Daqui de onde olho, quase um século depois, parece que todos pagaram um preço muito alto por suas escolhas...” (p. 45, 46). Não sem razão, despertara admiração: “Sim, inteligente, bonito, idealista. Um herói! Assim que o conheceu, Benedita só viu qualidades.” (p.45). Inspiração e criatividade para tecer entremeando uma colcha de poucos retalhos.

        A figura enigmática do avô levou Taiasmin Ohnmacht a desejar conhecer melhor o passado de sua família. O resultado dessas buscas foi determinante para a concretização do projeto literário da autora, que relatou a mim:


A semente do livro foi plantada quando eu redescobri a existência dele para além das esparsas falas familiares. A curiosidade em saber mais sobre ele veio por uma necessidade de resgate de meus antepassados negros e embora temporalmente ele não seja um parente tão distante de mim, eu não o conheci; tampouco a narrativa familiar me ajudou nessa busca. Meu avô era aquariano e talvez fosse preciso esperar a existência de uma tecnologia que resgatasse o passado para reencontrar alguns traços dele. Foi através de pesquisas na internet que tive contato com textos que registram uma época de sua passagem pelo mundo, fase de muitas lutas políticas, de entrega da própria vida a uma causa justa. Não sem consequências: a pobreza e a prisão.

 

            Ao tatear as marcas deixadas pelo avô, a autora construiu esse conjunto de narrativas que remetem ao passado familiar e se conjugam não apenas entre si, mas também a outras histórias de pessoas e fatos e lugares, todas, de alguma forma, conectadas em tempos e espaços que compõem uma história maior. Em primeira mão, a autora nos revela:


Em um dos desvios de minha trajetória trabalhei no sistema penitenciário, sabe-se lá se algo em mim pensou em encontrar alguma pista do vô João naquelas grades. Trabalhar no cárcere é doloroso para quem espera por Justiça e acredita nos Direitos Humanos. Bem melhor foi encontrar João Adderley nas páginas da história.


        Consciente da grande responsabilidade herdada dos griôs, Taiasmin Ohnmacht reconhece: “Assim, a narrativa foi se transformando da história de um homem para a história de muitos. Muitos mais do que somente os meus e isso me autorizou a contá-la”. Sua obra se contrapõe à uma tendência massiva, contra a qual nos alerta a escritora nigeriana Chimamanda Adichie: o perigo de uma história única.

            Assim, são essas vozes plurais que encontram guarida em narrativas como o romance e os contos da escritora porto-alegrense que se somam para fazer frente a essa importante missão de contar as histórias secularmente silenciadas. Por outro lado, revelar ao leitor essa multiplicidade de olhares, de visões e de experiências que permite ampliar a compreensão dos fatos sobre nós mesmos e sobre o nosso país.

            Recebemos o primeiro romance de Taiasmin com a certeza de que a literatura é também o lugar da desconstrução de estereótipos limitantes a respeito do nosso povo brasileiro. A constituição múltipla e plural de nossa sociedade faz com que a diversidade deva ser celebrada como valor e isso pode contribuir com a minimização dos preconceitos que interferem de forma negativa nas interações sociais, não apenas no âmbito familiar. Compreender as trajetórias das famílias, nesse cenário, torna-se fundamental para a compreensão dos fenômenos que permeiam a nossa história de nação. Como já disse, na linda canção Tocando em frente, o poeta violeiro Almir Sater: “Cada um de nós compõe a sua história”.

           Nesse sentido, percebemos que as vozes ancestrais ecoam fortemente nessa narrativa intrigante e complexa, em que o deslugar já era determinante de subjetividades, desde antes da travessia do Atlântico. Há também relatos que refazem a trajetória do bisavô para o Brasil, sugerem esse sentimento de inadequação por parte do bisavô que vivia na Suíça: “Alvo das chacotas de crianças e de jovens de sua idade, pela estatura baixa e por seu sobrenome, Carlos Ohnmacht precisou se impor pela força desde muito novo...” (p.25), e a narradora reitera: “Veio para o Brasil sozinho, fugindo de sua própria ira, uma história que para a família não existe, mas que meu pai não deixou de me contar”. (p. 24). Não vou dar o “spoiler”, no que diz respeito à vinda de Carlos Onhmacht para o Brasil, antes recomendo a leitura do livro.

                No cenário desse romance, desenrolam-se as cenas revisitadas e ficcionalizadas, em que escritora completa os quadros escuros da memória e supre lacunas dos poucos retratos dos quais ela extrai cativantes narrativas. Na obra, lemos: “... não se conta uma história sem algum grau de profanação...” (Ohnmacht, 2021, p.13), mirando-se no espelho de Oxum. Nesse universo de resgate histórico e de ficção criativa desfilam figuras que bem poderiam povoar os livros de uma verdadeira História do Brasil. Uma História que tivesse sido contada originalmente por quem vivenciou os acontecimentos e fatos.

            Em seu trabalho de mineração para a construção narrativa, as variadas tramas se erguem majestosas refazendo o caminho histórico da família que, em alguma medida, se confunde e se mescla à história da sociedade brasileira. Essa mesma história que vem sendo sistematicamente negada e silenciada, ao longo dos séculos, pelos discursos da branquitude. Esse encontro permite aos leitores e leitoras compreender que há uma multiplicidade de vozes no tecido social, cultural e histórico e que todas merecem ser conhecidas.

            Em meio às lutas ferrenhas pela sobrevivência nos espaços urbanos hostis, a avó Benedita é apresentada:


 Minha avó também construiu a própria casa, sozinha, estilo fugindo da favela. Era muito econômica e seu maior orgulho era ter conseguido comprar um terreno regularizado e abandonar o quarto de despejo. Entre comprar o terreno e construir sua casa, levou um tempo de idas e vindas entre a favela e o bairro na zona leste de São Paulo, carregando material como podia. Seus vizinhos a chamavam de preta metida (OHNMACHT, 2021, p.31).


            A autora ressalta a figura altiva da avó com a qual manteve pouco contato e reitera; “A morte insiste em pontuar sua vida, zombando de seu nome de batismo – Benedita. (2021, p.31). A luta e a vitória de uma mulher negra e pobre para garantir moradia na selva de concreto não é reconhecida como conquista pelos vizinhos. Do contrário, o racismo fez com que ela fosse vista e tratada como intrusa, naquele espaço.

        A avó Benedita não pode conhecer a mãe, que morreu no parto. Mulher indígena raptada de sua aldeia durante um ataque:


Então Sebastião a viu. Estava assustada e se escondendo ao lado de uma construção de pau a pique, já nas imediações da mata. Mas um pouco e teria conseguido fugir, mas para onde? Era bastante jovem e linda. Sem pensar muito, Sebastião a pegou pelo braço e a levou consigo. Ninguém questionou, não era algo incomum. Quando faziam expedições ao interior, costumava acontecer de alguém voltar com uma índia na garupa. (OHNMACHT, 2021, p.41)


            E assim, a narrativa vai confirmando o suplício das mulheres ao longo dos processos de formação do que se concebe hoje como a sociedade brasileira. Mulheres negras, indígenas e pobres massacradas, estigmatizadas e silenciadas, mas que não se abalam, não desistem e não se calam diante das injustiças.

            A escrita das mulheres tem esse poder revolucionário de reposicionar os fatos e os lugares sociais. São escritos que apresentam a vantagem de trazer para a cena literária vozes e tramas silenciadas pelo discurso oficial que elegeu o cânone como referência de valor e de prestígio na literatura.

            Que o protagonismo dessas mulheres intelectuais negras brasileiras seja inspiração para muitas outras mulheres e que possamos usar a palavra escrita como instrumento de superação do silenciamento dessas vozes e das injustiças cristalizadas em nossa sociedade. Só assim, a hipocrisia, o machismo e o preconceito serão combatidos com veemência. Eu parabenizo a escritora Taiasmin Ohnmacht e espero que seu protagonismo seja contagiante para as leitoras do nosso blog Feminário Conexões.



quarta-feira, 18 de agosto de 2021

PROTAGONISMO FEMININO EM FOCO: AURITHA TABAJARA


 

 PROTAGONISMO|01


A FORÇA DA MULHER INDÍGENA ROMPE ESTEREÓTIPOS A PARTIR DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA


 POR HELIENE ROSA


    A presença feminina na literatura indígena brasileira contemporânea vem sendo motor de transformações importantes tanto no imaginário social quanto no contexto das representações dos indígenas na atualidade. Essa força feminina vem sendo constituída, gradualmente, a partir do final do século XX, através de obras literárias produzidas por autoras indígenas, cujo trânsito entre cidade e aldeia, oralidade e educação formal, línguas ancestrais e idioma oficial é vivenciado diretamente por elas e pelo conjunto dos povos originários, entre eles, os Tabajara, que reivindicam seu direito à identidade e à ancestralidade.


    Como forma de contribuir com o combate ao preconceito e à discriminação contra a mulher indígena nordestina, desponta no Ceará, a literatura de cordel indígena brasileira com a guerreira Auritha Tabajara, falante da língua Tupi, cujo nome tem o significado de “Pedra de luz”. Ela nos conta que foi registrada de acordo com a tradição religiosa, com o nome de Francisca Aurilene, nome de Santa. A primeira cordelista indígena brasileira aprendeu a ler e a escrever na rima: ouvindo, nas tardes de domingo, seus tios e padrinho declamarem versos do poeta Patativa do Assaré. A poética popular ficou gravada na memória da narradora, além da forte influência de sua avó Francisca Gomes de Matos, que contava histórias em forma de cordel.


        A literatura de cordel brasileira tem seus temas focados em histórias encantadas de reis e de rainhas, dramas românticos, reinos distantes e irreais, e também da epopeia do cangaço. Em contrapartida, surge a literatura de cordel indígena, trazendo à tona a realidade da mulher indígena e nordestina: uma princesa destemida, heroína, “filha da mãe natureza”, que superou inúmeros obstáculos e preconceitos e hoje se destaca na literatura de autoria indígena contemporânea do Brasil. Ela traz a voz da mulher indígena, desconstruindo assim, visões estereotipadas dessas mulheres, que foram construídas pela prevalência do olhar europeu e disseminadas de variadas formas, inclusive pela literatura canônica brasileira.   


       Em seu livro “Coração na aldeia; pés no mundo” (2018), a autora nos apresenta a escrita de si e resgata elementos de sua memória afetiva. Assim, a protagonista, como mulher indígena, situa leitores e leitoras, promovendo uma ruptura, a partir da adaptação das personagens do cordel da literatura tradicional.


        A autora se apresenta como indígena, rompendo com o estereótipo de que no Nordeste não pode haver uma princesa encantada. Ressalta os valores indígenas e vai tecendo sua narrativa poética na sequência dos acontecimentos, desde a infância:


Peço aqui, Mãe Natureza,

Que me dê inspiração

Pra versar essa história

Com tamanha emoção

Da princesa do Nordeste

Nascida lá no sertão.

 

Quando se fala em princesa

É de reino encantado,

Nunca, jamais, do Nordeste

Ou do Ceará, o estado,

Mas mudar de opinião

Será bom aprendizado. 

 (TABAJARA. p. 6)

 

        A alteração do foco narrativo torna as cenas mais poéticas “[...] Nasceu uma indiazinha, chorando bem alto e forte”. Ela relata costumes do povo Tabajara, como a contação de histórias e vai se autoafirmando, ao se identificar positivamente como indígena Tabajara, em construção poética bastante criativa e atraente. O texto tem fluência e ritmo   incomparáveis e não deixa escapar a cultura, os valores, as crenças, os costumes do povo Tabajara e um pouco da memória afetiva da autora.


        Ela nos conta que, desde pequena, não gostava de meninos: “Não gostava de meninos, E não sabia lidar.” O preconceito e os olhares de reprovação representam um alto desafio para a princesa do Nordeste que rompe com estereótipos e assume a sua identidade de gênero, conforme suas preferências afetivas. É a voz da mulher na poesia que abre passagem para as diferentes subjetividades na cena do debate contemporâneo. É essa voz feminina indígena que reafirma poeticamente que toda forma de amar deve ser respeitada e valorizada na sociedade.

 

       Assim, essa poética feminina diversa, plural e acolhedora de subjetividades díspares leva o leitor a compreender o potencial de tensão dos enfrentamentos e dos desafios da mulher indígena nordestina, na sociedade brasileira, na contemporaneidade:


Agora eu tenho em mente

Um desafio a enfrentar

Refazer minha história

Sem desistir de lutar

Tantas noites eu chorei

Quanta tristeza passei ...

Não dá nem pra imaginar

 (TABAJARA, p. 32)

 

      Ela aborda incoerências da sociedade de classes de base capitalista e dos padrões impostos pelos donos do poder, em um cenário onde sempre prevalece quem tem mais dinheiro.


        A guerreira tabajara expressa também, por meio de seus versos, o desejo de lutar contra o preconceito no Brasil. Ela reconhece o poder de luta e de transformação que a arte de poetar lhe confere. Trata-se de uma guerreira, cujo baluarte são as letras, com elas compõe seus versos. Uma heroína que empunha a palavra poética como o seu aparato de luta para auferir conquistas:


Esta é minha história,

Tenho muito pra contar.

Feliz eu serei um dia

Se o preconceito acabar.

Letras são meu baluarte,

Relevo com minha arte

Um Brasil a conquistar.

 (TABAJARA, p. 40)

 

       A autora segue revisitando a adolescência, seu bom relacionamento e aprendizado com a avó, que a criou e relata sobre o preconceito e o bullying sofridos na escola, onde, com apenas sete anos de idade, aprendeu a ler. A moça revela que, aos treze anos, saiu da aldeia e foi conhecer a experiência de viver a cidade, sua família ficou muito preocupada. Ela viu a onça pintada, ao atravessar a mata, mas saiu-se ilesa da situação, pois Tupã a preservou.


      Moça esperta e de beleza exuberante, a narradora começou a ser percebida e assediada pelos rapazes da cidade. Então decidiu partir para a capital. Fortaleza a recebeu e ela encontrou trabalho na casa de um deputado. Entretanto, mais uma vez, percebeu que seria explorada. Logo decidiu retornar para a aldeia e esquecer o passado sofrido longe de sua casa. Auritha então se casou e teve quatro filhos, mas perdeu dois: ficaram duas meninas. Depois disso, separou-se do marido.


       Estudou magistério indígena e compôs o livro “Magistério Indígena em verso e poesia” (2007) com a experiência adquirida no curso. Auritha relatou, em versos, as histórias de seu povo na aldeia, em seu livro, que ganhou contornos didáticos, tornando-se leitura obrigatória em escolas geridas pela Secretaria do Estado do Ceará. Depois disso, nossa guerreira viajou para São Paulo e lá enfrentou a escassez e ficou sem dinheiro. Então, o ex-marido tomou-lhe a guarda das filhas. Ela chorava muito de saudade:


Vivo na cidade grande

Mas não esqueço o que sei

Difícil é viver aqui

Por tudo que já passei

Coração bom permanece

A essência fortalece

Ante o pranto que chorei.

(TABAJARA, p.36)

 

    Ao final da trama narrativa, a autora agradece ao Deus Tupã e ao povo Tabajara.


Agradeço a Tupã

Por me guardar e inspirar.

Ao meu povo Tabajara,

Pela vida me ensinar.

Se você é como eu,

Sofre ou antes sofreu,

Não desista de lutar.

(TABAJARA, p.40)

 

     Os espaços são referenciais e contribuem para a composição da magia presente na narrativa. Essa magia é balizada pela ancestralidade e reforçada pela presença da avó como mestra inspiradora, contadora de histórias e educadora. Essa forte influência na constituição do projeto de escrita da cordelista Tabajara dá relevo à questão da oralidade que é constitutiva da poética dessa autora e manifestada pelos versos de cordel.


        A literatura indígena brasileira de cordel carrega esse tom de poesia social e denuncia o preconceito e as violências contra as mulheres. A escrita dessa guerreira do povo Tabajara marca a presença e a força da mulher indígena brasileira na literatura, ocupando espaços e rompendo com o silenciamento secular das vozes femininas indígenas imposto a partir da dominação europeia.


        Sua voz feminina resgata as vozes ancestrais que foram caladas por força dos estupros e dos assassinatos ocorridos a partir das violentas invasões aos territórios ancestrais indígenas, como efeito nefasto da colonização e da neocolonização em terras brasileiras. Seus textos dão visibilidade aos povos indígenas, sobretudo ao povo Tabajara em suas manifestações mais genuínas, pois é uma mulher indígena Tabajara que enuncia poeticamente a partir de suas memórias e de sua subjetividade.


        A literatura abre espaço para essa autoexpressão que empodera a mulher indígena e faz com que sua voz ecoe e seja ouvida, de forma a romper com o silenciamento secular de vozes exiladas, no contexto da sociedade brasileira. Esse fato aponta para grandes transformações, possíveis a partir do reconhecimento do valor das epistemologias ancestrais desses povos, na simbiose com a natureza e no respeito à sacralidade da Terra.


        Desse modo, anuncia-se a possibilidade da construção de novas visões e de novas formas de estar no mundo, considerando-se o desenvolvimento de posturas mais sustentáveis por parte das pessoas. Trata-se de engendrar, a partir da literatura, uma consciência holística que possa contribuir para a melhoria da qualidade de vida das populações, de forma geral, a partir de uma relação menos predatória e, portanto, mais equilibrada com a nossa Mãe Terra.




segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Gratidão em cores


Crônica /01

 

Por Eva Potiguar

 

O ano de 2020 está quase se despedindo e não será capaz de levar consigo tantas coisas que ainda levarão muito tempo para consumar.  Ficarão saudades eternas de entes amados que não poderemos enviar uma mensagem pelo celular, ou por e-mail para desejar um “feliz 2021”. 

Ficarão na memória as imagens dos momentos vividos em família e com amigos em dias de sol, ou de chuva. 

Ficarão as sementes de nossos sonhos e dos projetos idealizados, que aos poucos poderão ser transmutados em outras perspectivas, com novos companheiros e companheira de semeaduras. Ficarão as lições, as orientações e os segredos que aqueceram nossas mentes e corações em diferentes contextos de empatia e de acolhimentos mútuos.  Tais memórias serão lembradas, sobretudo, com gratidão.

Não registrarei as lamentações, nem as decepções, ou as dificuldades políticas e profissionais.  Elas ficarão no passado, mas respeitarei as lições apreendidas. Brigar, ou reclamar, não me fará bem, não irá estimular nenhuma positividade com o meio social e, muito menos, farão minha alma ter leveza e paz. 

O que decido investir é fazer o contrário.  Sim, agradecer, buscar humildade e sabedoria para compreender a minha responsabilidade nos fatos que me sucederam, me perdoar e perdoar, me fortalecer e seguir essa senda existencial sem abrir mão de enfrentar as cinzas.  O que seria da vida sem as possibilidades de pintá-las em constante harmonia com os nossos desejos e as necessidades do outro?

A gratidão eu escolhi como a minha cor favorita, não como modismo #gratidao, mas consciente de que se trata de uma atitude saudável e coerente com a vida, em função do equilíbrio espiritual e social comigo e com o outro.  Não adiantaria falar ou escrever uma palavra no vazio de seu sentido e significado.  Seria inútil e alienante, seguir uma tag que apenas exala superficialidade. 

Mas, agradecer pelo quê?

Gratidão pela existência de tantos amores vividos em suas diferentes cores e formas. O amor do abraço quente, de aura azulada de paz, o amor do olhar de amizade sincera, de luz amarela de alegria em se doar, o amor de gestos de bondade, de raios prateados em servir. Tantas cores, com as suas luzes singulares no delinear da vida em comunhão. 

O ano de 2020 pode seguir com tempo no passado, mesmo deixando seus rastros no presente. Quero receber o novo ano com todas as cores que a gratidão possa me tocar e não preciso de fogos de artifícios para isso.  Basta começar pela cor do amor próprio e da esperança de recriar e redesenhar a vida com quem ela nos apresenta.  Se não der para produzir juntos, que eu faça a minha parte sem exigir, sem cobranças e, sobretudo, sem perder a fé em prosseguir aquarelando. 

Que o ano novo venha! Sou grata com as luzes da paz, da alegria e do amor em que elas me afetam, sou grata pelas sombras que as acompanham, pois sem elas, a luz não se manifestaria. 

Sou grata em todas as cores que a gratidão me toca neste momento.

Sou grata, sou grata, sou grata!!

 

Aguyjevete


Eva Potiguar



 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Eliane Potiguara: a voz da ancestralidade e das guerreiras indígenas contemporâneas

 



Autora da Vez: Eliane Potiguara/01




No campo da literatura indígena escrita por mulheres, Eliane Potiguara destaca-se como uma das figuras principais. A ancestralidade é marca indelével da obra dessa professora que se dedicou à luta pelos direitos dos povos indígenas, sobretudo pela valorização das mulheres. Filha do povo Potiguara, Eliane Lima dos Santos nasceu na capital do estado do Rio de Janeiro, no ano de 1950, no seio de uma família indígena desaldeada (sua avó e tias foram desalojadas das terras ancestrais na Paraíba).

O convívio com a matriarca indígena parece ter sido determinante para a definição do projeto de escrita de Eliane Potiguara. A constituição da narradora e dos princípios éticos e morais norteadores de sua trajetória como intelectual, mulher e militante pelos direitos dos povos e das mulheres indígenas foram sendo gestados a partir do reconhecimento das tradições e dos valores de sua cultura ancestral e, sobretudo, do reconhecimento da luta desvelada pelas entrelinhas das histórias e pelas lágrimas da anciã potiguara.

Mais tarde, Eliane Potiguara ingressou no movimento de luta e resistência indígena e, com o intuito de que seu trabalho ganhasse mais visibilidade, passou a investir na utilização de recursos das mídias tecnológicas: administrar grupos, blog e páginas na internet para divulgar, em ambiente virtual, não apenas o seu trabalho, mas também a produção literária e artística, em amplo sentido, dos intelectuais e artistas indígenas ameríndios.

Assim, Potiguara se firmou como uma das primeiras porta-vozes das mulheres indígenas, em favor das quais criou e administra o Grupo Mulher – Educação Indígena e Rede de Comunicação Indígena (Grumin[1]), um espaço virtual, público e democrático, receptivo a denúncias, notícias, notas, releases e matérias jornalísticas sobre desrespeitos aos direitos dos povos originários. O conjunto de sua obra traduz a complexidade da trajetória de intelectual militante, cuja atuação de amplo alcance a consolida como uma das precursoras da literatura contemporânea de autoria indígena, no Brasil.

Em termos bibliográficos, as principais publicações de Eliane Potiguara são: A Terra é a Mãe do Índio (1989); Akajutibiró: terra do índio potiguara (1994); Metade Cara, Metade Máscara (2004); Sol do Pensamento (2005), e-book; O coco que guardava a noite (2012); O Pássaro Encantado (2014); A Cura da Terra (2015); e diversas antologias, nacionais e internacionais. É possível acessar o site oficial da escritora clique aqui.







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