Natural de Porto Alegre, a escritora e
poeta Taiasmin Ohnmacht tem se dedicado à atividade literária como forma de
produzir rupturas em um sistema editorial, cuja tendência predominante vem
sendo adotar e promover narrativas únicas. Sua escrita incisiva desestabiliza
esse tipo de estratégia de legitimação e de sacralização dos privilégios da
branquitude no cenário da literatura contemporânea brasileira.
Além de sua inserção na literatura,
Ohnmacht é psicóloga e psicanalista, possui mestrado em Psicanálise, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eu a conheci exercitando os
seus amplos conhecimentos acerca da teoria literária, durante a realização de
um curso de curta duração sobre poesia negra. O diálogo estabelecido com a
psicanálise foi o chamariz para esse estudo, oferecido por ela, com
desenvoltura e maestria, no site da Com verso: Psicanálise e Poesia.
Determinada a trabalhar pelo resgate
da capacidade de conviver com a diferença e a contradição, a escritora atua
também na área clínica e, embora reconheça que a psicanálise possa inspirar a
atividade escrita, ela afirma manter, de forma deliberada, uma distância considerável
entre sua prática clínica e a produção de narrativas literárias.
No
contexto de sua poética questionadora, a voz lírica interpela: “Quem tem medo da folha branca? Da face branca, dos olhos claros que
procuram selar destinos?” Diante dessa interrogação, ela mesma responde,
provocativa:
Eu tenho medo da
folha branca da História
Lavada em sangue de tantos povos
O alvejante é
corrosivo e faz mal à pele
Foi inventado na Europa.
Nessa perspectiva, em seu primeiro romance,
Vozes de Retratos Íntimos (2021), recentemente lançado pela Editora Taverna, a
autora enriquece a história amefricana com alguns relatos familiares. Ao
resgatar a memória de sua ancestralidade, Ohnmacht celebra suas origens
afro-indígenas e europeias, promovendo reflexões essenciais a respeito das
identidades, no contexto da pós-colonialidade.
Diante disso, a própria autora afirma:
“Escrevi Vozes de Retratos Íntimos inspirada em histórias contadas na minha
família, mas nem todos os personagens são históricos, contudo, o personagem
João realmente existiu”. E o romance corrobora: “Mas por décadas o que sobrou
da memória de João para a família foi a figura de um homem idealista e
irresponsável, [...] Daqui de onde olho, quase um século depois, parece que
todos pagaram um preço muito alto por suas escolhas...” (p. 45, 46). Não sem
razão, despertara admiração: “Sim, inteligente, bonito, idealista. Um herói!
Assim que o conheceu, Benedita só viu qualidades.” (p.45). Inspiração e
criatividade para tecer entremeando uma colcha de poucos retalhos.
A figura enigmática do avô levou
Taiasmin Ohnmacht a desejar conhecer melhor o passado de sua família. O
resultado dessas buscas foi determinante para a concretização do projeto
literário da autora, que relatou a mim:
A semente do livro
foi plantada quando eu redescobri a existência dele para além das esparsas
falas familiares. A curiosidade em saber mais sobre ele veio por uma
necessidade de resgate de meus antepassados negros e embora temporalmente ele
não seja um parente tão distante de mim, eu não o conheci; tampouco a narrativa
familiar me ajudou nessa busca. Meu avô era aquariano e talvez fosse preciso
esperar a existência de uma tecnologia que resgatasse o passado para
reencontrar alguns traços dele. Foi através de pesquisas na internet que tive
contato com textos que registram uma época de sua passagem pelo mundo, fase de
muitas lutas políticas, de entrega da própria vida a uma causa justa. Não sem
consequências: a pobreza e a prisão.
Ao tatear as marcas deixadas pelo avô,
a autora construiu esse conjunto de narrativas que remetem ao passado familiar
e se conjugam não apenas entre si, mas também a outras histórias de pessoas e
fatos e lugares, todas, de alguma forma, conectadas em tempos e espaços que
compõem uma história maior. Em primeira mão, a autora nos revela:
Em
um dos desvios de minha trajetória trabalhei no sistema penitenciário, sabe-se
lá se algo em mim pensou em encontrar alguma pista do vô João naquelas grades.
Trabalhar no cárcere é doloroso para quem espera por Justiça e acredita nos
Direitos Humanos. Bem melhor foi encontrar João Adderley nas páginas da
história.
Consciente da grande responsabilidade
herdada dos griôs, Taiasmin Ohnmacht reconhece: “Assim, a narrativa foi se
transformando da história de um homem para a história de muitos. Muitos mais do
que somente os meus e isso me autorizou a contá-la”. Sua obra se contrapõe à
uma tendência massiva, contra a qual nos alerta a escritora nigeriana
Chimamanda Adichie: o perigo de uma história única.
Assim, são essas vozes plurais que encontram
guarida em narrativas como o romance e os contos da escritora porto-alegrense
que se somam para fazer frente a essa importante missão de contar as histórias
secularmente silenciadas. Por outro lado, revelar ao leitor essa multiplicidade
de olhares, de visões e de experiências que permite ampliar a compreensão dos
fatos sobre nós mesmos e sobre o nosso país.
Recebemos o primeiro romance de
Taiasmin com a certeza de que a literatura é também o lugar da desconstrução de
estereótipos limitantes a respeito do nosso povo brasileiro. A constituição
múltipla e plural de nossa sociedade faz com que a diversidade deva ser
celebrada como valor e isso pode contribuir com a minimização dos preconceitos
que interferem de forma negativa nas interações sociais, não apenas no âmbito
familiar. Compreender as trajetórias das famílias, nesse cenário, torna-se
fundamental para a compreensão dos fenômenos que permeiam a nossa história de
nação. Como já disse, na linda canção Tocando em frente, o poeta violeiro Almir
Sater: “Cada um de nós compõe a sua história”.
Nesse sentido, percebemos que as vozes
ancestrais ecoam fortemente nessa narrativa intrigante e complexa, em que o
deslugar já era determinante de subjetividades, desde antes da travessia do
Atlântico. Há também relatos que refazem a trajetória do bisavô para o Brasil,
sugerem esse sentimento de inadequação por parte do bisavô que vivia na Suíça:
“Alvo das chacotas de crianças e de jovens de sua idade, pela estatura baixa e
por seu sobrenome, Carlos Ohnmacht precisou se impor pela força desde muito
novo...” (p.25), e a narradora reitera: “Veio para o Brasil sozinho, fugindo de
sua própria ira, uma história que para a família não existe, mas que meu pai
não deixou de me contar”. (p. 24). Não vou dar o “spoiler”, no que diz respeito
à vinda de Carlos Onhmacht para o Brasil, antes recomendo a leitura do livro.
No cenário desse romance, desenrolam-se
as cenas revisitadas e ficcionalizadas, em que escritora completa os quadros
escuros da memória e supre lacunas dos poucos retratos dos quais ela extrai cativantes
narrativas. Na obra, lemos: “... não se conta uma história sem algum grau de
profanação...” (Ohnmacht, 2021, p.13), mirando-se no espelho de Oxum. Nesse
universo de resgate histórico e de ficção criativa desfilam figuras que bem
poderiam povoar os livros de uma verdadeira História do Brasil. Uma História
que tivesse sido contada originalmente por quem vivenciou os acontecimentos e fatos.
Em seu trabalho de mineração para a
construção narrativa, as variadas tramas se erguem majestosas refazendo o
caminho histórico da família que, em alguma medida, se confunde e se mescla à
história da sociedade brasileira. Essa mesma história que vem sendo
sistematicamente negada e silenciada, ao longo dos séculos, pelos discursos da
branquitude. Esse encontro permite aos leitores e leitoras compreender que há
uma multiplicidade de vozes no tecido social, cultural e histórico e que todas
merecem ser conhecidas.
Em meio às lutas ferrenhas pela
sobrevivência nos espaços urbanos hostis, a avó Benedita é apresentada:
Minha avó também construiu a própria casa,
sozinha, estilo fugindo da favela. Era muito econômica e seu maior orgulho era
ter conseguido comprar um terreno regularizado e abandonar o quarto de despejo.
Entre comprar o terreno e construir sua casa, levou um tempo de idas e vindas
entre a favela e o bairro na zona leste de São Paulo, carregando material como
podia. Seus vizinhos a chamavam de preta metida (OHNMACHT, 2021, p.31).
A autora ressalta a figura altiva da
avó com a qual manteve pouco contato e reitera; “A morte insiste em pontuar sua
vida, zombando de seu nome de batismo – Benedita. (2021, p.31). A luta e a
vitória de uma mulher negra e pobre para garantir moradia na selva de concreto
não é reconhecida como conquista pelos vizinhos. Do contrário, o racismo fez
com que ela fosse vista e tratada como intrusa, naquele espaço.
A avó Benedita não pode conhecer a mãe,
que morreu no parto. Mulher indígena raptada de sua aldeia durante um ataque:
Então
Sebastião a viu. Estava assustada e se escondendo ao lado de uma construção de
pau a pique, já nas imediações da mata. Mas um pouco e teria conseguido fugir,
mas para onde? Era bastante jovem e linda. Sem pensar muito, Sebastião a pegou
pelo braço e a levou consigo. Ninguém questionou, não era algo incomum. Quando
faziam expedições ao interior, costumava acontecer de alguém voltar com uma
índia na garupa. (OHNMACHT, 2021, p.41)
E assim, a narrativa vai confirmando o
suplício das mulheres ao longo dos processos de formação do que se concebe hoje
como a sociedade brasileira. Mulheres negras, indígenas e pobres massacradas,
estigmatizadas e silenciadas, mas que não se abalam, não desistem e não se
calam diante das injustiças.
A escrita das mulheres tem esse poder
revolucionário de reposicionar os fatos e os lugares sociais. São escritos que
apresentam a vantagem de trazer para a cena literária vozes e tramas
silenciadas pelo discurso oficial que elegeu o cânone como referência de valor
e de prestígio na literatura.
Que o protagonismo dessas mulheres
intelectuais negras brasileiras seja inspiração para muitas outras mulheres e
que possamos usar a palavra escrita como instrumento de superação do
silenciamento dessas vozes e das injustiças cristalizadas em nossa sociedade.
Só assim, a hipocrisia, o machismo e o preconceito serão combatidos com
veemência. Eu parabenizo a escritora Taiasmin Ohnmacht e espero que seu
protagonismo seja contagiante para as leitoras do nosso blog Feminário
Conexões.
Vou ler este livro, sem dúvida. Quem sabe fazer outra resenha, para convencer pessoas a lê-lo
ResponderExcluirUm romance surpreendente! Eu recomendo a leitura!
ExcluirIncrível. Instigante e potente.
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