sexta-feira, 28 de outubro de 2022

VERBO MULHER: PINTOU UM CLIMA, POR HELENA TERRA

 


V E R B O   M U L H E R|05

P I N T O U   U M   C L I M A 

POR HELENA TERRA 

          

        Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.

        Eu já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí, acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,

    Ou seja, a partir de certo momento, a covardia é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam? Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista, experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.

       Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média, que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito e sob que condições nos querem.

     Condição, aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar, gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.

      Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:

1.  Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida? 

2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.

     E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt).

AVE, CRÔNICA: CLARICE E EU, POR TAINÁ VIEIRA



AVE, CRÔNICA|05

C L A R I C E   E   E U

POR TAINÁ VIEIRA


Clarice e eu é o nome desta crônica porque se trata de um texto bem intimista, na verdade, nem era para ser compartilhado, mas preciso mostrar o quanto tempo eu perdi, menosprezando uma autora que mudaria a minha medíocre existência.  Sei, estou agindo como uma colegial, porém, eu não me importo. Clarice Lispector exerce um poder intenso sobre mim, a forma complexa e sutil de narrar, me motiva, influencia e inspira muito.  Definitivamente, Clarice é a minha autora favorita para sempre!

 Quando eu estava no curso de Letras – Língua Portuguesa, e mesmo antes do curso, eu lia muito, sempre digo que a minha jornada na literatura se deu primeiro com a leitura, isso é óbvio, não poderia ter sido diferente.  Todavia, jamais me interessei pela literatura de Clarice, por dois motivos: o primeiro era porque sempre ouvira falar que a sua escrita era difícil de se entender, muito complexa e cansativa, e o segundo motivo; era por pura preguiça de me esforçar para entender.

Eu queria algo mais leve e fácil, eu queria mesmo era sombra e água fresca, nada de olhar para as profundezas das emoções das personagens, como no romance de estreia de Clarice, Perto do Coração Selvagem. Esse romance mudou a minha vida de verdade, e isso não é um clichê. Vira e mexe, estou pensando em Joana, ó minha triste e doce Joana, quão feliz eu fui adentrando a tua infeliz história. Por várias vezes, vi-me ali, por muitos instantes tu, Joana, eras eu, vivi contigo muitas agruras e tive também quase os mesmos pensamentos teus.

Formei-me, especializei-me, o tempo passou e Clarice sempre ficou para trás na minha vida. Sentia uma raiva tão intensa quando alguém perguntava sobre algum livro de Clarice, e eu respondia que não conhecia e a pessoa se assustava, como assim não conhece nada de Clarice? Eu, retrucava, quem é Clarice na fila do pão? É mesmo essencial ler Clarice?

Comecei lendo as suas crônicas, uma coletânea, Todas as crônicas, são mais de 600. O destino armou direitinho essa cilada boa, me pegou com as crônicas, e eu conheci uma autora totalmente oposta daquela que ouvia falar, e senti um ódio tão grande de mim por me deixar levar “no ouvir dizer.”  As crônicas de Clarice são inspiradoras, nota-se a paixão pela escrita, pela Língua Portuguesa, e pelo país que ela tanto amou. Em seguida fui para os romances, me esforcei muito para gostar da Macabéa (já havia lido na época da faculdade, mas foi por obrigação) prefiro a Joana, contudo, a minha favorita é a G.H. G.H fala aos meus ouvidos, na verdade, estou ali naquele quartinho acompanhando cada cena que sua mente produz.  Vivo àquela condição humana tão banal e tão necessária, e deixo-me levar por aquele turbilhão de emoção que percorre a narrativa.

Quando estou com tempo sobrando, assisto a entrevista de Clarice concedida quase um ano antes de ela morrer.  Já fiz isso várias vezes e mais vezes farei. Tenho um álbum na minha galeria de fotos só dela. Quando penso em Clarice, lembro também de uma professora da época da faculdade que faleceu há um ano, ela amava e nos falava com paixão da obra de Clarice e dizia-me que eu precisava ler Clarice, que Clarice era fundamental. A minha professora estava coberta de razão.

Passei pelas crônicas e por alguns romances e estou finalizando os contos, os contos que quanto mais complexos, melhores são. E eu tenho certeza, jamais encerrarei as leituras, Clarice sempre estará ao meu alcance, tanto que A paixão Segundo G.H, me chama, nunca vi isso, um livro chamar por mim.

Antes de ler integralmente a Paixão segundo G.H, eu já havia iniciado umas duas vezes, e parava, não porque não entendia, mas sempre acontecia algo que fazia com que eu deixasse a leitura de lado, só que um belo dia, eu decidi, vou terminar esse livro, recomecei e em dois dias, eu estava triste porque tinha terminado, eu queria mais, queria que a leitura durasse mil e uma noites. Algo estranhamente tem acontecido, sinto uma necessidade de relê-lo.  Estou quieta, e subitamente vem uma vontade de começar a ler tudo de novo, é como se esse livro chamasse por mim.

Essa é a literatura de Clarice, poderosa, inspirável, avassaladora e dominante, quem a conhece, a compreende, não escapa mais e fica literalmente à mercê, como se dela, um leitor, necessitasse para sobreviver. A obra de Clarice é o melhor enigma para que se possa desvendar (ou tentar) antes de começar a escrever. Clarice é essencial sim.

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Tainá Vieira é poeta, cronista e contista. Radicada em Manaus desde 2001. Autora de Prosa & panela e outras crônicas, publicado em 2019 pela editora online Polaris. Tem contos e poemas em outras antologias. É a primeira autora publicada da sua cidade natal, Juruti.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

LIVROS & ENCANTAMENTOS: TRAVESSIA, DE ANA LIA ALMEIDA, POR CRIS LIRA

 



LIVROS & ENCANTAMENTOS/08

 'TRAVESSIA', DE ANA LIA ALMEIDA


POR CRIS LIRA


Hoje é dia de falar do Volume III da Coleção III do Mulherio das Letras, a novela Travessia, da autora Ana Lia Almeida. Começo dizendo que este livro me fez rir muitas vezes, também me fez chorar, e eu o li devagar, apesar de ser um livro de bolsa, porque cada um dos textos que juntos contam essa viagem, para pensar na ideia primeira do termo travessia, pressionou meus botõezinhos – para não confessar que estou pensando em inglês – em diferentes lugares.

[foto arquivo pessoal Cris Lira]

Desde menina, diante de uma certa profecia, eu decidi que não seria mãe. Há alguns meses, quando um pai de santo me disse, na Bahia, que minha orixá era Yemanjá, a primeira coisa que saiu da minha boca foi “mas eu nem sou mãe”. Ao que ele respondeu, “há muitas formas de se maternar”. Eu simpatizo com essa fala dele, mas, sei, também, que a travessia tão astutamente contada por Ana Lia Almeida é uma que eu nunca fiz e nunca farei, portanto, como eu a agradeço por ter me dado a mão, por meio do seu texto, para que eu me aproximasse um pouco do segredo.  

Dividido em três partes Quedas, Tropeços e Passagem, o livro nos atravessa, como o próprio trem de ferro, mencionado por Adélia Prado, que aparece como a epígrafe motriz do livro. Nos primeiros textos vamos acompanhando os acontecimentos à medida que a própria personagem vai vivenciando as experiências ao mesmo tempo que temos acesso à mente ansiosa, os cenários díspares que vão se formando, cada um mais caótico, tosco ou engraçado, e isso traz uma leveza ao texto ao mesmo tempo que não deixa de emprestar um pouco de ironia. Num deles, a personagem cai e pensa logo nas pessoas que podem vê-la ali, “toda suja nessa beira de calçada” (21). Dentre tantas, a maior ansiedade é que seja a sua médica, “[p]ois a médica mãe de dois filhos vai parar o carro bem aqui ao meu lado e vai me ordenar: “Levante já daí! Todas nós ficamos grávidas, não tem nada de mais” (21). Eu ri. A protagonista queria que eu risse. O jeito como conta me leva a pensar isso. Mas as perguntas que se seguem, o medo de não encontrar “o meio do caminho entre a mãe total e a desnaturada” (23) vão me chamando a escuta. Há uma mãe em construção aqui. Há um serzinho se formando e com ele há mil dúvidas e medos. Há também uma pessoa que se sente perdida de si, desencontrando-se de si mesma, “seria possível terminar o mestrado?” e que vai encontrando nos outros – especialmente nas outras mulheres – apoio e também julgamento. Apoiada neste livro, eu poderia falar muito sobre socialização feminina (a vizinha, a amiga Isadora, a mãe), o mito da beleza, solidão materna, entre outros tópicos. Nada do que eu pudesse fazer, porém, chegaria perto do trabalho feito por Ana Lia Almeida ao nos entregar essa sua travessia, ao criar as pontes para nos aproximarmos um pouco dessa experiência que, de certa forma, une as mães e, ao mesmo tempo, é sempre única e, tantas vezes, pouco revelada.

[foto arquivo pessoal Ana Lia Almeida]

Como diz uma amiga que estou sempre a citar pelas leituras que faço quando me deparo com sua voz a partir do que me traz os livros, a vida é uma contradição. Não há situações ideais, tudo está sempre em constante mudança. Permanecer enquanto se faz a travessia desses espaços turbulentos e contraditórios é o que tonaliza a vida. Por isso, deixo com vocês uma das partes do livro de que gostei mais:

Leite

“Meu peito esquerdo estava quase sangrando quando resolvi dar uma mamadeira de leite em pó a Nina. Não bastasse eu me sentir uma fracassada por isso, ainda tive de lidar com o julgamento dos outros. Minha mãe, quando descobriu, só faltou me xingar. Isadora (*amiga – grifo meu) também não gostou. A pediatra, muito menos. Por ironia do destino, só quem me apoiou naquele momento foi D. Edna (* a vizinha).

(...)

Enquanto D. Edna preparava o crime na cozinha, eu sofria por ser tão horrível a ponto de dar leite em pó para a minha filha. Estava certa de jamais me perdoar por aquilo. Que tipo de mãe eu era, com aqueles peitos sangrando, cheios um leite que minha filha não conseguia mamar?

(...)

Tive de aguentar o julgamento da minha mãe, de Isadora e da pediatra, o que me fez voltar atrás e insistir novamente na luta de amamentar.

(...)
Quanto mais Nina mamava, mais eu doava leite.

(...)

Quanto mais se dá, mais se tem: amor, vida, leite. Uma lição a cada mamada. Toda vez que me sentia alegre, meu peito começava a vazar. O amor jorrando em líquido, uma explosão de vida no meu corpo” (63-66)

Aprendamos a escutar as mães. Uma escuta verdadeiramente empática e tranquila, sem julgamentos. Deixo aqui o convite para que conheçam essa mãe se construindo na e pela palavra de Ana Lia Almeida. Espero que riam junto comigo.

Até o próximo volume!

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Ana Lia Almeida é natural de Recife/PE e mora em João Pessoa/PB, onde leciona para o curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Ainda nas primeiras incursões pelo mundo literário, é autora de “Curtinhas da Quarentena”, livro de mini-crônicas publicado também pela Ed. Venas Abiertas, e da série de contos “Rita na Luta”, publicada quinzenalmente em seu blog Salto de Palavras. analiavalmeida@gmail.com @ana.lia.almeida



Cris Lira é paulista e escreve desde que se entende por gente. Com a Editora Venas Abiertas, participou das Coleções I, II e III do Mulherio das Letras. Seu mais recente livro, Fragmentos do Interior, foi lançado em 2021. Atualmente, é professora e supervisora do Programa de Português da Universidade da Geórgia, em Athens, nos Estados Unidos. Redes Sociais: Instagram: @lircris Facebook: facebook.com/cris.lirica Youtube: Vamos ouvir o Mulherio

terça-feira, 18 de outubro de 2022

SUSTÂNCIA - SOBRE SEXO E VIDA, POR ROSANGELA MARQUEZI


SUSTÂNCIA/02


 SOBRE SEXO E VIDA


POR ROSANGELA MARQUEZI


Hoje, quando acordei, me deu uma vontade de sussurrar no seu ouvido e dizer vamos fazer amor... Acordei com vontade de sexo e essa vontade, depois de uma certa idade, não é diária não. Não diria que é rara, mas é demorenta! E aí... como você não estava lá e sozinha não era o que eu queria, resolvi escrever sobre, porque afinal, a escrita é um modo de prazer, principalmente se pensarmos o texto a partir da acepção derrideana de mimesis, em que o real é, de certo modo, réplica do que já foi contado, descrito...


Mas aí também já é muita filosofia para algo que deveria ser bem mais simples, olho no olho, corpo no corpo... Então, c’est la vie! A gente vai fazendo e desfazendo a vida, ou – como já citei Derrida – construindo e descontruindo a vida da forma que a gente pode e quer. E viver, como dizia o grande Guimarães Rosa, “é muito perigoso”, mas também é gostoso. Penso que é nos aprendizados que a gente concebe a vida...

E se de sexo passei para a vida é porque ambos são inseparáveis, se não quisermos imaginar uma sociedade à la Admirável Mundo Novo, ou a qualquer outra história de mundos distópicos, nos quais a perpetuação da espécie é em laboratório, apenas... E se são inseparáveis, é de se pensar que – no tempo atribulado em que estamos vivendo – há muita gente sem vida, ou sem sexo...

Manter o desejo, essa pulsão pela vida ou pelo sexo, não é fácil depois de um dia cansativo, em que o trabalho é que determina o resto de nosso tempo... Felizes e afortunados os que – ao fim de um exaustivo dia – ainda mantém essa pulsão viva! O cansaço, as dores, as angústias, as descrenças e a desesperança matam vontades, lavam libidos, levam desejos embora!

Enfim, que o “meu” desejo transformou-se em texto e, nas tessituras da vida, vou levando e abraçando o que vem pela frente, na ânsia de calmaria dos fortes ventos que nos desmantelam. E tecer a vida é, também, escolher os fios e cores que combinam... Ou não, já que cores são apenas uma percepção visual. A grande questão que se põe é, então: educar o olhar para boas escolhas de sexo e de vida!

E, para boas escolhas, corpo e alma precisam conversar mais demoradamente para que a vida ande nos eixos – não que andar fora dos trilhos não seja bom, de vez em quando...

Abraço. Seja feliz.


DICAS DA SUSTÂNCIA


1. Aprecie a obra O abraço (The embrace – Lovers II), de Egon Schiele. Pintada em 1917, no Expressionismo vienense, a pintura mostra dois corpos nus, em um abraço, entregando-se ao desejo, em uma praia. Por ser expressionista, nos leva a aquele lugar, como se fôssemos voyeurs a liberar toda a nossa curiosidade. É uma pintura belíssima. Aproveite e visite o site em que estão as outras pinturas de Schiele: http://www.egonschieleonline.org/ .  


2. Ouça Amor I love you, de Marisa Monte, com participação de Arnaldo Antunes recitando um trecho de O primo Basílio, de Eça de Queiroz. Marisa compôs a música em parceria com Carlinhos Brown. Música linda, que arrepia e faz querer contar “[...] pras paredes / Coisas do meu coração”. O excerto recitado por Arnaldo:

[...] tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações! 

3. Leia O primo Basílio, do escritor Eça de Queiroz! Publicado em 1878, o romance conta a história de Jorge e Luísa e, é claro, do primo Basílio, com o qual a protagonista se envolve acreditando ser amada... Retrato da burguesia da época, o romance é um dos mais importantes do Realismo Português. Nele, o autor analisa de uma forma dura e crua a sociedade e suas hipocrisias. Luísa é uma personagem emblemática, que permanece na vida da gente mesmo após o término da leitura. Delicie-se com mais um trechinho do livro, que vem na sequência do que é declamado por Arnaldo Antunes em Amor I love you:

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve, o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já não se vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar — seria verdade então o que dizia Leopoldina, que não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita? Tinha um amante, ela! 

4. Assista a série Modern Love, na Amazon Prime. São duas temporadas, uma de 2019 e a segunda de 2021. A série é baseada em uma coluna do New York Times, de título homônimo, e apresenta, de acordo com o The Hollywood Report, o amor em suas inúmeras formas: sexual, romântico, familiar, platônico e também o amor próprio. Até o momento, são duas temporadas! Ah! Na segunda temporada tem o astro de Game of Thrones, o maravilhoso Kit Harington, no terceiro episódio, fazendo, inclusive, uma referência ao seriado!

5. Leia Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, para lembrar sempre o perigo que corremos, enquanto humanidade, de nos desumanizarmos!! O livro foi publicado em 1932 e a sua narrativa se passa numa Londres futura, do ano 2540... Mas que parece cada vez mais perto!! O título vem da peça A tempestade, do imortal dramaturgo inglês William Shakespeare.



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Rosangela Marquezi
[foto arquivo pessoal da autora]



Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação, mas aprendente de novos olhares por opção... Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.


VIVÊNCIAS POÉTICAS: SOBRE GRANDES PAIXÕES, POR MARIA DO CARMO SILVA

 


VIVÊNCIAS POÉTICAS|01

SOBRE GRANDES PAIXÕES

POR MARIA DO CARMO

        

        O meu fascínio pela leitura remonta a época em que eu cursava as séries iniciais (o Curso Primário). As capas dos livros, com um designer não tão atrativo como atualmente, já aguçava o meu desejo de adentrar em suas páginas e mergulhar no universo da leitura. Posteriormente, à medida em que avançava nos estudos, galgando outras séries, o prazer pela leitura era aguçado com mais intensidade em mim e consequentemente o gosto pela escrita, também. Gostava de expressar os meus sentimentos e inquietações nas redações escolares, nas cartas endereçadas aos familiares e amigos e nos Cadernos de Recordações organizados por colegas em final de ano letivo. Este AMOR pela leitura e pela escrita, seria uma profecia de que num futuro distante eu me tornaria professora, poeta, escritora?

        Concluí o Curso do Magistério, começando a lecionar no ano seguinte nas séries iniciais, o que reforçava ainda mais o meu interesse pela leitura. Ficava encantada com as poesias e fragmentos de textos poéticos com os quais me deparava nos livros didáticos e nas colunas de revistas e jornais. Após mais de uma década de conclusão do Magistério, ingressei na Faculdade onde cursei Licenciatura em Geografia. O meu encantamento com a leitura e a escrita prosseguia.

        Continuo atuando no exercício do Magistério, utilizando um momento da aula para divulgar a literatura, escrevendo e comentando fragmentos de textos de poetas contemporâneos, pois acredito que o incentivo à leitura, à escrita e à Cultura Literária, bem como a valorização dos escritores/as, de suas produções e a descoberta de futuros escritores/as, perpassa por pequenas ações como esta que costumeiramente faço nas turmas onde leciono.

        Após décadas de muitas leituras e escritas,  adentrei no universo literário como poeta, já possuo duas obras poéticas lançadas e neste universo, deparei-me com uma infinidade de escritoras, as quais considero SUSTENTÁCULO na minha trajetória literária! Elas exercem com muito carinho e competência o papel de ATIVISTAS LITERÁRIAS, acolhendo, incentivando, lendo, divulgando e promovendo oportunidades de visibilidade às produções de autoria feminina. Em breve irei discorrer sobre estas mulheres.

        Partilho com vocês um pequeno poema autoral que considero como minha identidade literária, pelo fato de ressaltar os principais instrumentos que me conduziram ao mundo da leitura e da escrita e fazendo com que por ele me encantasse: 


O ABC, a cartilha e o dicionário


“Sou artesã da palavra! 

No ABC principiei, na cartilha soletrei. 

No dicionário me afeiçoei, na trajetória humana me inspirei! 

Teci versos, construí rimas, muitos poemas confeccionei. 

Eles são a minha Obra-prima!


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Maria do Carmo é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A CASA DA JOAQUIM NABUCO, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|05

POR RITA ALENCAR CLARK

A CASA DA JOAQUIM NABUCO


                                                                               [Para Alencar e Silva]


        Quando penso naquela casa, a casa de meus pais, vou embrenhando em histórias que se confundem com a própria história da cidade. Nos dias tumultuados da minha juventude, vividos na casa da Joaquim Nabuco, em Manaus no começo dos anos oitenta. A época “pré-direta já” explodia em manifestações artísticas, movimentos literários e pensamentos vanguardistas, revolucionários. Para muitos resistência, para outros necessidade de expressão, para todos o desejo de retomar nas mãos a liberdade de um país sequestrado pela ditadura. Ali, no porão da casa, a Democracia já se instalara. Esse era o propósito da casa.


        Às 11 horas da manhã de sábado, invariavelmente, começavam aparecer os primeiros convidados, aqueles que de fato tinham recebido o convite de meus pais para o almoço, precedido de aperitivos no “Porão do Poeta”. Mas isso não impedia que outros, não convidados formalmente, de passagem adentrassem atraídos pela alegria, pela música e pela poesia ou para se deliciar com as iguarias que saiam da cozinha de minha mãe. Entre amigos e parentes havia vários grupos interagindo, os poetas, os artistas em geral, primos que já eram de casa, mas tinham os primos e amigos que estavam de passagem pela cidade, vinham do Rio, de São Paulo, Fortaleza, Recife… a família parecia não ter fim.


        Nesses encontros, a casa era plena, na parte de cima ficavam os quartos, as salas e a biblioteca. Pé direito de seis metros, as portas eram altíssimas, com uma espécie de claraboia vazada  por cima para o ar circular e formar uma corrente de vento, bem ao estilo Português do começo do séc. 20. Era desconfortável e mal dividida, meu pai a reformou e mandou construir mais um banheiro na parte de cima. Imagina, uma casa de 300 metros quadrados com apenas um banheiro… no entanto, lá no porão havia mais dois banheiros geminados. Fiquei sabendo tempos depois que, antigamente, o costume era apenas as mulheres usarem o banheiro de cima, os homens usavam os outros, que, pasmem, não eram cobertos  totalmente e ficavam em área aberta no quintal. Nos dias de sarau eram disputadíssimos!


        Num desses dias, um sábado de manhã, chega Luiz Bacellar, poeta amigo de longa data, tocou três vezes a campainha, batendo palmas e já impacientando-se com a demora. Meu pai gostava de atender, mas até ele escutar… usava aparelho para surdez e, poeta, nem sempre estava sintonizado com o mundo aqui fora. Tínhamos que avisá-lo. As risadas já começavam a se insurgir no portão. Vai ter festa na casa da Joaquim Nabuco. Depois, quem quisesse ficar era bem-vindo, quem não queria, estava livre desde que arrumasse a casa e deixasse as camas feitas. Regras da casa, afinal eram cinco filhos. Eu ficava quase sempre. Nesse dia teria um passeio de barco com amigos. Bacellar era muito curioso e sem rodeios perguntava, enquanto eu  fazia retoques na maquiagem, “Vais para onde?” Preciso fazer uma pausa aqui para explicar, na sala de jantar ficava um móvel, uma cristaleira imensa que teria sido da mãe de meu pai, devia estar na família havia uns 30 anos, calculo, era ótima para se maquiar, tinha uma parte central, que imagino ter sido criada para ser um bar, todo espelhado por dentro com pequenas lâmpadas. Um camarim perfeito no lugar errado. Que seja. Continuando a conversa com o poeta “Estou indo passear de barco”. Ele fazia cara de quem iria embora e voltava “ Com quem vais?” “Com meu namorado” Ai… me arrependia sempre, agora viria a inquisição. "A que família pertence esse namorado?” “Ele não é daqui, é de São Paulo.” “Huuum sei…forasteiro!” Ríamos juntos e ele saía em busca dos tira-gostos na cozinha. Bacellar era uma figura!


        Começava o sarau, quando eu ficava em casa, tinha que trabalhar, era copo e prato para recolher o tempo todo. Nessa época tínhamos sempre pessoas para nos ajudar, gente que vinha do interior, da terra de minha mãe, meninas e meninos que estavam vindo para estudar com vislumbres de uma vida melhor. Minha mãe, assistente social, não negava acolhimento em nossa casa. Arranjava um colégio, um internato, ajudava nos livros, roupas, aconselhamentos…até seguirem seus rumos. Havia um menino, que foi destacado para a função de "babá" do irmão temporão; o Joaquim. O único que aguentava o pique do irmãozinho, o único que tinha pernas e malandragem pra correr atrás do lourinho fujão pelas calçadas da Joaquim Nabuco, quando algum descuidado esquecia o portão aberto. Joaquim, “o babá”, fazia resgates memoráveis! “Pega o lourinho…”


        Agora a gente ri, mas na época nós surtávamos! Lá pelas tantas, depois de muita cerveja e bolinho de pirarucu com molho de tucupi, vinham as bandas de tambaqui e a caldeirada salvadora.


        Minha mãe tinha esperanças que após tanta comilança, partiriam felizes para suas casas. Só que não. Uns remanescentes ficavam e se alongavam como se nunca mais fossem se ver…era  a poesia brotando em carne viva naquele espaço de tempo, agora eu sei, era a própria história da nossa literatura se tornando eterna naquelas tardes; versos de Tufic, com seus aromas do Líbano, Elson Farias e seus cantos lendários, Luiz Bacellar com sua "Frauta de Barro", Antísthenes Pinto, já meio alterado, explodindo em versos e  meu pai já em êxtase galopando os versos de seu “O cavalo de Brahma”. Porão do Poeta efervescia! ah… e tinham os músicos, dedilhando canções inéditas entre pérolas da nossa música genuinamente Brasileira, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Cartola e tantos outros. A forma que dona Nair tinha de “expulsar” os retardatários, uma delicadeza inventada por ela, era servir um pudim de leite ou doce de cupuaçu entre copos de guaraná ou, pior, de coca-cola.  Dizia ela: “ para repor a glicose e conseguirem chegar em casa”... muxoxos de descontentamento se ouvia em uníssono! Mas, quem iria ousar desfazer dos doces da dona Nair?


        Hoje a casa está fechada, muitos anos se passaram, como dizia Fernando Pessoa no poema "Aniversário",  foram-se criando “grelado nas paredes”, aquela vegetação improvável e indiferente às condições climáticas, que brotam entre rachaduras causadas pelo tempo no muro das casas, pondo abaixo o telhado, as escadas, as tábuas pretas e amarelas do assoalho, as portas seculares da casa que um dia foi viva.


      "O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

       O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

       Pondo grelado nas paredes...

       O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)..." 


        Passo por lá de vez em quando e o coração aperta vendo sua decrepitude e impotência diante aos descasos imobiliários. Casa está à venda há pelo menos cinco anos e nenhuma proposta de compra e venda se concretizou. Dizem que a área não favorece, o lugar  está perigoso e tal… Então, a casa da Joaquim Nabuco, fincada no centro histórico de Manaus, junto a outras no mesmo estilo Belle Époque do quarteirão, está obsoleta e destinada ao esquecimento, ao apagamento, como os versos dos “poetas mortos” que um dia a frequentaram? Penso. Mas, ainda assim, ela resiste, alquebrada e imponente, resiste como pode. Há quem diga ouvir barulhos de vozes, risadas, bater de copos e panelas, quando de passagem pela frente, em noites  de lua cheia…devem ser as paredes exalando alegria, cantando a poesia esquecida em sonetos, versos livres e notas de jasmim. Mas, aí já é lenda! 





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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: O ARCO-ÍRIS

  


N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|05

O ARCO-ÍRIS 


“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa” (Carl Gustavo Jung).

A fala do psiquiatra Jung,   remete-nos a criança que mora em cada um de  nós e tudo que evidencia-se ao longo da nossa existência em decorrência da infância.  É dos eventos que vivenciamos nessa fase  da vida, que carregamos grande parte da nossa personalidade.

Quem não suspira ao lembrar do seu tempo de criança? Seja das alegrias,  dos momentos de fantasias, ou das tristezas e represálias...

Como disse “Casimiro de Abreu"  Oh! Que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha Infância querida que os anos não trazem mais...

Ah! O pé  no chão, as escaladas de árvores, os cordéis  lidos por minha avó , o cheirinho dos pratos deliciosos da minha mãe, os doces de pitanga,  o algodão doce no parque, as cantigas de rodas ao ar livre, as comidinhas de terra  e folhinha no quintal de casa, as minhas bonecas/filhas, os joelhos ralados,   os banhos de chuvas e nos igarapés, as pipas,  o peão rodopiando, o carrinho... A liberdade de ser menina/criança, de ter pureza, de ter um mundo de paz... A lembrança que carrego comigo é que era tudo mágico!

A magia existia, mas foi lá na infância que começou a se delinear os estereótipos, a separar cores, brinquedos, espaços... Eis então a contaminação da ideologia patriarcal.

E não é só por ai... A tecnologia chegou e a mídia e a publicidade infantil estão encurtando a infância feminina, através da erotização precoce e da adultização. Todavia, eu ainda cultivo minhas lembranças de uma infância de ingenuidade, feliz e romantizada, bem, como  por vezes, me vejo tendo comportamentos infantis. Como disse Clarice Lispector: “Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais”. 

E pegando carona nesse dia das crianças trago para vocês um texto da minha autoria:

O ARCO-ÍRIS

Quando eu era criança eu tinha as minhas crendices e fantasias; acreditava que havia um tesouro na extremidade do Arco-íris. Morava em um lugarejo, desses que não tem água encanada e nem  luz elétrica, mas a paz reinava por lá, onde eu era feliz à luz do luar e tomando banho com água de poço. Era lá que eu sonhava em um dia encontrar o meu tesouro!

- Certo dia, debruçada na minha janela, eis que surge no céu um Arco-íris.

- É hoje! É hoje! Vou alcançar o meu tesouro!

-Ah! O arco-íris, ele tem forma de escorregador (Eu pensei...). E se tivesse uma escada bem longa e eu subisse e escorregasse até a extremidade?... Mas, onde encontrar essa escada?

Desalentada, desisti da ideia e de repente meus olhinhos brilharam de alegria... Eu vi que a extremidade estava exatamente ali onde eu costumava brincar de cirandas com as amiguinhas, onde eu brincava de bonecas e jogava pedrinhas. Naquela calçada alta, onde eu ficava ouvindo a velha Iaiá contar suas estórias a luz do luar. Lá na calçada do Sr. Ribamar! Era alta! eu ia alcançar!

Corri cheia de esperanças pra pegar o meu tesouro, mas quanto mais eu palmilhava e esticava  meus passinhos mais o arco-íris se distanciava e as cores iam perdendo o seu fulgor... o arco-íris ia desaparecendo e com ele o meu sonho, o meu tesouro!

Meus olhos fotografavam aquele local, onde vi a extremidade do arco-íris. Aquele cenário explêndido, cheio de cores, não me saia do pensamento... Se o arco-íris estava ali tão próximo, porque não consegui alcançar o meu tesouro?

Quando cresci consegui entender que o arco celeste era apenas uma ilusão de ótica, mas  as cores, o fulgor e os sonhos, estavam realmente naquele local, alí onde eu brincava, onde eu ouvia as estórias da velha iaiá, onde eu cantava as cantigas de roda e acalentava bonecas, onde eu era criança... Ali onde estava a minha infância. O meu tesouro!

"A Infância é como o arco-íris, quanto mais palmilhamos, ela vai se distanciando e as cores e o fulgor vão desaparecendo.” (Rilnete Melo)

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM MAURA LUZA FRAZÃO, POR GABRIELA LAGES VELOSO


 

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |02

ENTREVISTA COM MAURA LUZA FRAZÃO

Por Gabriela Lages Veloso

“Pela maior parte da história, ‘anônimo’ foi uma mulher”. Essas palavras da escritora inglesa Virginia Woolf, referem-se à invisibilidade do trabalho feminino nas ciências, e nas artes, ao longo dos tempos. Diante disso, a literatura manifesta-se como uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber a escritora Maura Luza Frazão, que tece belas imagens e memórias, em verso e prosa.

ENTREVISTA COM MAURA LUZA FRAZÃO: 

Arquivo pessoal da autora

Maura Luza Frazão nasceu na cidade de Monção, no interior do estado do Maranhão, e hoje reside na capital São Luís. É pedagoga e pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, e em Coordenação Pedagógica. Atualmente é Professora da rede pública municipal em São Luís e em São José de Ribamar (MA). Além disso, é colaboradora da Plataforma Facetubes e atua como Delegada da Federação das Academias de Letras do Maranhão - FALMA, pela Academia Monçonense de Letras e Artes. É membro efetiva e perpétua da AMCLAM – Academia Maranhense de Ciências, Letras e Artes Militares (Cadeira nº 03). Membro correspondente da Academia Zedoquense de Letras – AZL, e, da Academia Internacional de Artes, Letras e Ciências – ALPAS. Acadêmica internacional da Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes – FEBACLA/2022 (Cadeira nº 168). Acadêmica imortal vitalícia das Academias AILAP – Academia Internacional de Literatura e Artes "Poetas Além do Tempo" (cadeira nº 42); AILB – Academia Internacional de Literatura Brasileira, ALIPE- Academia Internacional de Poetas e Escritores – (cadeira 89), e, AISLA - Academia Intercontinental Sênior de Literatura e Arte (cadeira 33). Membro efetiva da Sociedade de Cultura Latina do Estado do Maranhão – SCLMA, e, membro associada da ABPS – Associação Brasileira dos Poetas Spinaístas, e da AMEI – Associação Maranhense de Escritores Independentes. É autora das obras Revisitando Memórias em Prosa & Versos (2022) e Spinas: Nuances de Uma Essência (2021), publicadas pela Editora Versejar (SP).

Como você começou a escrever?

Sempre fui uma leitora aficionada, os livros foram meus parceiros, amigos e confidentes durante toda a minha vida. A nossa mãe, a D. Benedita Desidéria costumava nos presentear com livros em vez de brinquedos. O mais interessante nessa questão é que ela era quebradeira de coco babaçu e só tinha estudado até os primeiros anos do Ensino Fundamental e meu pai trabalhava como oleiro (fazendo tijolos e telhas). Com esse incentivo familiar, a leitura sempre foi a minha principal forma de lazer e entretenimento. Contudo, apesar de meu trajeto literário como leitora e da rica experiência em sala de aula e com Planejamentos Pedagógicos (como Professora e Coordenadora), elaborando e aplicando projetos de leitura e escrita, artigos e trabalhos de conclusão de curso (como orientadora de monografias), minha paixão como escritora e poeta só chegou com a maturidade. Atualmente até me arrisco no campo dos contos e crônicas, o meu segundo livro solo Revisitando Memórias em Prosa & Versos traz alguns contos e crônicas.  

A sua formação acadêmica, na área de Pedagogia, tem alguma influência na sua escrita literária?

Sim. De certa forma a bagagem que trazemos da formação acadêmica sempre acaba reverberando em tudo o que nos propomos a fazer e/ou escrever. Em algumas composições eu costumo abordar temáticas que remetem a aprendizagem de acontecimentos de algum momento da história da humanidade trazendo-os de forma linear. Assim, costumo abordar assuntos relacionados ao contexto atual global ornamentando-os com leves pinceladas de poesia.

Por que você escreve?

Acredito que escrevo porque me dá prazer, me encanta e ao mesmo tempo é uma forma de terapia. Como a ilustre poeta Nauza Luza Martins (minha irmã) costuma dizer: "A poesia salva, cura e liberta!"

Quais escritoras te inspiram?

Muitas escritoras me inspiram, mas vou citar apenas algumas. Inicialmente a Clarice Lispector com a sua instigante forma de escrever acabou embalando meus primeiros ensaios poéticos; seguida da Cecília Meireles com seu envolvente poder de contemplação (adoro escrever sobre as emoções, sentimentos, pensamentos, entrelaçando-os com os movimentos da natureza). Também tenho grande admiração pelas célebres escritoras Conceição Evaristo, Cora Coralina, Hilda Hilst, Martha Medeiros, dentre outras. Na literatura maranhense, me deparei com a fantástica Maria Firmina dos Reis (foi paixão à primeira vista), a genialidade da Mariana Luz, a pulsante irreverência da brilhante poeta Nauza Luza Martins (minha principal inspiração), a subjetividade da poeta Joizacawpy Costa, a escrita da ativista cultural Lindevania Martins, entre outras talentosas mulheres maranhenses.  

Comente sobre a sua obra Revisitando Memórias em Prosa & Versos (2022). Quais são as principais temáticas desse livro? Onde podemos adquiri-lo?

Como o próprio título sugere, o Revisitando Memórias traz em sua bagagem alguns momentos vividos por mim desde a mais tenra infância em Monção-MA (minha terra natal) até os dias atuais aqui em São Luís, também no Maranhão. Nessa obra, além das minhas vivências trago também alguns mimos que compus para alguns amigos e pessoas da família, o livro em si é recheado de emocionantes sentimentos de amor, carinho e gratidão. Revisitando Memórias pode ser adquirido na AMEI – Associação Maranhense de Escritores Independentes, no site da Editora Versejar e comigo também.

E quanto ao seu livro Spinas: Nuances de Uma Essência (2021)? Explique o título e suas implicações no sentido/proposta da obra, e onde podemos adquiri-la.

Nuances de Uma Essência é um livro de poemas "Spinas", uma nova forma poética que vem conquistando o gosto dos poetas contemporâneos e vem ganhando espaço no cenário literário brasileiro. É uma forma poética criada pelo poeta pernambucano Ronaldo de Andrade, em homenagem ao seu saudoso professor emérito da Universidade de São Paulo - USP, Segismundo Spina, autor de diversos livros, sendo que, seu livro Manual de Versificação Românica Medieval, serviu para fundamentar a criação do Spina. O Spina é composto por duas estrofes, sendo a primeira, obrigatoriamente, iniciada com palavra trissílaba (de três sílabas), contém três palavras em cada verso da primeira estrofe; a segunda estrofe é formada por cinco versos com cinco palavras cada. O último verso da primeira estrofe precisa rimar com o terceiro e o último da segunda estrofe. Mantendo dessa forma a sequência rítmica: o último verso da primeira estrofe pode rimar com o primeiro, terceiro e último da segunda estrofe. O poema Spina preza pelas regras gramaticais, linguagem formal e uso dos sinais de pontuações, principalmente os obrigatórios. Não são permitidas algumas conjunções: e, pois, mas, no entanto, entretanto, contudo, porém, todavia. As palavras compostas com hífen são contadas como única sentença. As sem hífen são contadas individualmente. As palavras contendo as chamadas consoantes mudas (sonoras) que tenham três sílabas compostas por consoantes e vogais (não mais) podem iniciar o Spina. O título e a métrica são opcionais. Nuances de Uma Essência pode ser adquirido na AMEI – Associação Maranhense de Escritores Independentes, no site da Editora Versejar e comigo também.

Além de escritora, você também é professora da educação básica. Como você aborda a leitura nas suas aulas?

Atuei como professora da Educação Infantil e Ensino Fundamental, nos anos iniciais, somente nos primeiros anos da minha profissão. Já naquela época eu costumava adotar em minhas salas de aula, paradidáticos que tinham relação com o conteúdo que precisava ser abordado nos livros didáticos, tendo sempre o cuidado de trazer as historinhas de forma mais lúdica e abrangente a fim de exercitar o imaginário dos alunos e de ampliar o seu entendimento e o vocabulário. Eu sempre iniciava e terminava minhas aulas com a leitura de um livro de contos, fábulas, contos tradicionais, entre outras. Há mais de dez anos atuo como coordenadora, no Apoio Pedagógico, tanto na rede pública de ensino em São Luís – Ma, quanto em São José de Ribamar  Ma. Nessa nova função, costumo incentivar os professores a trazerem para as salas de aula assuntos relacionados ao contexto social e cultural brasileiro e principalmente maranhense, sem contudo esquecer de trazer para o centro das discussões, as informações pertinentes ao atual momento socioeconômico e cultural mundial.

Fale sobre os seus demais projetos na área de literatura e cultura, como, por exemplo, a sua página na Plataforma Facetubes.

Estou trabalhando no projeto do meu novo livro, que já se encontra em fase de publicação. O título dessa nova obra literária é Poeticidade Latente, um livro só de poesias que deve ficar pronto ainda neste ano de 2022. Também estou participando do grandioso projeto em homenagem ao Bicentenário de Maria Firmina dos Reis e estarei em Recife – PE, para receber o prêmio "Diamante da Literatura" e "Rosa de Jericó" no II Congrès International Cultive em novembro de 2022. Quanto à Plataforma Facetubes do Jornalista Mhário Lincoln, eu sou apenas uma das colaboradoras. Por ser um brilhante ativista cultural e literário o ilustre poeta Mhário Lincoln tem em sua página um espaço aberto para muitos escritores em ascensão, assim somos agraciados com essa generosidade por parte desse ícone da literatura maranhense. Assim, ele me convidou para ser articulista do seu Facetubes e eu prontamente aceitei, tenho algumas resenhas e composições já publicadas nessa Plataforma. Além disso, estou assessorando um projeto literário, em minha terra natal Monção – Ma, como voluntária. A rede Municipal de Educação de Monção adotou meus livros para este semestre (agosto a dezembro) do 1º ao 5º Ano da Educação Básica. Desta forma, sou a escritora homenageada em todas as escolas da rede monçonense de Educação. A proposta, para 2023, é que esse projeto se estenda para a Educação Infantil e o 6º ao 9º ano de toda a rede.

Mais do que escrever, é necessário fazer ecoar nossas vozes. Assim, se destacam as Academias de Letras e Artes. Qual é a importância da participação de escritoras em Academias e coletivos literários, para você?

Acredito ser importante por saber que o espaço de um sodalício não só se constitui um espaço de interação entre confrades e confreiras, mas também trata-se de um lugar onde é possível crescer literariamente, seja individualmente ou em conjunto com outros acadêmicos.  Ou seja, sinto que é muito importante fazer parte de um todo que respira literatura, pois as Academias estão voltadas para o cultivo das ciências, artes e saberes culturais, tanto nacionais, quanto regionais.

Como convidada da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

O que tenho a dizer aos jovens escritores e escritoras, é que acreditem em si mesmos, busquem cercar-se de pessoas positivas, que tenham propósitos na vida e que comunguem das mesmas ideias. Pois, se tens um dom ou alguma habilidade pulsando dentro de você, não deixe que nada, nem ninguém, atrapalhe seus projetos e sonhos. Acredite que o que você tem é mais que um estilo de vida, é libertação. Assim, torna-se necessário mergulhar no campo da leitura, sensibilidade e principalmente o exercício do poder de contemplação, pois somente com uma rica bagagem cultural leitora serás capaz de produzir uma obra de excelente qualidade literária. Portanto, siga seu sonho com determinação e amor no coração, quando você menos esperar, o estarás realizando.


Contatos da escritora:

Instagram: @mauraluzafrazao

E-mail: mauraluza_coelho@hotmail.com 

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Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru e do Feminário Conexões, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colabora com coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Em 2023, organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

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