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domingo, 28 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

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LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

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