Catálogo Virtual Literário do Feminino

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA SOLTE SUAS FERAS, POR HELENA TERRA

 


V E R B O M U L H E R|02

HELENA SOLTE SUAS FERAS

POR HELENA TERRA 


        “Escute as feras” é o nome do livro da antropóloga francesa Nastassja Martin, que teve o rosto desfigurado por um urso. Um urso de verdade, quadrúpede, animal irracional vivendo em seu ambiente e território. Agressivo sob o nosso ponto de vista humano. Um urso como qualquer outro se o pensarmos de acordo com a sua programação genética. Talvez até passivo dentro de sua própria espécie. Mas um exemplo de violência dentro da nossa. Um urso parecido com as centenas de milhares de homens, milhões na verdade, que diariamente atacam nossas mentes e corpos e que tentam nos eliminar ou a nossos planos e ambições como se fossemos insetos. Falo de nós, as mulheres. E falo de mim. Como Tolstoi, que disse que falando de sua aldeia estaria falando do mundo, acredito que falando sobre a minha existência falarei sobre a de todas as outras mulheres, mesmo daquelas que discordam em gênero, grau e número comigo e votam no senhor que ocupa a presidência do país como um monarca a um trono nos tempos do Brasil colônia.

        O Brasil, apesar de estarmos no ano de 2022, em um certo sentido, segue colonial, oprimindo a si mesmo e preso a seu próprio provincianismo e ao seu patriarcado de terceiro mundo. Sim, o patriarcado, embora uma estrutura homogênea, apresenta diferentes camadas de ação. Aqui, nessa terra quase sem Pau-Brasil e com uma grande diversidade de bichos, nós, as mulheres estamos mais para Gregor Sansa que para Madame Bovary, personagem, diga-se de passagem, também pouco aspirável. Pois é, eu me identifico com o Gregor Sansa. Kafka não sabe, mas ele falava de uma mulher.  “A Metamorfose”, as metamorfoses somos nós, muitas vezes cumprindo três turnos de jornada, recebendo menos por nosso trabalho e ainda tendo de ouvir críticas maldosas a respeito de nossas aparências, gostos e opiniões. E quando falo em críticas maldosas estou sendo, como muitos homens gostam de dizer, boazinha, porque uma boa parte dos homens gosta de verdade de nos ofender e de diminuir a nossa autoestima. Mais de um tentou me fazer sua vítima:

Helena, você está muito magra!

Helena, e esse fio de cabelo branco?

Helena, não entendi essa sua roupa!

Helena, não quero dizer que você não é inteligente, mas você não sabe o que está dizendo.

Helena, você é louca!

             E por aí vai.

        E por aí também se foram os que não conseguiram controlar o seu machismo e misoginia. Não servem para mim. Não gosto de gente rude. Não servem para ninguém, sabemos, como também sabemos que uma parte considerável de pessoas ainda ignora o importante ditado que diz “quem avisa, amigo é”. Fazer o quê? Ler. Conversar com as outras mulheres. Terapia. Se possível, análise mesmo. Graças a minha, tenho conseguido me manter distante dos homens com complexo de inseticida ou de chinelo de borracha que, por inveja, pensam em me esmagar. Essa é uma das minhas descobertas mais recentes: há uma quantidade expressiva de homens invejosos ao redor. Eles são o som ao redor, e não é fácil abafar suas vozes. De tão inseridas na dinâmica patriarcal, acabamos naturalizando à toxicidade e à agressividade como se elas fossem partes legítimas e positivas das relações. E de tão desamparadas pela sociedade, e mesmo por nossas famílias, acabamos por esconder as agressões que sofremos e, de certa forma, também por pôr em dúvida o nosso discernimento. Levante a mão quem nunca foi chamada de louca, maluca, pirada, despirocada, histérica, doida, raivosa etc. Se tem uma forma de violência enraizada no inconsciente coletivo masculino é essa de tentar nos tirar a razão e de nos jogar no mundo irracional das feras. Falemos então de feras. Conheço muitas de calças, camisas e barbas sobre as faces vivendo fora dos zoológicos e mostrando sorrisos antes de mostrar as garras.  Os índices de violência, em suas mais diversas formas, contra as mulheres estão altíssimos mundo afora. Mas vou falar desse mundo adentro em que vivo e, como o Cazuza, vou cantar “Brasil, mostra a tua cara”. Mostra, Brasil, a cara dos seus homens.

        Conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, trinta mulheres sofreram agressão física por hora; uma mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos; três mulheres foram assassinadas por dia e uma travesti ou mulher trans foi assassinada a cada dois. Ou seja, 2020 foi o circo romano e a matança das baleias. Aliás levante a mão também quem nunca foi chamada de baleia ou teve uma amiga que tenha sido. Em 2020, morremos. E em 2021 também. Eu morri em 2021, 2020, 19, 18. Morro desde que nasci. E de nada adianta cantar que neste ano não morrerei porque eu sou uma mulher que morre com as outras. Não tenho vocação para ilha. Os outros torrões, como escreveu John Donne, no “Meditações”, me interessam. Eu sou uma pessoa continente. E sou uma mulher cheia de vida e de sobrevida por persistência, como uma das minhas alunas no presídio em que trabalho fala. Persistir é um dos meus verbos preferidos. Os meus verbos, apesar de toda a oposição que me cerca, são construtivos, leais e amigos. Amigos como poucos homens conseguem ser de uma mulher. Os meus amigos conto nos dedos da mão esquerda embora eu seja destra. E falo em esquerda porque posso. “Ser de esquerda é ter uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Frase do Pepe Mujica. Não me falta senso de solidariedade. Minha consciência e ação social não são só da boca para fora. Não vivo só em causa própria. Não exploro as outras pessoas. Não tiro proveito de seus bens, personalidades, capacidades produtivas e sentimentos. Trabalho e convivo com as pessoas por elas, por mim e por nós todos como se fossemos um único corpo, uma grande placenta.

          Placenta. Pensando agora, talvez pareça estranho eu recorrer a essa palavra. Não é porque podemos produzir uma que temos de produzi-la. Não é porque uma mulher pode ser mãe que ela tem de ser. Quem insiste com essa ideia, por incrível que pareça, são justo aqueles que dizem ter tirado Eva de suas costelas.  E isso também é estranho porque soa religioso, cristão, do reino de Deus. “O que realmente duvido é do amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuíno de um ser que é cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não! Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora era mais fácil de acreditar.”, uma das narradoras do “A filha primitiva”, da Vanessa passo, diz. Pois é. Eu também tenho dificuldade de dialogar com esse senhor que fez apenas metade da população do planeta à sua imagem e semelhança. Eu não me pareço com ele. Ele não se parece comigo, ignora uma menstruação, não gera crianças, tampouco as perde ou ganha em um parto. Deus não sente o que se passa debaixo da minha pele e ainda me orienta a ser compreensiva e piedosa com aqueles que “não sabem o que fazem”. Vem cá, desde quando os homens não sabem o que fazem? Os homens não são cheios de saberes, opiniões e verdades?  

Disse Santo Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão.”

Disse São João Crisóstomo: “em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher.”

Disse São Paulo, esse que dá o nome a maior cidade da América Latina: “o homem não foi tirado da mulher, e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher, e sim esta para o homem”.  

        Santos! Todos santos, a nata da religião que sustenta o pensamento ocidental. Mentores desses que costumam dizer “não sou santo” para justificar seus erros. Imagina se fossem.  

 ☆_____________________☆_____________________☆ 


Helena Terra
[arquivo pessoal]
@helenaterracamargo

Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

40 comentários:

  1. Helena que texto uterino! Senti no útero e nunca quis filhos, mas teu texto me tocou lá! Perfeito, Profundo e Dolorido! Lerei mais dezenas de vezes! Parabéns!

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    1. Obrigada, Fátima. Fico muito feliz que o texto te toque.

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  2. Achei perfeito. Muito abrangente, contém várias informações essenciais a uma mulher que pretenda refletir sobre sua condição, sua dignidade, sem perder o estilo característico de monólogo, que nos faz engrenar numa leitura ininterrupta. É texto para ser muito compartilhado.

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    1. Obrigada! Fico muito feliz que ele seja significativo.

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  3. Maravilhosa! Viva a pulsão de vida, vacina contra os inseticidas. Juntas somos mais fortes.

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  4. Muito bom querida, parabéns.

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  5. Belo texto, Helena! Precisão cirúrgica ao relatar a condição da mulher: dolorosa, porém de uma realidade gritante.

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    1. Temos de acabar com esse sistema de dor! Basta, né? Beijos

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  6. Nossa, Helena! Esse texto é necessário para as mulheres e principalmente para nós homens. Usarei nas minhas aulas de sociologia. Bjo

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    1. Que alegria, Júlio! Fico muito feliz. 😘

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  7. Uma super dosagem de basta! Um texto visceral e necessário ! Disse tudo querida Helena 🤝🏻💐

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    1. Obrigada, Rinelte. Basta de violências contra nós!

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  8. Minha filha tem apenas 26 anos e me disse que é perigoso ser mulher! Doeu! Como mãe, gostaria que ela vivesse num mundo menos preconceituoso, misógino e machista! Onde não existisse o coro “imbrochável” e onde pudéssemos ser respeitadas de verdade.

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    1. Lamento tanto ainda estarmos em luta. Mas o mundo vai mudando. Dias melhores e “dias mulheres” virão. Beijos pra vocês.

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  9. Helena, te ler é banho de coragem nesses dias tão opressivos. 🌺

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    1. Precisamos ser corajosas. Covardia não é opção pra nós. Beijos

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  10. Texto maravilhoso. Parabéns.

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  11. Sim Helena, ao falar de ti, vc fala de todas nós, que invariavelmente já ouvimos algumas dessas fatídicas frases. É tempo de dizer chega. Beijos querida, continue assim!

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  12. Como sempre, texto maravilhosamente verdadeiro! Bj

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  13. Muito bom. Ah, e estou sempre disposto a tapar os ouvidos para santos e santas, dogmáticos, intolerantes e reacionários da nossa época.

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    1. São muitos os ursos e os santos. Não tenho mais paciência e tempo para os autoritários e trapaceiros de nossa época. Obrigada pelo comentário.

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  14. Excelente texto (como sempre!), vigoroso e incisivo. :)

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    1. Obrigada, Luis. A realidade pede por mudanças.

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  15. Helena, que texto maravilhoso, me fez chorar e ter mais empenho na resiliência de ser mulher. Estamos sempre juntas.

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    1. Obrigada pelo comentário. Sim, que fiquemos todas juntas. 💛

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  16. Que possamos estar conscientes da realidade e de suas armadilhas. Ser mulher em um Brasil tão machista é um ato de coragem e resistência. Não podemos sucumbir!
    Parabéns pelo texto!

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  17. Gosto dos teus textos, sempre fortes e reflexivos. E necessários. Helena é um nome forte. Uma Helena me pariu. Helenas e tantas outras mulheres que lutam, criam, pensam e querem bem mais que sobreviver! Obrigada pelo texto!

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    1. Obrigada, Elenara. Helena é um nome exigente. Fico muito contente que você goste dos textos! Beijos

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  18. Texto de tirar o fôlego. Tanta coisa me passou pela cabeça enquanto lia! Excelente, Helena! 😘

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