V E R B O M U L H E R|02
HELENA SOLTE SUAS FERAS
POR HELENA TERRA
“Escute as feras” é o nome do livro da antropóloga
francesa Nastassja Martin, que teve o rosto desfigurado por um urso. Um urso de
verdade, quadrúpede, animal irracional vivendo em seu ambiente e território.
Agressivo sob o nosso ponto de vista humano. Um urso como qualquer outro se o
pensarmos de acordo com a sua programação genética. Talvez até passivo dentro
de sua própria espécie. Mas um exemplo de violência dentro da nossa. Um urso
parecido com as centenas de milhares de homens, milhões na verdade, que
diariamente atacam nossas mentes e corpos e que tentam nos eliminar ou a nossos
planos e ambições como se fossemos insetos. Falo de nós, as mulheres. E falo de
mim. Como Tolstoi, que disse que falando de sua aldeia estaria falando do
mundo, acredito que falando sobre a minha existência falarei sobre a de todas as
outras mulheres, mesmo daquelas que discordam em gênero, grau e número comigo e
votam no senhor que ocupa a presidência do país como um monarca a um trono nos
tempos do Brasil colônia.
O Brasil, apesar de estarmos no ano de
2022, em um certo sentido, segue colonial, oprimindo a si mesmo e preso a seu
próprio provincianismo e ao seu patriarcado de terceiro mundo. Sim, o
patriarcado, embora uma estrutura homogênea, apresenta diferentes camadas de
ação. Aqui, nessa terra quase sem Pau-Brasil e com uma grande diversidade de bichos,
nós, as mulheres estamos mais para Gregor Sansa que para Madame Bovary, personagem,
diga-se de passagem, também pouco aspirável. Pois é, eu me identifico com o
Gregor Sansa. Kafka não sabe, mas ele falava de uma mulher. “A Metamorfose”, as metamorfoses somos nós, muitas
vezes cumprindo três turnos de jornada, recebendo menos por nosso trabalho e
ainda tendo de ouvir críticas maldosas a respeito de nossas aparências, gostos
e opiniões. E quando falo em críticas maldosas estou sendo, como muitos homens
gostam de dizer, boazinha, porque uma boa parte dos homens gosta de verdade de
nos ofender e de diminuir a nossa autoestima. Mais de um tentou me fazer sua
vítima:
Helena, você
está muito magra!
Helena, e
esse fio de cabelo branco?
Helena, não
entendi essa sua roupa!
Helena, não
quero dizer que você não é inteligente, mas você não sabe o que está dizendo.
Helena, você é
louca!
E por aí vai.
E por aí também se foram os que não conseguiram
controlar o seu machismo e misoginia. Não servem para mim. Não gosto de gente
rude. Não servem para ninguém, sabemos, como também sabemos que uma parte
considerável de pessoas ainda ignora o importante ditado que diz “quem avisa,
amigo é”. Fazer o quê? Ler. Conversar com as outras mulheres. Terapia. Se
possível, análise mesmo. Graças a minha, tenho conseguido me manter distante dos
homens com complexo de inseticida ou de chinelo de borracha que, por inveja, pensam
em me esmagar. Essa é uma das minhas descobertas mais recentes: há uma
quantidade expressiva de homens invejosos ao redor. Eles são o som ao redor, e
não é fácil abafar suas vozes. De tão inseridas na dinâmica patriarcal,
acabamos naturalizando à toxicidade e à agressividade como se elas fossem
partes legítimas e positivas das relações. E de tão desamparadas pela sociedade,
e mesmo por nossas famílias, acabamos por esconder as agressões que sofremos e,
de certa forma, também por pôr em dúvida o nosso discernimento. Levante a mão
quem nunca foi chamada de louca, maluca, pirada, despirocada, histérica, doida,
raivosa etc. Se tem uma forma de violência enraizada no inconsciente coletivo masculino
é essa de tentar nos tirar a razão e de nos jogar no mundo irracional das feras.
Falemos então de feras. Conheço muitas de calças, camisas e barbas sobre as
faces vivendo fora dos zoológicos e mostrando sorrisos antes de mostrar as
garras. Os índices de violência, em suas
mais diversas formas, contra as mulheres estão altíssimos mundo afora. Mas vou
falar desse mundo adentro em que vivo e, como o Cazuza, vou cantar “Brasil,
mostra a tua cara”. Mostra, Brasil, a cara dos seus homens.
Conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020,
trinta mulheres sofreram agressão física por hora; uma mulher foi vítima de
estupro a cada 10 minutos; três mulheres foram assassinadas por dia e uma
travesti ou mulher trans foi assassinada a cada dois. Ou seja, 2020 foi o circo
romano e a matança das baleias. Aliás levante a mão também quem nunca foi
chamada de baleia ou teve uma amiga que tenha sido. Em 2020, morremos. E em
2021 também. Eu morri em 2021, 2020, 19, 18. Morro desde que nasci. E de nada
adianta cantar que neste ano não morrerei porque eu sou uma mulher que morre
com as outras. Não tenho vocação para ilha. Os outros torrões, como escreveu
John Donne, no “Meditações”, me interessam. Eu sou uma pessoa continente. E sou
uma mulher cheia de vida e de sobrevida por persistência, como uma das minhas
alunas no presídio em que trabalho fala. Persistir é um dos meus verbos
preferidos. Os meus verbos, apesar de toda a oposição que me cerca, são
construtivos, leais e amigos. Amigos como poucos homens conseguem ser de uma
mulher. Os meus amigos conto nos dedos da mão esquerda embora eu seja destra. E
falo em esquerda porque posso. “Ser de esquerda é ter uma posição filosófica
perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Frase do Pepe
Mujica. Não me falta senso de solidariedade. Minha consciência e ação social
não são só da boca para fora. Não vivo só em causa própria. Não exploro as
outras pessoas. Não tiro proveito de seus bens, personalidades, capacidades produtivas
e sentimentos. Trabalho e convivo com as pessoas por elas, por mim e por nós
todos como se fossemos um único corpo, uma grande placenta.
Placenta. Pensando agora, talvez pareça estranho eu recorrer a essa
palavra. Não é porque podemos produzir uma que temos de produzi-la. Não é
porque uma mulher pode ser mãe que ela tem de ser. Quem insiste com essa ideia,
por incrível que pareça, são justo aqueles que dizem ter tirado Eva de suas
costelas. E isso também é estranho
porque soa religioso, cristão, do reino de Deus. “O que realmente duvido é do
amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuíno de um ser que é
cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não!
Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora era mais fácil de acreditar.”, uma das
narradoras do “A filha primitiva”, da Vanessa passo, diz. Pois é. Eu também tenho
dificuldade de dialogar com esse senhor que fez apenas metade da população do
planeta à sua imagem e semelhança. Eu não me pareço com ele. Ele não se parece
comigo, ignora uma menstruação, não gera crianças, tampouco as perde ou ganha em
um parto. Deus não sente o que se passa debaixo da minha pele e ainda me
orienta a ser compreensiva e piedosa com aqueles que “não sabem o que fazem”.
Vem cá, desde quando os homens não sabem o que fazem? Os homens não são cheios
de saberes, opiniões e verdades?
Disse Santo Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado
por Eva e não Eva por Adão.”
Disse São João Crisóstomo: “em meio a todos os
animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher.”
Disse São Paulo, esse que dá o nome a maior cidade
da América Latina: “o homem não foi tirado da mulher, e sim a mulher do homem;
e o homem não foi criado para a mulher, e sim esta para o homem”.
Santos!
Todos santos, a nata da religião que sustenta o pensamento ocidental. Mentores
desses que costumam dizer “não sou santo” para justificar seus erros. Imagina
se fossem.
Helena Terra [arquivo pessoal] @helenaterracamargo |
Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt).
Helena que texto uterino! Senti no útero e nunca quis filhos, mas teu texto me tocou lá! Perfeito, Profundo e Dolorido! Lerei mais dezenas de vezes! Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Fátima. Fico muito feliz que o texto te toque.
ExcluirAchei perfeito. Muito abrangente, contém várias informações essenciais a uma mulher que pretenda refletir sobre sua condição, sua dignidade, sem perder o estilo característico de monólogo, que nos faz engrenar numa leitura ininterrupta. É texto para ser muito compartilhado.
ResponderExcluirObrigada! Fico muito feliz que ele seja significativo.
ExcluirMaravilhosa! Viva a pulsão de vida, vacina contra os inseticidas. Juntas somos mais fortes.
ResponderExcluirSim! Vacina contra os inseticidas rsrsrs
ExcluirMuito bom querida, parabéns.
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirPerfeito.
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirBelo texto, Helena! Precisão cirúrgica ao relatar a condição da mulher: dolorosa, porém de uma realidade gritante.
ResponderExcluirTemos de acabar com esse sistema de dor! Basta, né? Beijos
ExcluirNossa, Helena! Esse texto é necessário para as mulheres e principalmente para nós homens. Usarei nas minhas aulas de sociologia. Bjo
ResponderExcluirQue alegria, Júlio! Fico muito feliz. 😘
ExcluirUma super dosagem de basta! Um texto visceral e necessário ! Disse tudo querida Helena 🤝🏻💐
ResponderExcluirObrigada, Rinelte. Basta de violências contra nós!
ExcluirMinha filha tem apenas 26 anos e me disse que é perigoso ser mulher! Doeu! Como mãe, gostaria que ela vivesse num mundo menos preconceituoso, misógino e machista! Onde não existisse o coro “imbrochável” e onde pudéssemos ser respeitadas de verdade.
ResponderExcluirLamento tanto ainda estarmos em luta. Mas o mundo vai mudando. Dias melhores e “dias mulheres” virão. Beijos pra vocês.
ExcluirHelena, te ler é banho de coragem nesses dias tão opressivos. 🌺
ResponderExcluirPrecisamos ser corajosas. Covardia não é opção pra nós. Beijos
ExcluirExcelente!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirTexto maravilhoso. Parabéns.
ResponderExcluirObrigada!
ResponderExcluirSim Helena, ao falar de ti, vc fala de todas nós, que invariavelmente já ouvimos algumas dessas fatídicas frases. É tempo de dizer chega. Beijos querida, continue assim!
ResponderExcluirObrigada! Beijos
ExcluirComo sempre, texto maravilhosamente verdadeiro! Bj
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirMuito bom. Ah, e estou sempre disposto a tapar os ouvidos para santos e santas, dogmáticos, intolerantes e reacionários da nossa época.
ResponderExcluirSão muitos os ursos e os santos. Não tenho mais paciência e tempo para os autoritários e trapaceiros de nossa época. Obrigada pelo comentário.
ExcluirExcelente texto (como sempre!), vigoroso e incisivo. :)
ResponderExcluirObrigada, Luis. A realidade pede por mudanças.
ExcluirHelena, que texto maravilhoso, me fez chorar e ter mais empenho na resiliência de ser mulher. Estamos sempre juntas.
ResponderExcluirObrigada pelo comentário. Sim, que fiquemos todas juntas. 💛
ExcluirQue possamos estar conscientes da realidade e de suas armadilhas. Ser mulher em um Brasil tão machista é um ato de coragem e resistência. Não podemos sucumbir!
ResponderExcluirParabéns pelo texto!
Obrigada, Flávia! Resistiremos. Beijos
ExcluirGosto dos teus textos, sempre fortes e reflexivos. E necessários. Helena é um nome forte. Uma Helena me pariu. Helenas e tantas outras mulheres que lutam, criam, pensam e querem bem mais que sobreviver! Obrigada pelo texto!
ResponderExcluirObrigada, Elenara. Helena é um nome exigente. Fico muito contente que você goste dos textos! Beijos
ExcluirTexto de tirar o fôlego. Tanta coisa me passou pela cabeça enquanto lia! Excelente, Helena! 😘
ResponderExcluirObrigada!
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