sábado, 4 de março de 2023

VERBO MULHER: AS MÁGOAS DE MARÇO, POR HELENA TERRA

V E R B O M U L H E R|05

AS MÁGOAS DE MARÇO

POR HELENA TERRA

[Imagem arquivo Pinterest]

Não tenho tido tempo para escrever.  Não o tanto que eu gostaria. Depois de ler, é o que mais gosto de fazer do ponto de vista intelectual. E digo do ponto de vista intelectual porque trocaria minha estante e as inúmeras pilhas de livros que se alastram pela minha casa pela companhia das minhas amigas e amigos sem pensar duas vezes. É, eu gosto de gente. Muitíssimo. Mais até do que de bichos. E a gente sabe que a maioria é mais leal e divertida que uma boa parte de nós. Não é à toa que dizemos “fidelidade canina” quando nos referimos a alguém incapaz de nos trair. Mas vamos ao que interessa neste mês de março, o mês escolhido, com o consentimento do patriarcado, para recebermos flores, bombons e textos na Internet, alguns escritos inclusive por nós mesmas indevidamente assinados por homens, no dia 8. Oito é o número do infinito. Eu nasci em um dia oito. Meu pai nasceu em um oito também e morreu em um dia oito em uma coincidência que me perturba um pouco, mas não me magoa. Vou falar sobre o que me magoa. Não sobre tudo, é claro, que não é para este texto ser uma sessão de terapia ou um tratamento inteiro mesmo. 

        Começo então por uma das agressões que considero das mais violentas: as de uma mulher contra outra. Eu sei que somos socializadas desde o nascimento para criticarmos a aparência umas das outras, para não considerarmos as opiniões umas das outras, para competirmos por laços de afeto, namorados, maridos, para não confiarmos umas nas outras, para julgarmos umas às outras e para ficarmos ao lado dos homens quando houver um conflito. Qualquer tipo de conflito porque os homens têm razão mesmo quando não têm e porque, de um modo ou outro, nós somos as bruxas que devem praticar o auto-ódio feminino, e eles são os reis da cocada. Se eles disserem que algo foi assim, então foi. Quem somos nós para questioná-los e para apontar nossos lindos dedos de unhas vermelhas em seu nariz? E falo aqui de mulheres de todas as faixas de idade, inclusive as nascidas sob esse terceiro milênio depois de Cristo. Talvez se fosse depois de Crista as coisas fossem diferentes e não houvesse ainda mulheres tão sexistas quanto os homens, porque as mulheres podem ser sexistas e algumas de fato são apesar de suas tatuagens, cortes de cabelos e uma série de outros signos que sugerem senso crítico e ruptura.

[Imagem arquivo Pinterest]
No livro “O feminismo é para todo mundo”, meu livro favorito sobre o tema, da Bell Hooks, publicado pela primeira vez na virada do milênio, ela, uma mulher nascida no início dos anos cinquenta do século passado, diz: “para acabar com o patriarcado (outra maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos nós participamos da disseminação do sexismo, até mudarmos a consciência e o coração; até desapegarmos de pensamentos e ações sexistas e substituí-los por pensamentos e ações feministas.” Pois é. Por mais difícil que pareça temos de esquecer a antiga e dominadora cartilha de verdades dos homens, mesmo das dos que nós amamos, porque está no inconsciente coletivo, principalmente masculino, dominar. Dominar pela força física, pela econômica e pelo discurso. Discurso que a eles beneficia, discurso mantenedor de seus privilégios e de seus prazeres. 

Outro dia, só para dar um exemplo, na fila do caixa de um supermercado, ouvi uma jovem, que deve ter entre vinte e vinte e cinco anos, dizer à outra que uma tal fulana era muito “banheiro público” e as prejudicava "na noite". Sim. Banheiro público porque a sexualidade das mulheres, o erotismo das mulheres, o gozo e a liberdade das mulheres se não é um pecado, é um crime ou uma ofensa à moral e aos bons costumes, todos implacáveis na hora de julgar e punir uma mulher e benevolentes na hora de avaliar as atitudes de um homem. Como diz a Marcia Tiburi, em seu livro “Feminismo em comum, “de nada adianta dizer-se feminista sem lutar pela transformação da sociedade”. E essa transformação, quer a gente queira ou não, começa em nós mesmas e mesmos, porque você, homem que também me lê, pode e deve fazer a sua parte. Aliás, caríssimo, nos deve cada pedacinho.

[Imagem arquivo Pinterest/ Frase de Victoria Sau]

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Helena Terra é escritora, jornalista, coordenadora do grupo de leitura e escrita criativa A Palavra Tem Nome de Mulher dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier em Porto Alegre e editora no Selo Editorial Besouros Abstêmios. Autora dos romances A Condição Indestrutível de Ter Sido e Bonequinha de Lixo.

3 comentários:

  1. Obrigada pelo texto Helena, para mim foi muito importante lê-lo! Beijos

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  2. Helena, sempre provocando reflexões. Quando acho que me livrei de quase tudo que eu luto para me livrar, ao ler o seu texto descubro que ainda resta algo a ser combatido em se tratando de machismo e outrps males. Muito obrigado pelo holofote que denuncia preconceitos que teimam em não se dissipar. Senti-me mais aliviado após a leitura. E viva o oito, infinito em pé!

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  3. Belíssima reflexão, ainda há muito caminho a percorrer, ainda há muito o que transformar. Parabéns

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