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terça-feira, 14 de outubro de 2025

 


SOBRE ESPELHOS E ESPERANÇAS

Rosangela Marquezi


Meu espelho quebrado...
Meu espelhinho quebrado...
Quebrei um espelho... Estava em frente à janela, aproveitando a luz solar para tirar aqueles pelinhos do buço que só a gente vê – e finge que ninguém mais nota. Distraí-me olhando a rua – moro diante de uma bem movimentada – e eis que o espelhinho, tão bonito e presente de uma amiga, escorregou-me das mãos. Em segundos, um dos lados virou dezenas de cacos pelo chão.


(Nesse instante, lembrei-me dos famosos "sete anos de azar". Curiosa como sou, fui investigar! Dizem que essa crença vem da Grécia e da Roma antigas, onde se acreditava que a imagem refletida carregava poderes mágicos. Lembram de Narciso? Pois é, a coisa vem de tempos! Mas, parece, foram os romanos, por volta do século III, com o surgimento do espelho de vidro, que associaram o ato de quebrá-lo ao azar: se o reflexo fosse destruído, a sorte também se quebrava. Sete anos, porque se acreditava que o corpo levava esse tempo para se renovar... Mas, como esse texto não é uma aula de história, e sim uma crônica, volto ao meu espelho.)

O espelho se quebrou. Abaixei-me para juntar os pedaços e, enquanto recolhia – um a um – os cacos espalhados pelo chão, pensei que, ao contrário das histórias de azar, talvez esse espelho me oferecesse outra chance: a de romper, de vez, com tudo que não me faz bem! Decidida, fui dando significado a cada fragmento. A cada caco, deixava para trás uma mágoa, um medo, um peso antigo...

A primeira coisa que joguei fora foi a tristeza que volta e meia insiste em querer se instalar em minha vida. No decorrer de nossa existência, vamos acumulando choro, raiva, mágoas... E isso só causa peso desnecessário à vida! Como cantava Tim Maia, “Tristezas que passaram na vida não devemos mais lembrar / Só pense no amanhã / tristezas não vão mais / Passar no meu caminho nunca mais”. Que assim seja! Confesso que foram muitos pedacinhos aqui...

Joguei fora também palavras mal ditas e malditas! Ditas e ouvidas! Palavras têm tanto poder que, se lembrássemos disso todos os dias, de nossa boca só sairiam as que edificam e alegram! Palavras são ondas sonoras... Gosto de imaginá-las voando por aí, encontrando-se nesse espaço além-tempo, valsando em vibrações. Que lindo seria se pudéssemos viver envolvidos apenas por palavras doces, belas, valorosas, amorosas!

Propus-me ainda a jogar fora a falta de esperança. Vivemos tempos difíceis. Guerras cruéis espalhadas pelo mundo, violências diárias... Ver isso constantemente nos noticiários vai criando a falsa ideia de que "A vida é assim mesmo! Nada muda”. Isso é terrível e destrói nossa fé na humanidade. Tentei jogar fora essa desesperança, mas confesso: a dura realidade continua lembrando que é preciso estarmos atentos!

Fui descartando também dores físicas e espirituais, dias tristes e dias mal vividos... Histórias ruins, amores que não deram certo, venenos verbais acumulados... Recordações doloridas e pesadas penas...

Aos poucos, minha alma e meu corpo foram se sentindo mais leves e fui vendo que a vida ganhava novo ânimo. Guardei tudo com cuidado e descartei, como quem se despede do que já não serve. Foi mais do que uma faxina doméstica, foi uma limpeza de alma, tão necessária a nossos dias!

Quiçá não sejam sete anos de azar o que vem pela frente, mas sete anos e mais sete e mais sete – tantos quantos me forem permitidos – em que, mais leve e grávida de esperanças, eu possa ver a vida e as pessoas com mais boniteza!

É o que merecemos: esperança e amor!

Abraços! Seja Feliz.

Rosangela Marquezi
Professora de formação e atuação, mas alguém que crê na esperança como verbo...


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DICAS DA RÔ
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1. Ouça a música “Enquanto houver sol”, na voz dos Titãs. É uma daquelas canções que abraçam por dentro, lembrando-nos que, mesmo nos dias mais nublados, ainda pode haver uma fresta de luz. A canção, escrita por Sérgio Britto e lançada no álbum "Como estão vocês" (2003), é quase um mantra de resistência suave, daqueles que a gente canta baixinho para não esquecer de acreditar.

“Quando não houver saída
Quando não houver mais solução
Ainda há de haver saída
Nenhuma ideia vale uma vida".


2. Assista ao filme “Um conto chinês” (Un cuento chino), lançado em 2011, dirigido por Sebastián Borensztein e estrelado pelo maravilhoso ator argentino Ricardo Darín. À primeira vista, parece apenas uma comédia inusitada sobre o encontro improvável entre dois mundos: um argentino ranzinza e um jovem chinês perdido. Mas, aos poucos, percebemos que é uma história sobre acaso, acolhimento e os laços invisíveis que nos conectam, mesmo quando não falamos a mesma língua. Esse filme nos faz pensar nos encontros inesperados que mudam nossa vida... Afinal, às vezes, a boniteza está justamente no que não planejamos.

3. Leia o poema “Aninha e suas pedras”, da poeta goiana Cora Coralina, publicado em 1983 no livro “Vintém de cobre: meias confissões de aninha”. É um poema que fala direto ao coração, sem artifícios, com a força da sabedoria vivida. Cora nos convida a olhar para as dificuldades não como obstáculos, mas como pedras com as quais podemos construir caminhos. Às vezes, a poesia só nos lembra do que já sabemos: somos mais fortes do que pensamos...

"Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça."

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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski)

Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita que a literatura tem o poder de modificar vidas... Graduada em Letras, Mestra em Educação e Doutora em Desenvolvimento Regional, é professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR. Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017). 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

O PORTO ALEGRE DE ALICE NO PAÍS DOS ASSOMBROS - POR ISA CORGOSINHO

 O PORTO ALEGRE DE ALICE NO PAÍS DOS ASSOMBROS

POR ISA CORGOSINHO

A questão inicial que se coloca no romance Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, é o deslocamento. Numa primeira instância, temos a geográfico, que se desdobrará progressivamente como jornada socioexistencial. O destino da professora paraibana aposentada é Porto Alegre (Nordeste x Sul), que parte para cuidar da família embrionária da filha, desenhada com traços pequeno-burgueses com projetos individualistas (uma crítica sem intenções de sutilezas, principalmente, aos filhos da classe média). A chegada em Porto Alegre é a queda no poço do não pertencimento. Alijada do lugar e dos objetos afetivos, largada pela filha, Alice se vê à revelia dos assombros. 

Na restrita bagagem, a narradora personagem traz um caderno com a capa estampada pela boneca Barbie, signo consagrado do consumo e modelo de beleza que alimentou o sonho de gerações de crianças e adolescentes no mundo inteiro (e agora, para não perder o mercado, ainda retorna com o discurso midiático do feminismo).

A presença desse signo no caderno, feito de diário da professora que lê Wislawa Szymborska, insere a ironia como estrutura mestra para compreender a composição de Quarenta dias.  A mudança, a queda, a travessia estão relacionadas à busca de um filho conterrâneo que emigrou para Porto Alegre em busca de trabalho.    

Para compreensão dos mecanismos interdiscursivos que constituem a ironia, é preciso considerar a presença de elementos da oralidade, principalmente na relação entre a narradora Alice e o diário com a Barbie, que é também uma das faces do leitor empírico.  Isso significa que o discurso irônico joga essencialmente com a ambiguidade, convidando o receptor a uma dupla leitura: linguística e discursiva. Esse convite à participação ativa coloca o receptor na condição de coprodutor da significação, o que implica sua instauração como interlocutor.

O diário de Alice parodia os diários adolescentes com a inserção de variados gêneros textuais verbais e não verbais recolhidos nas andanças, peregrinações da narradora personagem. Os capítulos são introduzidos por textos que Alice vai recolhendo em suas andanças, uma espécie de mapeamento da cidade, sinalizações semânticas da travessia, significâncias do percurso social e existencial.

Maria Valéria Rezende
No poço do não pertencimento, a Alice de Maria Valéria vai traçar uma nova cartografia do êxodo nordestino na cosmopolita Porto Alegre, quebrando as rotas normalmente conhecidas e mapeadas pela literatura (a autora nos mostra a extensão indiscriminada desse êxodo).  É nos rastros de um jovem desgarrado do sertão, em busca de trabalho, que a narradora refletora nos mostrará a periferia porto-alegrense, com a caligrafia e os desenhos conhecidos do mapa de exclusão no Brasil.          

O diário instaura a proximidade com o leitor empírico, parte de uma descrição minuciosa, dramática e humorística do percurso da personagem, nos vemos representados no prosaísmo das imagens e linguagem nas andanças de Alice. O uso do discurso indireto livre é um jogo de perspicácia da autora. A conversa com a Barbie é de uma coloquialidade irônica e brincalhona, está sempre simulando ou descrevendo o trajeto, as peregrinações, o modo de agir e sentir, como deve se portar, nos envolvendo num jogo que devemos aprender no meio da partida.

As transformações da personagem, que chega a morar nas ruas de Porto Alegre, são carregadas de episódios irônicos e muitas vezes responsáveis pela leveza necessária às dramáticas travessias de Alice. Outra questão relevante é o fato de a narradora personagem não abrir mão da condição de leitora. Observamos a preocupação em aliar a escritura com a humanização, o prazer da leitura, duas atividades estreitamente conexas no romance. A leitura é prazer, enquanto a escritura é trabalho, necessidade. O fato de Alice não abrir mão de portar livros entre os itens básicos de sobrevivência como moradora de rua, nos revela a condição diferenciada do vínculo da literatura com a vida, mesmo e, sobretudo, na precariedade.   

Quarenta Dias é substancialmente um jogo literário, que implica a possibilidade de alcançar o conhecimento do real, drama vivido pelo confronto dialógico do mundo escrito no diário da Barbie e o mundo abertamente vivenciado pelos personagens estreitados nos becos, nas ruas, nos espaços periféricos trilhados por Alice. O leitor experimenta o cansaço, as frustrações, a angústia da personagem nos desafios da busca por si mesma nos rastros do jovem nordestino, invisibilizado nas comunidades proletárias do Brasil. O jovem pedreiro é o duplo da filha acadêmica de Alice. A relação temporal forma uma coreografia entrecruzada de passado e presente, instalando a dúvida do que é verdadeiro ou falso, fora e dentro de nós, gerando a incerteza de uma identidade fixa.

Outro viés que merece atenção é o metaficcional. Patrícia Waugh[1] indica algumas interpretações importantes a esse respeito: uma extrema autoconsciência sobre a linguagem, a forma literária e o ato de escrever ficções; uma incerteza generalizada sobre a relação da ficção com a realidade.  Em síntese, a metaficção é o termo dado à escrita ficcional que autoconsciente e sistematicamente chama a atenção ao seu status como artefato para propor questões sobre a relação entre ficção e realidade.

Ao fornecer uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritas não só examinam as estruturas fundamentais da narrativa ficcional, mas também exploram a possível ficcionalidade do mundo externo ao texto literário. O resgate do romanesco metaficcional é intencionalmente guiado pela imprevisibilidade, fertilizado por misturas de sementes literárias variadas, cuja floração permite ao leitor empírico o contato com dialógicas confluências de estilos, gêneros e tempos narrativos.

Se o nosso conhecimento do mundo é mediado pela linguagem, a ficção literária, que são mundos construídos inteiramente de linguagem outra, continua a ser uma travessia útil para a aprendizagem sobre a construção da “realidade” enquanto tal. Esse dilema é confrontado em Quarenta Dias por meio de uma prática que resulta na escrita que consistentemente mostra a sua convencionalidade que, explicita e abertamente, exibe a sua condição de artifício e que, por meio disso, estuda a relação problemática entre a vida e a ficção.

A metaficção pode-se desdobrar em alguns tipos de relação: com aquelas convenções particulares do romance que mostram o processo de sua construção; com a forma da paródia, que serve tanto como exemplo quanto como uma crítica do conhecido romance parodiado. Esta última foi a opção de Maria Valéria com a retomada paródica do clássico Alice no país das maravilhas, de Lewis Caroll.

Em virtude de sua abrangência autoconsciente, a prática metaficcional tem-se tornado particularmente importante na compreensão da ficção contemporânea. A metaficção exibe, exagera e mostra as bases de sua instabilidade: o fato de que os romances são criados por meio de uma assimilação contínua das formas históricas cotidianas da comunicação. Não há uma “linguagem de ficção” privilegiada. Há linguagens de memórias, jornais, diários, histórias, registros de conversações, arquivos, jornalismo e documentação, comics etc. Essas linguagens competem entre si, de tal forma que uma extensão da “linguagem de ficção” é sempre, se não muitas vezes secretamente, autoconsciente.

Ao declarar a opção por uma escrita metaficcional que persegue a complexidade por meio de um catálogo de possibilidades linguísticas diversas, Maria Valéria retoma o viés plurilinguístico do romanesco tanto como uma resposta quanto uma contribuição a um sentido radical mais extremo de que a realidade ou a história são provisórias: já não há mais um mundo de eternas verdades, mas uma série de construções, artifícios e estruturas inconstantes.

Os escritores metaficcionais voltam-se interiormente ao seu próprio meio de expressão para examinar a relação entre a forma ficcional e a realidade social. Nessa perspectiva, Waugh observa que eles têm focalizado na noção de que a linguagem cotidiana defende e sustenta tais estruturas de poder pelo contínuo processo de naturalização, por meio do qual as formas de opressão são construídas em representações aparentemente “inocentes”.

O desafio que a obra se propõe é disputar o leitor contemporâneo, assediado por uma indústria cultural que interpela e embrutece mentes e sentidos, e trazê-lo à leitura de textos desafiantes, que apontem outras formas de compreensão e interpretação do mundo e da arte. Quarenta dias apresenta uma abrangente pluridiscursividade dialogizada. No nível do dialogismo intrínseco, a autora cita diversos escritores em epígrafes, com as quais estabelece um diálogo de interação e intercomplementação discursivas.

Qualquer começo é só prosseguimento e o livro dos eventos está sempre aberto ao meio . Wislawa Szymborska. (REZENDE, 2014, p.  25)

Não pergunte por que lhe escrevo. Escrevo porque as palavras estão aí, como a cidade, a noite, a chuva, o rio, diante de mim, dentro de mim, uma torrente de palavras que não me cumprem. (Marília Arnaud). (REZENDE, 2014, p. 7)

Passo agora o dia todo a escrever o diário. (...) Dá-me a sensação da onipotência, da onisciência, de ser dono dos meus dias, das minhas horas e minutos, da minha verdade enfim... (Edson Amâncio). (REZENDE, 2014, p. 21).

Ao lado desse coro autoral, Maria Valéria comparece com igual isonomia entre as demais consciências, apresentando seu projeto maior que se intitula Quarenta dias, em diálogo estreitíssimo com o conjunto de citações que precedem cada capítulo, sem abdicar do seu papel de regente do coro de vozes. Fica evidente, portanto, que a liberdade dos demais autores ficcionalizados é sempre relativa, que não se situa fora de um programa, de uma poética da autora.

Maria Valéria Rezende
Outro procedimento intertextual usado por Maria Valéria são as tipologias textuais, verbais e não verbais que a personagem vai recolhendo em suas andanças pela cidade: folhetos publicitários dos mais variados serviços e empreendimentos, guardanapos com anotações, comandas de restaurante, listas, santinhos, recibos etc. A diversidade textual serve de registro para interpretação do grande texto semiótico que é a cidade, estão ali colados no diário da Barbie. Essa colagem textual revela um desenho disforme do abandono e da opulência de um Brasil dos assombros.

O sentido dialógico presente na obra ultrapassa o contexto intrínseco das personagens e avança rumo ao diálogo cronotópico, reatando laços e rompendo outros no grande coro de galos cantantes que tecem a aurora, o pôr do sol e a noite do tempo grande do romance.

  O crítico argentino Ricardo Piglia[2] afirma em seu ensaio sobre memória e tradição que o ato criador é o entrecruzamento de textos. Ao discutir a tradição, ele exclui as relações de posse pessoal do escritor em face da linguagem, ao entender a memória cultural de cada um como um tecido cuja trama se compõe de citações, lembranças e esquecimentos.

Nos dias de hoje, tornam-se cada vez mais complexas as definições dos conceitos de inspiração, de originalidade e de intertextualidade já que nossa cultura tem-se caracterizado por traços impessoais e anônimos e pelo desaparecimento gradativo da noção de sujeito. Tudo isso se reflete na diluição da figura do autor e contribui para o alargamento do espaço textual e discursivo, pois tanto a obra quanto o escritor participam do sistema coletivo de enunciação de saberes. Dessa forma, é possível um diálogo permanente entre os textos, que passa a receber o sopro revitalizante de receptores futuros e da inevitável transformação dessa mesma tradição.   

O sopro revitalizante escolhido por Maria Valéria Rezende é o já citado Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, ele próprio composto de infinitas referências literárias, como destaca Sebastião Uchoa Leite, tradutor brasileiro do romance de Carroll. 

(...) é a comprovação das alusões históricas dos textos de Alice e, sobretudo das alusões literárias. Este é o caso das canções inseridas nos textos. (...) dos 24 poemas dos textos de Alice, são paródias de poemas e canções inglesas bem conhecidas na época  (LEITE, p. 150).

O que importa assinalar aqui é o quanto a fantasia carrolliana está presa a um universo de referências, inclusive as literárias, sendo, nesse último aspecto, tão metaliterária quanto inúmeras passagens dessa épica paródica que foi o Ulisses, de James Joyce.  Também os personagens de Carrollianos são, em grande parte, referenciados seja em poemas infantis e contos da tradição popular, seja a expressões e costumes locais. (LEITE, p. 150-151).

Assim como no Alice de Carroll, o leitor vai encontrar citações explícitas que comparecem no dialogismo extrínseco de Quarenta dias:

Tão de repente que Alice nem teve tempo de tentar parar antes de despencar no que seria um poço muito fundo. (REZENDE, 2014, p. 73)

(...) mil vezes o telefone, ecoando no apartamento vazio, vazio, porque eu não estava lá, tinha entrado pelos livros adentro, caído num poço profundo, passado para outro mundo louco, um ‘wonderland’ qualquer de onde esta Alice não pretendia voltar tão cedo.” (REZENDE, 2014,.p.. 85)    

A Alice de Maria Valéria Rezende nos apresenta, como um narrador refletor, uma Porto Alegre que não aparece normalmente na mídia. Já imersa no poço, começa a  escavação em busca do paradeiro do jovem paraibano Cícero Araújo, mas nos mostra muito mais: denuncia  a vulnerabilidade social do trabalhador informal, dos proletários  que vivem em comunidades periféricas, formadas em grande parte por moradores nordestinos que ali se estabeleceram em busca de trabalho e nunca mais puderam retornar à terra natal. Essa busca transforma-se na busca de sentido para sua própria vida, depois que se vê abandonada pela filha.  Assim como a personagem de Carroll, Alice vive sua experiência vertiginosa no poço labiríntico de uma Porto Alegre desconhecida:   

Saí, em busca de Cícero Araújo ou sei lá de quê, mas sem despir-me dessa nova Alice, arisca e áspera, que tinha brotado e se esgalhado nesses últimos meses e tratava de escamotear-se, perder-se num mundo sem porteira, fugir ao controle de quem quer que fosse. (REZENDE, 2014, p. 95) 

O salto fundamental de Maria Valéria baseia-se na utopia do reconhecimento de que a leitura do mundo, mesmo esfacelado pelas desigualdades sociais, apresenta a possibilidade de converter a angústia da escritura, vivenciada pela personagem narradora, no prazer do texto como um ato estético e ético. Oxalá possa abrir os horizontes da cultura complexa e multifacetada do mundo, e que sob nossa responsabilidade deveremos ser capazes de construir no movimento incessante de nossa peregrinação angustiada e alegre em busca do sentido da vida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas. Trad. e ensaio Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora 34, 2015.

CORGOSINHO, Isabel Cristina. Se um viajante no tempo grande do romance: entre a angústia da escritura e o prazer da leitura, em Italo Calvino no período 2010-14. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Pós-Lit. Universidade de Brasília - UnB. Brasília, pp. 278. 2014.

WAUGH, Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction.London & New York:Methuen(New accentes), 1984. Vii , 176 .

REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

 


[1] WAUGH , Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction.London & New York: Methuen (New accentes), 1984. Vii , 176 p.

 

[2] PIGLIA, Ricardo. Memoria e tradición. In: CONGRESSO ABRALIC, 2,1991, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 1991. p. 60-66.

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Isa Corgosinho é natural de Brasília/DF, Professora doutora universitária, aposentada, poeta, cronista, contista, ensaísta. Livro “Memórias da pele” (Venas Abiertas, 2021). Coletânea Nós: Poesia selecionada e autora premiada/1° lugar Crônicas. (Selo Off-Flip, 2023); Coletânea Nordeste: poesia selecionada, conto destaque (Selo Off-Flip, 2023); Prêmio Off-Flip 2024 Conto Destaque; Prêmio Off-Flip 2024 Poesia Destaque.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM LINDA BARROS, POR GABRIELA LAGES VELOSO

                               


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |08

ENTREVISTA COM LINDA BARROS

Por Gabriela Lages Veloso

"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher" essa frase de Simone de Beauvoir nos lembra de que nossas identidades, e em consequência disso, nossas vozes, estão em constante aperfeiçoamento. Nesse contexto, a literatura dá voz e poder às mulheres, bem como é uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber Linda Barros, uma artista de destaque na cena maranhense atual.

ENTREVISTA COM LINDA BARROS:

Arquivo pessoal da autora

Linda Barros é natural de Pastos Bons/MA. Graduada em Letras (Português-Espanhol), pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e pós-graduada em Língua Portuguesa, pela Faculdade Atenas Maranhense (FAMA); em Dança Educacional, pelo Censupeg (SC) e em Artes Cênicas, pela mesma IES. É escritora, cronista, contista, poeta e atriz. Participa do Grupo Teatro Improviso, no qual já atuou em vários espetáculos, tais como Verão no Aquário – baseado na obra de Lygia Fagundes Telles; O Mulato, de Aluísio Azevedo; Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, onde interpretou a intrépida Rainha de Copas, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, dentre outros. É professora da Rede Estadual de Ensino do Maranhão e do Ensino Superior na Faculdade do Maranhão – FACAM, nos cursos de Letras, Pedagogia e Turismo. É autora dos livros Palavras ao Vento (2018) e Meu Ser Espelhado em Mim (2022) e coautora de Maranhão na Ponta da Língua (2011), que reúne palavras e expressões maranhenses, em uma parceria com o escritor José Neres. Participou da Coletânea Enluaradas (2020), que conta com a participação de escritoras de várias nacionalidades, e, da coletânea Por que Escrevemos - A voz da Mulher (2021), organizada pela Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). É colunista do Portal Facetubes, que faz parte da Academia Poética Brasileira, bem como colabora com o Site Região Tocantina. É membro da AJEB-MA (Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil); da Sociedade de Cultura Latina, e da Academia Poética Brasileira (cadeira de número 99). Atualmente é, também, Secretária Executiva Nacional, da referida Academia.

Você estuda, escreve e trabalha com Literatura. Como foi o seu encontro com o mundo das Letras?

No Ensino Médio eu devorei praticamente todos os livros de literatura que havia na biblioteca da escola, a partir daí, foi um passo para fazer Letras, o curso que sempre quis. Chegando à faculdade, foi automático o interesse pela literatura.

Além de escritora, você também é atriz. A sua formação, na área de Artes Cênicas, tem alguma influência na sua escrita literária?

Sim, muito. Durante o tempo em que estava estudando Artes Cênicas, escrevi bastante, inclusive textos voltados para área do teatro. Vou confessar que me sinto privilegiada por fazer parte de “vários mundos”, fato esse que, contribuiu e contribui para meu enriquecimento intelectual.

O que é escrever para você?

Escrever além de ser um processo contínuo, devido ao contato direto com obras, autores, textos, passou a ser algo corriqueiro. Escrever é a forma mais simples de expressão de ideias, de sentimentos, é pôr no papel aquilo que às vezes não conseguimos expressar com a oralidade.

Quais escritoras(es) te inspiram?

Para quem vive no mundo das Letras e em contato direto com o mundo literário, é difícil escolher um autor ou autora específico. Seria até injusto, mas enfim. Dentre dezenas de fontes de inspiração, temos, claro, aqueles nomes de cabeceira, como Cecília Meireles, Laura Amélia Damous, José Neres, Mhario Lincoln, Celso Borges, Silvana Meneses, Luiza Cantanhêde, Fernando Sabino, Laura Neres, Dilercy Adler e tantos outros mais.

Conte-nos sobre o seu primeiro livro, Palavras ao Vento (2018). Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda?

Eu já viajei muito para trabalhar, dando aulas por cidades do interior e eu sempre ia de carona, ou seja, assim conseguia ver melhor as paisagens, a estrada como um todo. E nessas viagens levava sempre um caderninho ou uma agenda e aproveitava para escrever, por isso o título, Palavras ao Vento, é como se as palavras saltassem literalmente para o meu caderno. A temática gira em torno das coisas ou acontecimentos do percurso dessas viagens, como paisagens, natureza, pessoas que eu via pelo caminho.

E quanto ao seu livro mais recente, Meu Ser Espelhado em Mim (2022)? Qual é o principal tema dessa obra?

Aqui preciso fazer um balanço desse itinerário literário. Por quê? Porque muita coisa aconteceu no período da pandemia. Eu entrei para Academia Poética Brasileira, onde comecei a publicar textos na plataforma do Facetubes, foi o período em que também fui convidada para colaborar no Site Notícias da Região Tocantina, no meio do caos também participei de duas Antologias, a primeira, A Coletânea Enluaradas (organizada por Marta Cortezão que mora na Espanha) e a Coletânea Por que Escrevo – a voz da Mulher (organizada pela AJEB/MA). E foi também no período mais crítico da Pandemia que nasceu Meu Ser Espelhado em Mim, meu segundo livro de poemas. É uma obra, digamos, mais madura, mais consciente com a escolha dos poemas. A temática principal é sobre mim mesma, meu eu interior e mundo exterior do qual faço parte. Alguns poemas também são a título de homenagens. 

Fale sobre os seus demais projetos na área de literatura e cultura, como, por exemplo, o Grupo Teatro Improviso.

O Improviso, além de ser um grupo de teatro convencional, trabalha também com o teatro empresarial. O que isso significa? Significa que as empresas às vezes têm um projeto e precisam que isso seja mostrado para o público em geral, então chamam o grupo, mostram a proposta e a equipe de diretores monta o espetáculo. Temos formações todos os fins de semana, com leitura de textos, trabalho de corpo e voz e ensaiamos hipoteticamente algum texto, mesmo que não tenha apresentação. Em resumo, estamos sempre em  contato com o teatro. Com espetáculo, por enquanto estou só em processo de formação, no entanto o grupo segue com ensaios com outro elenco para apresentação em breve. Dentro da literatura, ainda este ano, estarei participando de antologias. Fora isso, continuo escrevendo e publicando para a plataforma Facetubes da Academia Poética Brasileira e para o site Notícias da Região Tocantina.

Na sua opinião, qual é a importância de adaptar obras literárias para o teatro?

Importante e às vezes necessário, mas muito, muito difícil. Na verdade, é desafiador, porque é outra linguagem, outra estrutura, é totalmente diferente. O texto teatral é extremamente rico, porque não é só o texto em si, a linguagem teatral envolve uma série de coisas tais como: figurino, maquiagem, elementos de cena, personagens, etc.

Mais do que escrever, é necessário fazer ecoar nossas vozes. Assim, se destacam projetos como a Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Qual é a importância da AJEB-MA, para você?

A AJEB com a diretoria aqui do Maranhão e representada pela nossa presidente Anna Liz Ribeiro, tem uma importância enorme, grandiosa na minha vida. Lá, somos todas mulheres escritoras e algumas jornalistas/escritoras. Pela AJEB, já pude ter a oportunidade de participar da antologia Por que escrevo: a voz da mulher, uma coletânea lindíssima, com textos incríveis. Nessa Associação também, já tive oportunidade de fazer performance poética, juntamente com outras autoras. Enfim, é um grupo que me levou para fora do país, pois lançamos a antologia em Portugal, onde entramos ao vivo pelo canal no YouTube, foi incrível.

Como convidada da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

Eu ouço muitos relatos de jovens (homens e mulheres) que escrevem, mas não têm coragem de mostrar seus textos, então, o conselho que dou é que publiquem. Hoje em dia, existem centenas de espaços (virtuais, principalmente) para publicações, coisa que não acontecia há um tempo atrás, ou seja, hoje existem muitas oportunidades para divulgar o seu trabalho.


Contato da escritora:

Instagram: @lindabarros_

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Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente, é colunista do Imirante.com e do Feminário Conexões. Além disso, colabora com coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Em 2023, publicou o seu primeiro livro de poesia: O mar de vidro, pela Caravana Grupo Editorial, bem como organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: COERÊNCIA - Por Rita Alencar Clark

LIÇÕES DE SILÊNCIO|09


C O E R Ê N C I A  (crônica) 

Imagem do site Pinterest
Um dos meus ex-maridos, um dia, numa daquelas DRs intermináveis, me definiu: “você pode ser tudo… (nessas reticências continham traços de prepotência machista), mas uma coisa é incontestável, a sua coerência!”. Sim, verdade. Tomei como elogio e norte. 


O negócio é que sou espírito selvagem, livre, daqueles que não suportam a ideia de serem “domesticados”. Mas, às vezes, temos que fazer escolhas, escolhas de alma; o imponderável se mostra  e vão-se as obras de arte e anéis, ficam os filhos, os gatos e a paz! Mas dá trabalho, minha irmã… uma vida inteira tendo que correr com os lobos. Penso nisso, constantemente, talvez a idade tenha me trazido questões encaixotadas, tipo “Cold Case”, sabe? Sentimentos terríveis de arrependimentos e escolhas irreversíveis. “E se…” É muito cruel! 


Nesse (corajoso) mergulho íntimo às águas escuras do meu passado revejo as possibilidades de outros caminhos… e logo percebo, quase tendo uma epifania, que só me restava, em tais circunstâncias, decidir pela coerência ao que penso e sou. Banquei, e isso me trouxe até aqui. 


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Sou grata a mim mesma, por todas as vezes que ajoelhei no chuveiro pra chorar, pra me render…e sempre levantei. Para escrever o que escrevo, tive que fazer esse caminho, muitas vezes às cegas, fingindo certezas, aprendendo a jogar os dados da vida. Sai daí o tempero da minha escrita, tive que quebrar meus sapatinhos de cristal para aprender a andar descalça e livre. Essa “liberdade toda” tem um preço, umas vezes alto demais pra ser bancado, outras vezes, uma pechincha!


Como no poema “savoir vivre” de Myriam Scotti em seu novo livro. A narradora encontra na lucidez (autoconsciência) e na ironia fina, uma forma de impor limites aos impulsos recônditos de dominação e controle de outrem, sob pena de ser riscado, limado de  seu “moleskine vintage”…poeticamente!


Este foi o poema que, atendendo ao meu pedido, Myriam leu no lançamento de “Receita para explodir bolos”, seu novo livro de poesia lançado em Manaus e na Flip deste ano. Fiquem com ele:


savoir vivre


quando me chamaste para uma conversa

compareci (pontualmente) para o término

“cansei de ti, és correta demais

com tudo sempre anotadinho

provavelmente nos amamos ontem às oito

conforme mandava tua agenda” 

depois disso, partiste…

tirei da bolsa o moleskine vintage

para te riscar como compromisso


não estavas pronto para o meu savoir vivre


(Myriam Scotti/ in- “ Receita para explodir bolos” -2023)


Tenho certeza que a literatura feita por mulheres, seja prosa, poesia ou  pesquisa, ainda ocupará o espaço que tem por direito ocupar; a luta vai ser, como sempre, desigual, mas é nossa! E como disse Maya Angelou: "Sou feminista. Já sou mulher há algum tempo. Seria estúpido não estar do meu próprio lado."



Rita Alencar e Silva

Crônica 




quinta-feira, 23 de novembro de 2023

MAIS ANA QUE LEILA, POR MARINA MARINO


 𝙈𝙖𝙞𝙨 𝘼𝙣𝙖 𝙦𝙪𝙚 𝙇𝙚𝙞𝙡𝙖



Acesso a Internet e a foto da apresentadora está ali, em destaque. No momento do clique, a moça sorria um sorriso lindo. A notícia que se lia a seguir, no entanto, não falava de beleza, nem de alegria.

Ela, conhecida em todo o país, aparece diariamente em um programa matutino na TV, apanhou do marido. Sim, foi isso que eu li, espantada, na legenda da foto.

A notícia decorria sobre a agressividade do sujeito e enumerava situações violentas que ele já tinha imposto anteriormente à vítima, acho que já posso defini-la assim. O agressor desmentiu, claro, tentou amenizar a situação, querendo desculpar a si mesmo, minimizar o ocorrido, quase culpando a vítima pelo início da discussão, como sempre fazem todos os agressores. Horas depois, após pressão da imprensa, acabou por assumir o ocorrido.

Enquanto eu lia a notícia, veio à minha mente que esse tipo de situação é comum acontecer nas classes mais baixas da sociedade. (Não consigo esquecer do caso de uma vizinha que saiu de ambulância, depois de ser violentamente agredida pelo namorado.) Já uma mulher rica e famosa, que passa a sensação de ser bem resolvida, apanhar do marido, traz à tona a evidência da vulnerabilidade de todas, independente de raça ou classe social.

O caso coloca todas as mulheres muito próximas da Ana, já que são ou podem ser agredidas, silenciadas, oprimidas, por alguém que se dizia parceiro, em quem confiavam. É a lógica heteronormativa da sociedade que dá aos homens permissão para disporem do corpo da mulher a seu bel-prazer, entre “tapas e beijos”, o que explica outros crimes a que elas são submetidas e que só aumentam nesse Brasil violento revelado nos últimos anos, onde cantadas, piadas, “encoxadas” são consideradas apenas brincadeira pela maioria.

Um hit em 1993 cantava: "𝘵𝘰𝘥𝘢 𝘮𝘶𝘭𝘩𝘦𝘳 𝘲𝘶𝘦𝘳 𝘴𝘦𝘳 𝘢𝘮𝘢𝘥𝘢, 𝘵𝘰𝘥𝘢 𝘮𝘶𝘭𝘩𝘦𝘳 𝘲𝘶𝘦𝘳 𝘴𝘦𝘳 𝘧𝘦𝘭𝘪𝘻, 𝘵𝘰𝘥𝘢 𝘢 𝘮𝘶𝘭𝘩𝘦𝘳... 𝘦́ 𝘮𝘦𝘪𝘰 𝘓𝘦𝘪𝘭𝘢 𝘋𝘪𝘯𝘪𝘻." Vou ter que discordar. Infelizmente não somos nada Leila Diniz, se fôssemos não estaríamos aceitando caladas as pequenas violências do dia-a-dia, que crescem, ganham força e nunca têm final feliz. Rita Lee que nos perdoe, mas no momento atual, muitas de nós nem sequer sabem quem Leila foi, muito menos o que poderiam representar suas revoluções ao movimento feminino, se tivéssemos dado valor a elas.

No Brasil atual, perverso com as mulheres, a liberdade feminina está longe de se concretizar... Não permitiram às novas gerações conhecer Leila, denegriram sua imagem. Andamos para trás, Rita, apesar dos teus esforços. Estamos mais para Ana do que para Leila.

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Marina Marino é escritora, editora e livreira, é criadora da Voo Livre Revista Literária. É autora de 4 livros, sendo 2 infantis, 1 romance e 1 para mulheres. Publica poemas e contos em antologias tanto no Brasil como em Portugal, desde 2013. Marina se encontra no que escreve, porque tudo sempre é sobre o que ela vive.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

NA TRILHA DO FEMININO: LARGADA DOMÉSTICA, DE RILNETE MELO

N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|08

LARGADA DOMÉSTICA

Era uma segunda-feira, dessas do tal calorão de 39° que quase fritava meus miolos e  fritava também ovo no asfalto,  dessas em que o dia branco, na verdade foi cinza; Do  bombril  impregnado nas unhas,  pó de casa varrida no pé e massa cinzenta pensando debaixo do chuveiro: Tenho que fazer isso, depois isso, amanhã  aquilo... E eternamente isso! 

Exausta, depois de me virar nos 30,  marido já  dormindo, ponho um cafezinho na xícara, destravo o celular para escrever alguma coisa, embora com o corpo pedindo arrego, a mente  ainda escrevive!  Passeio  pelo Instagram  e vejo, enfeitando o feed  viralizado, o tema da redação do Enem 2023: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

E de repente foi o assunto mais comentado na semana  e  alvo de debates polêmicos nas redes sociais. Dos memes às charges,  o que mais me impressionou foram os comentários machistas do tipo: “Trabalho? Que trabalho?”, “E a invisibilidade de quem paga as contas, o Inep não vai comentar?”. Circulou até um vídeo de um  deputado  falando que daria punição à filha se ela tirasse boa nota nessa redação! (Santa imaculada do feminino sofrido, que nos proteja desse patriarcado!!)

Mas o comentário que me desafiou a escrever essa  crônica foi lançado para mim em um post recente, quando ainda nem tinha ideia do tema da redação e já  abordava exatamente sobre a invisibilidade do papel da mulher desde os tempos mais remotos até os dias atuais, que é cuidar, amar, cuidar... E no profícuo ofício de cuidar, mendigar amor! E o famigerado machista, agora  já deletado  do meu perfil e denunciado, de pronto comentou: “Se você conseguir descarregar caminhão, trocar pneu de jamanta e emboçar parede, pra senhorita eu dou “A  taça cacete", (me diz aí quem não soltaria as cachorras??).

Saiba muito bem, pai da Santa  ignorância e do olho cego, que  se  tivesse olimpíadas para o trabalho doméstico, não haveria taças  para tantas vencedoras! Dada a largada, a categoria “Excesso de cuidados" subiria ao pódio ao som de uma “Ave Maria", pois, no silêncio rotineiro da mulher, o cuidado  doméstico soa como uma música piedosa que é (in)visível,  embalando  as protagonistas  nos bastidores do cotidiano.

Na sociedade capitalista, a relação de poder do homem em detrimento da mulher, ouço dizer que se “dá(va) “?? pelo fato do homem ser responsável pela renda familiar, mas o mercado de trabalho foi aberto  para as mulheres e a conta ainda não fechou, pois agora é dobradinha:

 “Trabalho e cuidados".

A verdade é que, em pleno século XXI, a mulher ainda é o “anjo do lar”, e que anjo!!   Carrega nas asas o peso do trabalho dobrado, dentro e fora de casa, no sonho de  alçar voo rumo à igualdade de gênero e à equidade.

“Desde que me lembro de ser gente, lá em casa, quem dobrava os lençóis da cama era eu, minhas irmãs ou mamãe", porque isso era serviço de mulher!  Isso tem mais de meio século e os lençóis ainda não chegaram nas mãos dos homens, pois eles não sabem dobrar as pontas iguais, afinal, de igualdade o universo masculino  nada quer saber, né? E se sabe, ainda pergunta onde fica.

Lembro que minha avó costurava, fazia crochê, consertava guarda-chuvas, fazia a comida, varria a casa, passava a roupa no ferro de brasa, e fazia e fazia, e ainda  ajudava meu avô a plantar e colher, botava a comida dele na mesa e, no final do dia, ele pedia o lençol para dormir, pois não sabia onde estava... Será que lembrava de agradecer?. Fala sério, mudou alguma coisa? Um tantinho? Nada? Coisa nenhuma?

Conquistamos  sim, quebramos alguns tabus e estereótipos, como o direito ao voto e ao trabalho desigualmente remunerado, mas há um trabalho (cuidado) eterno  que  continua  invisível, o status quo “gestão do lar”, sempre na manutenção das condições observadas.... Casa varrida, roupa lavada, fralda trocada, mamadeira pronta, comida no prato,  cama arrumada... Na verdade é uma verdadeira “Largada doméstica” apenas com ponto de partida. 

E aqui eu deixo um poema de minha autoria para que possamos refletir sobre nossa saúde mental,  sobre  o excesso de cuidados para com o outro e das situações estressantes às quais nós mulheres estamos mais propensas e sem reconhecimentos. 


LARGADA DOMÉSTICA 


Lambeu o chão,

esticou a língua 

ao sal

e correu para a panela,

como sempre correu contra o

tempo.

Cozinhou os sonhos,

o prazer,

a vida.

- Do menu servido

no prato cotidiano -

a carne parida,

o amor ofertado,

e o reconhecimento

ao molho. 

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora de cinco cordéis e dos livros solo Construindo Versos e O máximo de mim e outros mínimos poemas.

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