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terça-feira, 23 de novembro de 2021

ELES LEEM ELAS: FLOR DE LINZ, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 

ELES LEEM ELAS|08

Flor de Linz de Danielli Cavalcanti

CRÔNICA DE UMA MIGRANTE BRASILEIRA NA EUROPA

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

 

“Flor de Linz”, da escritora brasileira Danielli Cavalcanti, é livro que deveria ser lido e relido por aqueles que sonham com paraísos europeus onde tudo ‘floresce’ e a vida humana é plena de realizações e prosperidade. Tendo como palco o fictício café “Flor de Linz” existente na cidade austríaca de Linz e que se afigura como um ponto de apoio e encontro de imigrantes, uma voz narrativa (que traduz as experiências da própria autora que de fato ali residiu por anos), expõe o cotidiano dos migrantes, sobretudo brasileiros, que, por um motivo ou outro, acabaram indo dar com os costados naquelas paragens às margens do rio Danúbio.

Positivamente vivemos época em que a distinção entre “migrantes” e “refugiados” é cada vez mais tênue. De fato, vem ocorrendo no mundo uma forte mutabilidade e variedade dos fluxos migratórios, porque impulsionados por mudanças mais densas, imbricadas e complexas do que em épocas anteriores. São múltiplas as confluências e semelhanças entre ambos os conceitos e indiferenciadas muitas das causas e consequências desses fluxos. Difícil, muito mesmo, diferenciar movimentos “voluntários” dos “forçados” por guerras e/ou perseguições políticas, tal a natureza híbrida dos mesmos. Muitos dos migrantes “voluntários” – por vezes designados como migrantes econômicos – são na realidade “forçados” a deixar suas regiões de origem, devido a situações de grande privação (absoluta ou relativa), como parece ser caso da maioria dos migrantes brasileiros que optam por tal alternativa ante um quadro social extremamente instável, de avanços e recuos cada vez maiores no país.

A velha questão de ausência de perspectiva de melhoria de vida, aliada à um quadro de instabilidade, violência crescente, corrupção e crise constante, tem empurrado muitos às aventuras em terras europeias.Decorre de tal situação, que a vivência e convivência em tal ambiência é sempre marcada também por muito sofrimento físico e psíquico (pois o tal homo sapiens ainda acredita piamente que não existe paraíso sem serpente, e as vezes trabalha com afinco para que assim continue). As narrativas da senhora Danielli Cavalcanti, embora adornadas por uma tonalidade poética e por certo carinho pela cidade de Linz e alguns de seus habitantes mais cordiais, não esconde a brutalidade do racismo, o preconceito, e a imposição de uma mentalidade europeia que se pensa superior ao resto do mundo.

Há casos que beiram o cômico como é o caso de Açucena (os personagens femininos têm sempre nomes de flores) que se envolve em um triângulo amoroso que quase acaba em morte, ou o caso de Oleandro que precisou que uma pessoa austríaca falasse por ele – o simples sotaque estrangeiro por vezes é uma porta enorme bem trancada -, para fechar um contrato de locação de um imóvel. Interessante notar que, nesse caso específico, havia um amor em jogo, mais havia também outros interesses urgentes, e imagine-se o que é viver em tal condição:

“Para ela [a noiva], foi a forma de fazer diferença na vida de alguém. Para Oleandro foi a possibilidade de legalizar sua estadia e, finalmente, conseguir permissão para trabalhar e ter seguridade social. Sua emoção não cabia no coração. O Danúbio é testemunha das muitas vezes que Oleandro tremeu de tanto chorar as dores de anos trabalhando no submundo da construção civil. Durante todo o seu tempo de trabalhador indocumentado, teve sonhos destruídos e outros muitos adaptados.”O que pensar disto?

“Os ânimos a todo vapor me renderam duas visitas dos faróis azuis. Na primeira, controlaram minha permissão de estadia na Áustria e o alvará do café. Na segunda visita, as botinas pretas insaciáveis começaram a controlar as pessoas convidadas.”

Ainda pior: “Antes de abrir o café, eu tive um horário marcado no departamento para assuntos de imigração, para renovar meu título de residência permanente. Dessa vez, foi exigido também uma declaração de uma associação, que eu nunca ouvira falar, constando que eu não solicitara nenhum empréstimo bancário. E lá se foram 20 euros, para um papel comprovar que falei a verdade.”

Assombrosa a história de uma certa moça chamada Tulipa (brasileira), casada com um tal Hibisco (austríaco), que foi convidada para um jantar local. Observe-se uma a realidade que subjaz envolvendo mulheres migrantes. Primeiro a pergunta de uma ‘dama’ austríaca:“— Hibisco te escolheu de um catálogo, não foi?”, ante a estranheza que uma tal pergunta causou, veio a resposta:“— Sim, catálogo! Há muitos homens que não encontram mulheres aqui e as buscam de catálogos de outros países. Principalmente as mulheres do Sul são requisitadas pela sua submissão cultural.”

Há ainda outras observações que transmitem bem como é o dia a dia para os imigrantes:Na crônica “Florescimento contínuo” a tradução do que muitos europeus pensam sobre os migrantes: “Parece que, ao carimbarmos o passaporte num país estrangeiro, recebemos de cortesia o carimbo da menos valia, da incompetência. Por mais que nos esforcemos, nunca somos, suficientemente, bons.” Porque: “Nossas habilidades estão sempre sendo questionadas, quando não menosprezadas. Nossas capacidades subestimadas, ao ponto de sermos infantilizadas.”

Entretanto o livro, não trata somente de tristezas e desencantos, há espaço também para belos momentos de solidariedade a ajuda mútua, onde grandes amizades se constroem. Assim mesmo, cala forte nossas consciências quando lemos a crônica “Uma flor de jaçanã”, que narra toda aquela tragédia ocorrida bem na Áustria em 2015 (quem se lembra?), quando no final de agosto daquele ano, “um caminhão com 71 corpos foi encontrado numa autovia, e a Áustria sentiu o peso da presença daquelas vidas ausentes. Eram pessoas vindas na maioria, da Síria. Morreram asfixiadas, dentro de um caminhão, tentando atravessar a Áustria para chegarem à Alemanha.” Fica mesmo a terrível mácula, que o tempo não apaga, e que o texto refere com muita propriedade:

“E se tem que suportar o peso de suas almas gritando na consciência, e seus corpos expondo as crueldades de uma política de exploração e de extermínio. Chegam pelas águas como algas, estão em todos os lugares para nos lembrar do nosso fracasso como humanos.”




quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A Fruteira


Conto/02

Por Danielli Cavalcanti


A toalha de crochê, herdada da avó, vestia a mesa, testemunha de tantas mudanças da família e palco dos caprichos da fruteira. Esta delirava de orgulho por seu apelo decorativo valer mais que o de utilidade, pois mal cabia-se meia dúzia de laranja lá e a fruteira vaidosa arremessáva-as ao chão.

As bananas ficavam na geladeira, do contrário, não durariam nem dois dias naquela cozinha mormacenta.

Toda manhã, o café da menina era vitamina de banana.

Toda noite, em frente à TV com sua mãe, ela descascava uma bacia de laranja.

Quando a menina adoecia, a fruteira era a única a sentir-se satisfeita, pois, finalmente, desfrutava de outras companhias.

Aos 10 anos de idade, a menina teve catapora, a mãe achou por bem comprar umas frutas diferentes, na tentativa de despertar seu interesse apetecível, e trouxe-lhe uma maçã meio macenta e outra azedinha.

Esta maçã era a rainha da feira, importada da Argentina, disse a vendedora num papo de dar água na boca e de secar o bolso.

A menina não tomou gosto por nenhuma das duas, mas a mãe era crentinha que esse desgosto macieiro era fastio de bucho adoentado. E bastava a menina ter uma gripezinha, lá estava a fruteira orgulhosa de ter fruta importada, para desespero gustativo da menina que já não se dava mais ao luxo de adoecer para a mãe não ter que compra-lhe maçãs.

Anos se passaram e a menina-mulher foi morar num país, onde havia mais maçãs que laranjas, e experimentou outras sensações desse fruto proibido. Percebeu que seu medo de gostar de maçãs, era culpa pelo sacrifício da mãe em comprá-las. Deu a si mesma outra chance. Assim, o strudel de maçã tornou-se uma das suas sobremesas preferidas, e o bolo de maçã com canela perfuma sua casa nas festividades natalinas.

No seu país residente, a maioria dos muros das casas é bem baixinho e em muitos quintais, há um pé de maçã e/ou um mastro. A mulher gosta de observar as macieiras vivendo suas estações. No último outono, ela plantou uma macieira, uma cerejeira e uma ameixeira no seu jardim. Dentro de casa, ela cultiva uma mangueira. Ela nunca poderá ser transplantada lá fora, pois não resistiria ao frio escandinavo. A mulher a batizou de pé da lembrança. A mangueira não dará frutas, mas aguá-la é sentir os pés pequeninos daquela menina saltitarem.

A fruteira de sua mãe ela não sabe que fim levou. Lembra-se dela sempre, pois continua descascando bacias de laranja, agora com a filha.

 


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