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quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

ELES LEEM ELAS: A LANTERNA NO LABIRINTO, POR ROGEL SAMUEL



 ELES LEEM ELAS|09

Mapa das Narrativas nos Romances de Milton Hatoumde Francisca de Lourdes Souza Louro

A LANTERNA DO LABIRINTO


Em “Mapa das narrativas nos romances de Milton Hatoum de Francisca de Lourdes Souza Louro. -- Manaus, 2021” há uma cartografia, um passeio pelo mundo das ruas, das portas da linguagem, do som da crítica e da imaginação, as algaravias, as falas, as cartas, as identidades.

            O livro vai tecendo um tapete de significações, explicitações, com a vantagem de que vai ficando cada vez mais interessante à medida que avança, de forma que em vez de ser cansativo, acadêmico,  árido, repetitivo para o leitor mais alarga mais aumenta os interesses hermenêuticos, aquelas confissões, murmúrios, fofocas, recados, sintomas, cartas, como disse alguém: “Conta logo, mas devagar...”, que o prazer está nos cantos escuros do texto, e detalhes, n“as mocinhas do viúvo Talib, não as filhas: as outras, que ele fisgava perto dos armazéns. Na casa dos Reinoso era muito pior, Zana ficava sem fôlego, me pedia para contar tudinho. Quando a confusão começava, os empregados ligavam o gerador para abafar os guinchos dos macacos e os gritos de Abelardo Reinoso”.

            “Em que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?

            Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tampouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Recherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É certo que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase musical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembrança, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação material".  A obra de Proust é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos. (Deleuse: “Proust e os signos”).

            Esse aprendizado o faz a leitura que a Lourdes Louro faz (por exemplo) das mulheres que emergem dos romances, principalmente daquelas invisíveis, as “escravas”, crias, prostitutas. É na teia dos igarapés, da cidade flutuante, das falas, dos esquecidos, da algaravia. O aprendizado da vida amazônica. Sua tristeza, seu capitalismo periférico. Como em Proust, “é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos”.

        Pode-se dizer que Lourdes Louro construiu um romance fragmentado sobre os três romances do Milton através de “pistas sobre sua produção, cartas, fotos, conversas com os mais velhos, especialmente os avós, o pai, muitos artifícios para dar os nós nos fios que amarram o texto”.

            Escreveu Hatoum:

        “Decidi, então, perambular pela cidade, dialogar com a ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço (p. 122). Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Crescemos ouvindo histórias macabras e sórdidas daquele bairro infanticida, povoado de seres do outro mundo, o triste hospício que abriga monstros. Foi preciso distanciar-me de tudo e de todos para exorcizar essas quimeras, atravessar a ponte e alcançar o espaço que nos era vedado: lodo e água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco-íris e recortadas por rasgos verticais...”

            De acordo com Ricoeur e Gadamer, a hermenêutica vê os textos como expressões da vida social fixadas na escrita, através de fatos psíquicos, de encadeamentos históricos. Sua interpretação consiste, então, em decifrar o sentido oculto no aparente, e desdobrar os diversos graus de interpretação ali implicados. Na realidade a hermenêutica é compreensão de si, mediante a compreensão do outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor se compreende a si mesmo, interpretando o texto.

            A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade, mas compreender não significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula uma superação: Ela se quer uma teoria e uma arte, fazendo da leitura uma nova criação, e dela se exige uma reflexão que leve à ação.

            A hermenêutica questiona a evidência, recusando-se a explicar completamente o fato interpretado. Uma interpretação definitiva deve ser uma contradição em si mesma, diz Gadamer. Pois, mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado, é perguntar pelos interesses que o guia.

         “Vemos nas cores da grande tela amazônica, os quadros narrativos que o autor imprime e apresenta aos leitores, como se observa nos três romances”, diz a Lourdes Louro.

            Ele conclui que “neste texto, mas por acharmos ser a mais exata para fechar a análise pode-se constatar que estudar os três romances nessa “perquirição” foi uma aprendizagem abalroada (em que) eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas ou visgado na penumbra dos quartos (RcO: p. 51) onde percebi e tive o prazer de (re)ver nas histórias hatounianas o (re)viver da vida amazônica.”

        O termo hermenêutica, num sentido mais radical, não quer dizer arte da interpretação, mas a tentativa de determinar a própria interpretação, a própria compreensão. E assim, a hermenêutica torna-se interpretação da compreensão ou “círculo hermenêutico”, pois toda compreensão apresenta uma estrutura circular: “Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar.” O mundo, portanto, é o que se encontra no horizonte da compreensão. Nosso mundo é o que se encontra no horizonte de nossa compreensão, mas podemos alargá-lo, mediante a compreensão do outro, realizando então uma fusão de horizontes.

       O que deve ter norteado a dra. Lourdes Louro é compreender a nossa cidade de Manaus, estabelecendo e abrindo um mapa de sentidos, um roteiro no labirinto, do entrecruzamento de vidas, de relatos, de sofrimentos, um quadro que se amplia no espaço, no tempo, na profundidade dos sentimentos – os nichos e escondidos, as gavetas – as tensões, amizades, e tudo que constitui a vida, esse mistério. As estórias daqueles personagens naquela cidade única, cercada de floresta, rios e lagos. Através dos textos do Milton procurou o valor de sua própria vida, de sua humanidade, que é o que faz a hermenêutica. Toda pergunta busca essa impossível resposta nos fragmentos das recordações (e assim o livro é fragmentado).

        O livro de análise e leitura é propositalmente costurado em temas e lemas, em fatos e motes, em fantasmas, medos, vultos, sombras, pois em certa época (que eu conheci) não se podia andar à noite sem levar uma lanterna.

           Essa lanterna é o que busca o rumo do nosso destino.


Sobre Francisca de Lourdes Louro:

        De Manaus/ AM. Possui Pós-Doutorado em Sociedade e Cultura da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Mestrado e Doutorado em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra-Portugal. Especialista em Literatura Moderna e Pós-Moderna pela UFAM, Graduação em Letras – Língua e Literatura Portuguesa pela UFAM. Professora de Língua e Literatura Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC/AM). A autora escreveu mais de uma dezena de artigos sobre a produção literária de autores amazonenses  que estão disponíveis em versão eletrônica pela internet. Em 2019, publicou o livro Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos, em parceria com José Aldemir de Oliveira. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP e do Projeto Poesia, Prosa e Cinema no Amazonas: 1996-2016, ambos desenvolvidos na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sob a coordenação da professora Dra. Rita Barbosa de Oliveira. É Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos Semióticos: Literatura, Cultura e outras Artes (GES), do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Coordenado pela Dra. Socorro Viana de Almeida. Publicou em parceria: com a Dra. Socorro Viana de Almeida :IMAGENS AMAZÔNICAS - Estudos de Semiótica, Poética e Hermenêutica.


Visite o o blog de Rogel Samuel AQUI.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

ELES LEEM ELAS: FLOR DE LINZ, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 

ELES LEEM ELAS|08

Flor de Linz de Danielli Cavalcanti

CRÔNICA DE UMA MIGRANTE BRASILEIRA NA EUROPA

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

 

“Flor de Linz”, da escritora brasileira Danielli Cavalcanti, é livro que deveria ser lido e relido por aqueles que sonham com paraísos europeus onde tudo ‘floresce’ e a vida humana é plena de realizações e prosperidade. Tendo como palco o fictício café “Flor de Linz” existente na cidade austríaca de Linz e que se afigura como um ponto de apoio e encontro de imigrantes, uma voz narrativa (que traduz as experiências da própria autora que de fato ali residiu por anos), expõe o cotidiano dos migrantes, sobretudo brasileiros, que, por um motivo ou outro, acabaram indo dar com os costados naquelas paragens às margens do rio Danúbio.

Positivamente vivemos época em que a distinção entre “migrantes” e “refugiados” é cada vez mais tênue. De fato, vem ocorrendo no mundo uma forte mutabilidade e variedade dos fluxos migratórios, porque impulsionados por mudanças mais densas, imbricadas e complexas do que em épocas anteriores. São múltiplas as confluências e semelhanças entre ambos os conceitos e indiferenciadas muitas das causas e consequências desses fluxos. Difícil, muito mesmo, diferenciar movimentos “voluntários” dos “forçados” por guerras e/ou perseguições políticas, tal a natureza híbrida dos mesmos. Muitos dos migrantes “voluntários” – por vezes designados como migrantes econômicos – são na realidade “forçados” a deixar suas regiões de origem, devido a situações de grande privação (absoluta ou relativa), como parece ser caso da maioria dos migrantes brasileiros que optam por tal alternativa ante um quadro social extremamente instável, de avanços e recuos cada vez maiores no país.

A velha questão de ausência de perspectiva de melhoria de vida, aliada à um quadro de instabilidade, violência crescente, corrupção e crise constante, tem empurrado muitos às aventuras em terras europeias.Decorre de tal situação, que a vivência e convivência em tal ambiência é sempre marcada também por muito sofrimento físico e psíquico (pois o tal homo sapiens ainda acredita piamente que não existe paraíso sem serpente, e as vezes trabalha com afinco para que assim continue). As narrativas da senhora Danielli Cavalcanti, embora adornadas por uma tonalidade poética e por certo carinho pela cidade de Linz e alguns de seus habitantes mais cordiais, não esconde a brutalidade do racismo, o preconceito, e a imposição de uma mentalidade europeia que se pensa superior ao resto do mundo.

Há casos que beiram o cômico como é o caso de Açucena (os personagens femininos têm sempre nomes de flores) que se envolve em um triângulo amoroso que quase acaba em morte, ou o caso de Oleandro que precisou que uma pessoa austríaca falasse por ele – o simples sotaque estrangeiro por vezes é uma porta enorme bem trancada -, para fechar um contrato de locação de um imóvel. Interessante notar que, nesse caso específico, havia um amor em jogo, mais havia também outros interesses urgentes, e imagine-se o que é viver em tal condição:

“Para ela [a noiva], foi a forma de fazer diferença na vida de alguém. Para Oleandro foi a possibilidade de legalizar sua estadia e, finalmente, conseguir permissão para trabalhar e ter seguridade social. Sua emoção não cabia no coração. O Danúbio é testemunha das muitas vezes que Oleandro tremeu de tanto chorar as dores de anos trabalhando no submundo da construção civil. Durante todo o seu tempo de trabalhador indocumentado, teve sonhos destruídos e outros muitos adaptados.”O que pensar disto?

“Os ânimos a todo vapor me renderam duas visitas dos faróis azuis. Na primeira, controlaram minha permissão de estadia na Áustria e o alvará do café. Na segunda visita, as botinas pretas insaciáveis começaram a controlar as pessoas convidadas.”

Ainda pior: “Antes de abrir o café, eu tive um horário marcado no departamento para assuntos de imigração, para renovar meu título de residência permanente. Dessa vez, foi exigido também uma declaração de uma associação, que eu nunca ouvira falar, constando que eu não solicitara nenhum empréstimo bancário. E lá se foram 20 euros, para um papel comprovar que falei a verdade.”

Assombrosa a história de uma certa moça chamada Tulipa (brasileira), casada com um tal Hibisco (austríaco), que foi convidada para um jantar local. Observe-se uma a realidade que subjaz envolvendo mulheres migrantes. Primeiro a pergunta de uma ‘dama’ austríaca:“— Hibisco te escolheu de um catálogo, não foi?”, ante a estranheza que uma tal pergunta causou, veio a resposta:“— Sim, catálogo! Há muitos homens que não encontram mulheres aqui e as buscam de catálogos de outros países. Principalmente as mulheres do Sul são requisitadas pela sua submissão cultural.”

Há ainda outras observações que transmitem bem como é o dia a dia para os imigrantes:Na crônica “Florescimento contínuo” a tradução do que muitos europeus pensam sobre os migrantes: “Parece que, ao carimbarmos o passaporte num país estrangeiro, recebemos de cortesia o carimbo da menos valia, da incompetência. Por mais que nos esforcemos, nunca somos, suficientemente, bons.” Porque: “Nossas habilidades estão sempre sendo questionadas, quando não menosprezadas. Nossas capacidades subestimadas, ao ponto de sermos infantilizadas.”

Entretanto o livro, não trata somente de tristezas e desencantos, há espaço também para belos momentos de solidariedade a ajuda mútua, onde grandes amizades se constroem. Assim mesmo, cala forte nossas consciências quando lemos a crônica “Uma flor de jaçanã”, que narra toda aquela tragédia ocorrida bem na Áustria em 2015 (quem se lembra?), quando no final de agosto daquele ano, “um caminhão com 71 corpos foi encontrado numa autovia, e a Áustria sentiu o peso da presença daquelas vidas ausentes. Eram pessoas vindas na maioria, da Síria. Morreram asfixiadas, dentro de um caminhão, tentando atravessar a Áustria para chegarem à Alemanha.” Fica mesmo a terrível mácula, que o tempo não apaga, e que o texto refere com muita propriedade:

“E se tem que suportar o peso de suas almas gritando na consciência, e seus corpos expondo as crueldades de uma política de exploração e de extermínio. Chegam pelas águas como algas, estão em todos os lugares para nos lembrar do nosso fracasso como humanos.”




quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

ELES LEEM ELAS: BORDADOS, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS


ELES LEEM ELAS/06

BORDADOS: MESCLA DE GÊNEROS E SUBGÊNEROS LITERÁRIOS, A FUSÃO E TRANS-FUSÃO DE POESIA E PROSA, de Roberta Gasparotto


A cada dia, parece-nos, perdemos aquela antiga proposta crítica estável, firme, inflexível, em relação à literatura, enfraquecendo-se a confiança em modelos muito formalizados. Estamos vivendo uma mudança de paradigmas em todos os níveis do conhecimento humano, situação que propicia, por sua vez, uma visão mais complexa, teoricamente falando. Voltamo-nos ao necessário diálogo que cada crítico estabelece com o seu objeto, na busca da elucidação das questões que, no seu desafio, a obra lhe propõe. Isto não é propriamente uma novidade, vem de certo tempo à esta parte. Desde meados do século XIX, com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e companhia. O poema em prosa (e leia-se também a prosa poética), tornou-se uma terceira via da modernidade literária, a ponto de suscitar uma trajetória e tradição próprias desde então. Talvez como resposta ao dilema da expressividade poética. Vale a pena atentar para uma linhagem de textos contemporâneos que revelam algumas características em comum. Inspirados por forte carga subjetiva, apresentam uma linguagem despida de requintes e próxima da anotação íntima: mas com alta dose de reflexão. Importante referir que a atitude meditativa não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. O ato de refletir implica alguma complexidade; esboça-se a partir de operações entrecruzadas, envolvendo ao mesmo tempo as capacidades de perceber, duvidar, julgar, raciocinar – mistura que se resolve na singularidade do poema. Essa perspectiva permite ao sujeito lírico ocupar a centralidade do texto e despertar as associações que lhe interessam ou cativam. 

Paralelamente a isto, vivemos em uma sociedade de escala global. que ignora os sintomas e o sofrimento advindos de relações humanas desencontradas, do pouco caso com a natureza que nos sustém, e finalmente, assistimos perplexos a deterioração e decadência do humano, mesmo em face de tanto desenvolvimento tecnológico. Por cima, tome-lhe coice com a tal da pandemia monstruosa.  

O tempo torna-se algo efêmero e impreciso, em virtude da velocidade dos acontecimentos e da multiplicidade de possibilidades que se oferecem aos nossos olhos. Parece-nos que, ou melhor; plantam em nossas consciências a sensação de liberdade individual plena, tão sonhada durante tanto tempo. Liberdade esta que mostra-se carente de referenciais sólidos, tornando cada vez mais difícil a visualização de um ponto norteador, algo que indique uma coisa semelhante a um sentimento de certeza para o sujeito em suas escolhas. Nessa perspectiva, a Pós-Modernidade oferta aos indivíduos uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança generalizada, e dessa forma, o mal-estar vai se caracterizando pela liberdade fluida, e não pela opressão e repressão de outrora. Desamparo no sentido de que carecemos de referências sólidas de identificação, uma vez que se tornou impossível fixar-se a um determinado tipo de identidade em um cenário em que a transitoriedade dos referenciais é perpétua e contínua. Viceja por seu turno, a violência de todos os tipos, às vezes chegando às raias do terrorismo, fruto de uma sociedade desigual onde a desconsideração com o outro incentiva práticas intolerantes e retaliadoras. 

Voltemos ao poema em prosa produzido aqui e agora, em um meio como este no qual “o real está demasiado posto e nos encara com olhos esbugalhados” e que o sentimento forte que nos assedia é “sentir profundamente a impotência, o nojo e a vergonha de ser... [humano]”. Os textos de “Bordados” da escritora Roberta Gasparotto, recentemente editado pela Camino Editorial do Rio Grande do Sul, nutrem-se de algumas conquistas radicais como a mescla de gêneros e subgêneros literários, a fusão e trans-fusão de poesia e prosa, verdadeiros vasos comunicantes que forjam os vários modos de poetização/liricização da prosa e de prosificação da poesia lírica. A obra que foi publicada em formato e-book revela uma escrita concisa – e contraditoriamente sentenciosa –, interessada muitas vezes em registrar o flagrante da subjetividade em face da circunstância real ou imaginária. Ou por outras palavras: o poema se transforma em "pequena reflexão”, deslizando para um tom sem ornamentos, acionando uma sensibilidade aguda e sintética.

Encontramos na obra uma mistura de tendências estéticas.  Alguns textos de caráter intimista, misturados a outros com temáticas cotidianas e de engajamento social, notadamente com relação à situação da mulher ante o mundo, (não necessariamente de um feminismo militante), há ainda os de formato reduzido, quase poemas frasais. Em Roberta Gasparotto, observamos ainda o uso constante de reticências que não indicam propriamente divagações da voz poética, ou desvio na linha do pensamento, mas sugerem uma continuidade daquilo que é realmente dito, indicando que a ideia que se pretende exprimir não se completa com o término do verso, a qual só pode ser feita pela imaginação do leitor. Senão vejamos:

 

Nascimento – p. 15.

 

quem sabe um dia retornaremos à vida embrionária

:pulsante, caótica e organizadora de tudo.

quem sabe um dia retornaremos ao útero da terra

:repleto de contrações e expansões onde os espasmos moldam a

experiência.

quem sabe um dia aprenderemos com a nossa mais remota vivência

:respiração primeva onde a lancinante dor de receber o ar não nos

impediu de sentir o seu frescor.

quem sabe um dia retornaremos à transparência do líquido e à

opacidade placentária

:aquele lugar onde nada se exclui, porque tudo é parte integrante da

jornada.

quem sabe um dia deixaremos de ser tão miseráveis

:apego ignóbil.

um dia, teceremos com cordões de barro nossas próprias asas e

contemplaremos os voos alheios com a alegria de quem conhece a

liberdade de ser pássaro

...

...

errante.

 

O amor não aceita desaforo – p. 34.

 

a esposa queria muito ficar famosa. ou, ao menos, conhecida. estava

cansada de viver à sombra do marido

.

o marido queria mais e mais dinheiro. e, claro, topou na hora ajudar a

esposa a ficar famosa

.

o amante da mulher, de repente, se viu de escanteio. aquele amor,

antes tão caloroso, não encontrou mais lugar frente a tantos devaneios

.

a amante do marido, se sentindo extremamente só, abandonou aquele

homem que, durante anos, lhe provocou incêndios

.

- o amor não aceita desaforo

 

pacto social – p.44.

 

deve haver algum pacto em curso

de todos aceitarmos a morte em vida

mutilação de sonhos

de emoções

a vida transborda

borbulha

faz barulho e incomoda

a morte não

a morte é quieta

temos tanto medo de morrer, sem saber que a morte há tempos nos

invade...

e ronda nossas faces covardes.

 

A simbiose entre prosa e poesia nessa autora, assume a ótica subjetiva para emoldurar o conteúdo objetivo (ou imaginário) ao seu gosto e sentido. À sua maneira, atualiza o desafio de urdir uma escrita voltada para reproduzir os movimentos líricos da alma, seus sobressaltos de consciência e questionamentos, neste nosso mundo conturbadíssimo. Vale salientar, todavia, que a quantidade diminuta de textos reunidos na obra, causam no leitor aquela sensação de “quero mais”, pelo que torcemos para que a autora nos brinde em breve, com novas produções.


Livro: “Bordados” – Poesia de Roberta Gasparotto 1ª edição- 2021 - Camino Editorial  – Viamão – RS -  53 p.  

ISBN:  978-65-00-15429-0



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

AUTORA DA VEZ: “ETERNIDADE X FINITUDE”, DE MÁRCIA MACHADO - POR HYDELVÍDIA CAVALCANTE


AUTORA DA VEZ/02

“ETERNIDADE X FINITUDE”, de Márcia Machado


Por Hydelvídia Cavalcante


Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

Será?

Sou estranha por não me apoquentar com isso?

A exemplo de Drummond,

“O presente é a minha matéria...”

Se a espiritualidade

simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

isso me incomoda.

Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...”

Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

boa, má?

Certa, errada,

ora sim, ora não

antíteses me (in)definem...

Antes de iniciar nossa apreciação, precisamos observar que, como linguista, faz anos que não nos dedicamos à análise de obras literárias. Assim sendo, pedimos desculpas por não enveredarmos pelas trilhas do saber literário que ora não temos condições de apresentar. 

O título do poema de Márcia Elizabeth Machado nos chamou atenção, logo que iniciamos a leitura. Eternidade x finitude são palavras que denotam, para nós, situações opostas, pois o que é eterno não tem fim. A eternidade se aliaria, portanto a uma situação de infinitude. Percebemos, de antemão, mesmo antes da leitura do texto, que o poema se envolveria com os aspectos dualísticos que induzem a uma análise da vida.

Duas características expressam, sobremaneira, os diferentes sentidos do poema Eternidade x finitude: a intertextualidade e as marcas literárias da Escola Barroca. A intertextualidade se faz presente não apenas quando menciona o discurso já dito de alguns escritores brasileiros, mas também quando a autora expressa o seu próprio sentimento a respeito do tema. Quanto às marcas literárias da Escola Barroca, são facilmente percebidasas características de dualidade, contraste, inquietação, sentimento de inferioridade, pessimismo, ênfase na dualidade matéria e espírito, dúvidas, questionamentos, religiosidade, dubiedade de sentidos e as figuras de linguagem como metáforas, antíteses, paradoxos, hipérboles e interrogações. Duas características que marcaram a poesia barroca também se fazem presente no poema em análise: o cultismo ou gongorismo que se evidencia em um jogo de palavras, criação literária do poeta espanhol Luiz de Gôngora; e o conceptismo ou quevedismo que ressalta o jogo de ideias, uma criação do poeta espanhol Francisco Quevedo.

Para melhor explicitar as afirmações mencionadas, vamos à análise considerando os versos que compõem o poema:

1) Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

    Será?

São versos que denotam dúvida, inquietação. Há uma certeza de que o corpo, por ser matéria, um dia acaba, deixa de existir, transforma-se em pó.  Essa certeza se manifesta ao lado de uma dúvida, de uma inquietação, o que denota uma contradição, um contraste. Inquietação e contraste são marcas literárias do Barroco.  A inquietação se mostra trazendo nas entrelinhas a dúvida: acredito ou não acredito na reencarnação? A autora em um único verso e com apenas uma palavra interrogativa, será?, demonstra a dúvida com relação ao seu próprio questionamento: o espírito retorna em outro corpo físico? O fato de a interrogação se encontrar sozinha, isolada, em um único verso, também denota uma aflição, um questionamento, uma inquietação de cunho pessoal. No entanto, sabemos que essa inquietação toma conta da mente de muitas pessoas: acreditar ou não acreditar no processo de reencarnação, aceitar que existe vida após a morte ou acreditar que o espírito só anima apenas uma vez um corpo físico. Os questionamentos, as interrogações fizeram parte das inquietações de escritores do Barroco, como Gregório de Matos Guerra cujas poesias se caracterizam pelos contrastes e pelas contradições.

2) Sou estranha por não me apoquentar com isso? 

Este verso nos diz o seguinte: posso até acreditar, mas prefiro não refletir a respeito. Também expressa uma contradição: não querer se apoquentar já admite existir um questionamento, uma inquietação a respeito do assunto. A expressão “sou estranha ”traz a voz de quem sabe haver outras pessoas que se importam em querer saber sobre a vida do espírito, após a morte do corpo. Mas, por que eu também preciso me preocupar com isso? Essa interrogação presume que há uma preocupação com o que outras pessoas acham em relação a essa atitude de não querer se apoquentar com isso. Na vida, este comportamento é um fato real. Sofremos muito, pensando no que os outros vão achar de nossas opiniões, ideologias e de nossos valores. Por incrível que pareça é o que pensamos que os outros pensam de nós mesmos que nos deixam apoquentados. Bakhtin (2006 [1979], p. 342) nos diz que “eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim”.O ser humano não consegue viver sem esse outro que lhe apoquenta a vida. 

Há também um jogo de ideias entre o verso “prefiro não me apoquentar com isso” e os versos anteriores: “alma revive em outros corpos... Será?”. Esse jogo de ideias refleta um refinado confronto intelectual, com raciocínios duvidosos, o que remete ou lembra o conceptismo que tem origem com o escritor espanhol Francisco Quevedo.

2) A exemplo de Drummond,

   “O presente é a minha matéria...”

A autora traz a citação de Carlos Drummond para amparar um sentimento que acha ser também próprio de seu viver neste plano: sua preocupação com o corpo físico no tempo presente, em tempo real. O que lhe importa é o corpo material, o corpo físico, sem nenhuma consideração com o espírito, com a energia inteligente que lhe dá vida. Há uma inquietação à mostra, remetendo à dualidade matéria x espírito, também uma característica da Escola Literária Barroca. O verso traz em si um fingimento, lembrando Fernando Pessoa, quando diz que o poeta é um fingidor. A autora tenta se enganar, tenta fingir que não se importa em saber se há ou não animação de outro corpo físico por um mesmo espírito. Se o espírito que dá vida inteligente ao seu corpo presente já lhe animou a vida em outro corpo em uma vida pretérita. Embora a autora cite Carlos Drummond, o fato de privilegiar o tempo presente lembra uma das características de Gregório de Matos Guerra, que também privilegiava o momento, o tempo presente, o carpe diem. Citar Carlos Drummond, nesse contexto poético, também se justifica, uma vez que, por ser este renomado escritor brasileiro o poeta da escavação do real, trouxe em seus poemas uma de suas mais reveladas preocupações: o impasse entre o homem e o mundo, a realidade interior e exterior, o mundo objetivo e o subjetivo, o sonho e a realidade.

4) Se a espiritualidade

     simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância.

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

Isso me incomoda.

 

Analisando os versos citados, encontramos: 

a)    Figura de contraste antítese: céu/inferno, anjos e demônios.

b)    Expressão de dualidade: céu e inferno, anjos e demônios.

c) Cultismo ou gongorismo: se a espiritualidade simbolizada em céu/inferno, anjos/demônios.

d) Feísmo. Sentimento de inferioridade. Não se sentir elevada, digna da espiritualidade: sou reles.

e)    Morbidez em relação aos aspectos elevados da espiritualidade: fome

f)  Manifestação de indignidade perante o comportamento dos que se dizem defensores da espiritualidade: injustiças, ganância.

g)  Contradição perante a fome e a injustiça, ostentação de muitos que usam a espiritualidade para enriquecimento e galgar a fama de líder: ganância.

h) Figura de linguagem hipérbole, uma afirmação exagerada para acentuar o sentimento de incômodo que a inquietação causa: sim, mil vezes sim.  Isso me incomoda.

i)     Expressão de perplexidade diante da vida e do mundo: Ostentação. Sim, mil vezes sim. Isso me incomoda. 

j)      Contrastante jogo de ideias, caracterizando o conceptismo ou quevedismo: Se a espiritualidade/ simbolizada em céu/inferno/ anjos e demônios/ é algo elevado/ sou reles/ fome, injustiças, ganância/ Ostentação.../ Sim, mil vezes sim/ Isso me incomoda. 

4) Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Estes versos apresentam o segundo exemplo de um discurso já dito. A autora menciona Murilo Mendes e, embora não cite trechos do poema Solidariedade, a ele faz referência na tentativa da possibilidade de ser ela também, como o poeta expressa em seus versos, solidária com pessoas e fatos que se caracterizam por apresentarem naturezas díspares. A contradição e a dualidade se encontram presentes na obra de Murilo Mendes, que procurou conciliar de tal maneira o sagrado e o profano, a ponto de se tornar conhecido como o poeta místico e cósmico. Esse viés literário também o fez criar um conceito particular de religiosidade, para que pudesse mostrar um processo de dilaceração do seu próprio Eu em conflito.

A autora gostaria de ter escrito Solidariedade, nos termos em que Murilo Mendes escreveu, para que pudesse expressar o sentimento de alteridade, mostrando o quanto seria capaz de ser solidária às pessoas com quem presume também se contrapor, seja por razões sociais, culturais ou morais. E assim, o ser humano conduz a vida, espelhando-se no outro, com vontade de ter as atitudes do outro. Acontece que, ao manifestar o desejo de realizar o que o outro já efetivou, ele declara sua própria leitura de vida em relação ao evento já efetivado pelo outro. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2006 [1979], p. 383, grifo do autor) afirma que “O eu se esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-se do fardo do eu único (eu-para-si) no mundo”. O outro é e será sempre um amparo ou, podemos mesmo dizer, um espelho, para ver o nosso próprio eu.

5) Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Estes versos apresentam uma dualidade com versos já mencionados. A autora, no início do poema, demonstra claramente não querer se preocupar com assuntos que se relacionam com a dualidade matéria x espírito. No entanto, mostra, nestes versos, que está predisposta a se conectar com espíritos sofredores, ainda que não os veja. Quando menciona “seres invisíveis, nossos semelhantes”, a autora deixa nas entrelinhas acreditar na existência do espírito que dá vida ao corpo humano, aceitando e acreditando que, após o desencarne, muitos desses espíritos ficam vagando, sofrendo as punições que lhes são cabíveis. Mais uma vez, encontramos nestes versos, a característica inerente à natureza humana de se apoiar no comportamento do outro para manifestar seus próprios desejos, seus idênticos propósitos. 

6) Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...” 

Mais uma vez a intertextualidade se faz presente no texto de Márcia Machado que traz a voz de Guimarães Rosa para manifestar a dor que pode sentir em relação à dor do outro. Há uma atitude responsiva em relação à dor alheia, uma atitude que carreia em si mesma o desgosto pelo acontecido e o desengano causado pelo desencanto que o turbilhão de sofrimento causa nas pessoas.

O simples fato de que eu, a partir do meu lugar único no existir, veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o fato de que também para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo o existir, em um dado momento, posso fazer por ele: um ato do vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente profícuo e novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade (BAKHTIN, 2010a [1920], p. 98).

Esse sentimento pode ser uma demonstração do impulso de alteridade que nos faz ver o outro, sentir o que se passa com o outro, até mesmo nos colocar no lugar do outro, mesmo sabendo que trazemos a marca da nossa unicidade e que o lugar que ocupamos na existência é único.

7) Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

Estes versos se iniciam com um alerta: não vale fingir que não nos apercebemos do sofrimento alheio. Não apenas isto. Não vale fechar os olhos para encobrir o que não admitimos como certo, coerente e preciso para validar os princípios que regem a conduta correta e pertinente de uma vida saudável e salutar. O jogo de palavras “para quê olhos se vê e não repara” denota a contradição, a antítese que, muitas das vezes, limita o comportamento humano para uma aceitação, uma acomodação. Encontramos nestes versos mais uma característica das poesias barrocas: o cultismo ou gongorismo. Ao mesmo tempo, o joga de ideias denota o conceptismo. 

8) A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

Estes versos enfatizam que, embora se confirme a unicidade do ser, ninguém consegue viver as experiências da vida, sozinho, considerando tão somente seus próprios defeitos, suas próprias qualidades. “Não encarar o mito de Narciso” significa não ficar apaixonado por sua própria beleza, pelo seu próprio eu físico. Narciso, personagem da mitologia grega, filho deus de Cefiso e da ninfa Liríope, por ser apaixonado por sua própria beleza física, tornou-se o símbolo da vaidade, o que no mundo de hoje, tem induzido a sociedade ao culto da beleza, levando muitas pessoas a um transtorno obsessivo pela própria imagem corporal. Quanto ao verso “vivendo em torno do meu próprio umbigo”, ainda que não aceitemos, no mundo da vida, a nossa unicidade se faz presente em nossos atos, o que é confirmado por Bakhtin (2010 a [1920], p.43), quando observa que o “ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas”. A nossa própria unicidade nos remete às dualidades, às contradições.

9) boa, má?

certa, errada,

ora sim, ora não . 

“Boa, má; certa, errada; ora sim, ora não” são versos que refletem justamente o que é o espírito não totalmente evoluído, mesmo quando não se encontra no plano da erraticidade. Somos bons ou maus, dependendo do contexto, da situação e das pessoas com quem convivemos. Para alguns, muitas das nossas ações são tidas como boas; para outros, podem ser a causa de uma ferida que deixou marcas. Temos atitudes certas e outras também erradas, em determinados momentos de nossa vida. Como somos seres inconclusos, a nossa inconclusibilidade nos pode remeter, dependendo do nosso nível de discernimento, para o acerto ou para o erro. Ora acertamos, ora erramos e essa avaliação se constata com as possíveis interações que realizamos com o outro em nossas experiências de vida.   A nossa preocupação em saber como os outros nos definem é que nos fazem, na maioria das situações, saber quem somos nós, como nós estamos e como nos vemos. Com base nessa concepção, Bakhtin (2006 [1979], p. 341) observa que “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro”. Sem o outro, sem a interação o outro para mim e eu para o outro, se torna mais difícil termos um nível de consciência do nosso próprio eu.

9) antíteses me (in)definem...  

Somos seres dualísticos? Nossa persona, o retângulo ou o quadrado de nossa máscara se deixa ilustrar por antíteses?  Essa resposta é facilmente encontrada, quando estamos em um grupo de amigos e perguntamos sobre como consideram ou veem a personalidade de uma pessoa. As respostas são as mais divergentes possíveis. Neste verso, a autora, após mostrar vários aspectos que se contrastam, se coloca como uma antítese, uma pessoa que se revela por meio de contradições e que, ao mesmo tempo, permanece como uma incógnita, porque nem mesmo as antíteses conseguem defini-la completamente. Somos assim: seres incompletos, seres inconclusos. E essa nossa incompletude faz com que nossas ações nem sempre permaneçam com as mesmas intenções, com os mesmos propósitos.

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.Trad. do russo por Paulo Bezerra.5ª.ed.São Paulo:Martins Fontes, 2006 [1979].

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Alberto Faraco. São Carlos: São Paulo: Pedro & João Editores, 2010a [1920].


 




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