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quinta-feira, 12 de junho de 2025

TORNAR-SE ESCRITORA, POR MYRIAM SCOTTI

AVE, CRÔNICA|07

T O R N A R - S E   E S C R I T O R A

Por Myriam Scotti

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Vez em quando, perguntam como me tornei escritora. Na verdade, penso que desde a infância, quando escrevia poeminhas e diários para dissipar minhas angústias, apenas demorei a me sentir pronta. No livro “Só garotos”, a artista Patti Smith escreve sobre quando ainda era apenas uma menina: “lembro que me senti confinada diante da ideia de que nascemos em um mundo onde tudo já foi mapeado pelos outros antes.” Assim como ela, eu mesma costumava questionar as razões de certos comportamentos serem os únicos aceitáveis, se quisesse, no futuro, ser uma mulher bem-sucedida-respeitada. Feito produto em série, os objetivos: estudar, casar, ter filhos e envelhecer, representava a curva da vida ideal, como se todas as mulheres desejassem as mesmas coisas para si.

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Os primeiros anos de casada e a gravidez do primeiro filho me arremessaram para a realidade crua de ser mulher, de ser a responsável pela casa, por gerar a vida, de ser quem renuncia a si mesma em prol do pequeno ser desconhecido, de ser quem ama o marido que se faz sempre ausente, como escreveu Roland Barthes em seus fragmentos, exatamente o que de mim restou depois de me tornar mãe e experimentar cores intensas, que até então nunca desconfiara existir. A solidão-companhia, a inveja de assistir ao parceiro seguir em frente, sem que tivesse sido afetado pela chegada do filho, o descompromisso, o individualismo, ele próprio: a reprodução de tudo o que prometera não ser. “Volto já” era a frase mais escutada, enquanto eu tentava me recompor.


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Então, a redescoberta da literatura, aconteceu por causa do vazio, bem como a escrita da prosa e da poesia. Por não encontrar à minha volta algo ou alguém para me identificar, para me compreender, busquei nos livros as respostas para todas as questões que me rondavam, as quais não permitiam que eu seguisse em frente. As histórias soavam mais verdadeiras que a realidade à minha volta, onde as mulheres pareciam estar felizes-conformadas com suas escolhas. Mas elas não me representavam nem me acolhiam. Não à toa, as queixas das personagens se confundiam com as minhas e, assim, entreguei-me completamente à literatura, hoje o meu farol e filosofia de vida. 


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Arquivo da Autora
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"PÉROLAS DO MEU SILÊNCIO": NOVO LIVRO DE RILNETE MELO

 LETRAS ICAMIABAS|04 

"PÉROLAS DO MEU SILÊNCIO": NOVO LIVRO DE RILNETE MELO


Capa do livro
Textos são sempre convites de quem escreve para quem lê.

Em Pérolas do meu silêncio, a escritora Rilnete Melo nos convida ao mergulho; nos propõe o desafio de, após a contemplação da superfície, nos lançarmos ao fundo, em busca das pérolas submersas.

Para compor as cento e cinquenta pequenas narrativas que nos oferece nesta obra, a autora selecionou cada uma de suas palavras — poucas, portanto valiosas — com precisão, cautela e sagacidade.

No equilíbrio entre o dito e o não-dito, o que flutua e o que se deixa submergir, a autora aborda o universo feminino em temas como luto, dor, abusos, abandonos, mas também abre espaço para aqueles que evidenciam o amor, a graça, a delicadeza.

Convite feito, cabe ao leitor apanhar o que vai na superfície, depois mergulhar, deixar-se alagar e voltar à tona com uma reflexão, uma inquietação, um sorriso; com uma única pérola certeira ou com as mãos cheias.

Fernanda Caleffi Barbetta, jornalista e escritora


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Contracapa do livro
Pérolas do Meu Silêncio, é um livro de micro contos onde a autora mergulha profundamente em questões femininas e sociais, revelando narrativas curtas com uma boa dose de criatividade e humor, incitando o leitor a interpretações. Cada micro conto é uma pérola de reflexão, um convite à empatia e à desejos de mudanças. Da luta pela igualdade de gênero à celebração da sororidade, este livro é um tesouro extraído do silêncio de uma voz feminina que ecoa através de curiosas e velozes palavras.

"entre noites silenciosas

e conchinhas, encontrei

as micropérolas para

me livrar do

ostracismo."

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O livro está à venda em Amazon (clique AQUI). Lançado pela Editora Clube de Autores (1 janeiro 2024), de capa comum, 55 páginas, ISBN-10: 6526629652; ISBN-13: 978-6526629659, cujas dimensões 0.44 x 14.8 x 21 cm. Além de Pérolas do meu silêncio, você encontrará outros títulos da autora, como: O máximo de mim e outros mínimos poemas, Estro poético, Construindo versos, entre outros.

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Arquivo da autora
Rilnete Melo é maranhense, poeta, escritora, cronista e cordelista, membro das academias de letras ACILBRAS e ABMLP, colunista no blog Feminário Conexões e colaborada da Revista internacional The Bard, coautora de várias antologias nacionais e internacionais, vencedora de seis concursos literários, autora dos livros Construindo Versos, O máximo de mim e outros mínimos poemas, Pérolas do meu silêncio, zine Dezcontos micros e autora de cinco cordéis.


segunda-feira, 14 de abril de 2025

EU, MULHER NEGRA, POR MARIA DO CARMO SILVA

VIVÊNCIAS POÉTICAS|05

 EU, MULHER NEGRA

Por Maria do Carmo Silva


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Nas minhas memórias, desde a infância até a fase adulta, há um acervo de fatos que  remetem a prática do preconceito racial, resultante de uma história imposta pelo colonialismo que nos  colocou sempre em situação de subalternidade, invisibilidade, desumanização, exclusão humana e social.

O longo processo de escravização no Brasil deixou mazelas que perpassaram gerações, gerando uma herança maligna para nós negros em todos os aspectos, fomentando o racismo e o preconceito racial.

Mesmo sem compreender o porquê, observava que éramos sempre colocados à margem da sociedade. Cresci observando no cenário da vida real e na ficção estas marcas de subalternidade e de marginalização, resquícios do colonialismo: a mulher negra sempre serviçal do povo branco, exercendo as funções de cozinheira, faxineira, babá, lavadeira. É claro que não desmerecendo a dignidade de nenhuma destas profissões, mas refletindo sempre sobre a desigualdade social aliada a estas profissões que não oportunizavam a ascenção  destas mulheres para outras atividades, histórica e socialmente priorizadas para mulheres não negras e de condição financeira privilegiada.

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Na escola, observava e internamente me questionava sobre a falta de oportunidades dada às crianças negras na participação de eventos inter e extra-classe, onde prioritariamente eram escolhidas crianças não negras. As expressões (frases e palavras) que incitavam o menosprezo por parte dos coleguinhas repetidos cotidianamente, me deixava aperreada: “cabelo de bombril, fio de nego é urubu, nego do (suvaco) fedorento”.

Cresci cercada por este invólucro preconceituoso. A época, observava também na TV que os papéis exercidos pelos negros nas telenovelas, filmes e programas humorísticos, sempre remetiam à escravização, ao racismo, à inferioridade, à subalternidade.

Com o passar dos anos, adentrando em diferentes espaços socioculturais, percebi um esforço contínuo pessoal e coletivo da população negra e afrodescendente  em prol da libertação do nosso povo,  historicamente e brutalmente violentado pelas marcas do racismo, do preconceito, da discriminação, do silenciamento, da invisibilidade, da intolerância, da desumanização.

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E nesta trajetória, decádas depois, na condição de cidadã, professora, poeta e escritora, uso a poesia como um clamor de justiça e de liberdade, onde a voz do meu povo negro outrora silenciada, ecoa e brada repudiando todas as formas de preconceito, de discriminação e de violência que ainda nos vitimiza na contemporaneidade.

Vejo com grande contentamento o “meu povo negro” ocupando espaços nas diversas esferas sociais, mostrando sua potência, sua voz, seu talento, NOSSA COR e IDENTIDADE sem receios, adentrando as universidades, se capacitando em diferentes profissões, demonstrando seus talentos artísticos, mostrando para a sociedade que “somos humanos, cidadãos e protagonistas de uma nova história” na qual o preconceito racial seja extinto e a cor da pele não continue promovendo exclusão e discriminação.

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Concluo esta reflexão com este fragmento de um texto poético autoral intitulado EU, MULHER NEGRA, que integra o recém-lançado livro COLHEITAS  ANCESTRAIS & PRIMAVERAS:

(...) “Sobrevivi as torturas e a desumanização.

Para a minha descendência, deixo esta lição:

SOU MULHER NEGRA, humana, cidadã.

Protagonista da história do ontem, de hoje e do amanhã.


Libertei-me da senzala.

Uma nova história construir.

Resistência e liberdade,

Marcarão a minha posteridade.

SOU MULHER NEGRA, humana, cidadã.

Sempre reconstruindo a minha história,

com determinação, resiliência e dignidade!"


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Arquivo pessoal da autora


Maria do Carmo Silva -  Natural de Mutuípe-BA; Professora, poeta e escritora. Licenciada em Geografia, graduada em História; Especialista em Gestão e Educação Ambiental, Estudos linguísticos e literários e Comunicação, Cultura Organizacional e Tecnologia. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências", "Recomendações Poéticas", "Leituras e Releituras", "Colheitas Ancestrais & Primaveras." Tem participação em diversas Antologias Poéticas nacionais e internacionais. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo e colaboradora do blog Feminário Conexões. Integrante dos Coletivos Mulherio das Letras e Enluaradas.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A DROGA DA VIOLÊNCIA E O MACHISMO

 A DROGA DA VIOLÊNCIA E O MACHISMO

Por Margarida Montejano

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Quando eu e minha irmã éramos crianças, morávamos com nossos pais numa casa humilde. Ao lado, separado por um muro, havia um bar.  Eu tinha doze anos, e minha irmã dez.  Era comum, às noites, os “homens de família”, inclusive meu pai, se reunirem no bar vizinho para relaxar, trocar ideias, rir e beber, enquanto suas mulheres cuidavam da janta, das crianças e dos afazeres domésticos. Assim eram nossos finais de tarde e, quando a gente já se preparava para dormir, era também comum, depois das risadas altas e dos falatórios que transpunham o muro e as paredes do quarto, ouvirmos o som de garrafas quebradas, cadeiras e mesas atiradas nas paredes e gritos permeados de palavrões. Nossa mãe, naqueles momentos, dizia: Essa droga da violência de novo! Por isso é que eu digo pra vocês! Falta educação! Ela começava a cantar a fim de que dormíssemos e aumentava o volume de seu canto para que não escutássemos a tal violência que nos fazia arregalar os olhos tentando identificar o som da voz de nosso pai que, para relaxar, trocar ideias, rir e beber estava no bar. Ela, com paciência, nos acalmava e nos colocava na cama, pois sabia que seria melhor que já estivéssemos dormindo quando ele chegasse.

Minha irmã eu não sei, mas eu fingia dormir, ficava atenta e, muitas vezes, ouvi minha mãe soluçando e rezando sozinha, enquanto aguardava o marido que com certeza chegaria alterado em casa. Por fim, eu acabava dormindo tropeçando nas ave-marias que tentava rezar, no intuito de enfrentar meus medos. No dia seguinte, vendo meu pai irritado pela ressaca e minha mãe com olhos vermelhos de tanto chorar, tomei coragem e perguntei: - Mãe, o que a senhora tem?... é a droga da violência?

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E ela, parecendo entender a razão de minha pergunta, abaixou-se à altura de meus olhos e me disse, quase que cochichando, para que meu pai não ouvisse:

— Filha, a droga da violência é tudo o que sobra quando falta o conhecimento. Ela se instala gratuitamente e vai se fortalecendo aos poucos, cegando, ensurdecendo, enfurecendo e, por fim, destrói o sujeito, que rejeita o diálogo e se abastece de rótulos, de mensagens instantâneas. Confia no que vê e no que ouve...

— Não entendi, mãe! e ela, com paciência tentou outra vez me explicar:

— Presta atenção, meu amor... a droga da violência é a ignorância que, quando se junta à droga do vício e da mentira, fica mais forte, se potencializa e se transforma em estupidez. E, quem sofre com isso, são as mulheres e as crianças. Homens violentos maltratam e matam sem dó e sem se sentirem culpados...  E o pior, minha filha, é que eles acreditam que o que estão fazendo é correto!

— Mãe! a professora falou na escola sobre isso. É por isso que os homens matam as mulheres?   perguntei. 

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Minha mãe, com o dorso da mão secou as lágrimas que corriam no rosto e parecendo refletir sobre minha pergunta, fitou-me nos olhos dizendo: 

— Querida, outro dia vi na televisão um indígena falando uma coisa muito interessante. – E o que ele disse, mãe? – Falou que para a pessoa ignorante, existe a escola, e para aquele que é estúpido, resta a cadeia[*].

E então, parecendo entender o que dizia  levantou-se, pegou minha mão e a mão de minha irmã, sua bolsa e saímos batendo a porta de casa rumo à Delegacia da Mulher!

Naquele dia eu entendi que meu pai era um estúpido.

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[*] Daniel Munduruku

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Arquivo pessoal da autora
Margarida Montejano, mora em Paulínia/SP. É Escritora, Poeta, Contista; Func. Pública na Secretaria Municipal de Educação de Campinas. Defensora ativa dos direitos da Mulher, sendo membra do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Campinas; Coordenadora do Projeto Bem-Me-Quero: Empoderamento Feminino e Igualdade de Gênero e, Produtora do Canal Literário – N’outras Palavras –  histórias que inspiram, no Youtube. Autora dos livros "Fio de Prata" - Ed. Siano (2022); "Chão Ancestral", TAUP Editora (2023) e dos livros infanto juvenis "A Poeta e a Flor" e "A Poeta e a Sabiá", pela Editora Siano. (2024). @margaridamontejano.escritora


sexta-feira, 28 de março de 2025

HISTÓRIA COLETIVA. / DE MULHERES. / DE MENINAS.

HISTÓRIA COLETIVA. / DE MULHERES. / DE MENINAS.[1]

Por Marta Cortezão 


“Mulheres não são pessoas no capitalismo, apenas corpos.”

(Silvia Federici, Folha de S. Paulo-Uol, novembro,2023)


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Todos os dias, nos noticiários, nas mídias, nas manchetes aterradoras, a morte nos lembra como o machismo mata e aterroriza mulheres e meninas em uma violência crescente e assustadora. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo[2]. E, com infâmia, inscreve, na perversa história desses brutais crimes, as marcas de um profundo ódio a esses corpos femininos, devorados pelo utilitarismo e pela ganância de um mundo que vive o capitalismo em seu extremo. Um mundo que consome a hipersexualização e a objetificação de corpos femininos; um mundo que apavora pelo sexismo estrutural, reforçando a discriminação baseada no sexo e/ou gênero e violando direitos humanos, impedindo mulheres e meninas de desfrutarem de suas liberdades fundamentais. Quando nossos corpos serão, de fato, nossos?

A garota voltava da escola, falou com um desconhecido e desapareceu. Mais uma vida ceifada. Foi encontrada em um terreno baldio, pedaços de seu corpo noticiados em imagens desfocadas no jornal do meio-dia. A mesa estava posta, quase nem houve tempo de assimilar tantas notícias...

Homem segue mulher na parada do ônibus. Ela retornava, à noite, do emprego de funcionária do lar. Era o suposto ex-marido. Consta que ela o havia denunciado por ameaças de morte. Morreu desacreditada e sem apoio do Estado. Vítima da violência das mãos do feminicida, deixou duas crianças que agora são órfãs de seu cuidado maternal. Os restos mortais da vítima, de 36 anos, foram encontrados calcinados em um lixão da cidade.

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Adolescente é assediada no ônibus, a caminho da escola. Transporte lotado. Ela deu alarme, mas não obteve apoio. O assediador era um senhor bem-vestido, de terno e gravata, que se agarrou no discurso de homem respeitável e pai de família abnegado. A menina desceu chorando seu desespero na primeira parada que pôde. Alguém gravou a cena enquanto a adolescente expressava sua angústia e a publicou nas redes sociais...

Senhora de 65 anos vai a óbito ao cair do quinto andar. Suspeitas de um relacionamento tóxico e suas consequências depressivas. Ela envolveu-se com um rapaz pelas redes sociais. Ele foi ganhando sua confiança, também o acesso à sua conta bancária, à sua casa, à sua vida. Enfim, um caso a ser investigado, diz a polícia, meio desacreditada de encontrar uma prova cabal. Mas há fortes indícios de suicídio...

Mulheres e crianças são as maiores vítimas da guerra. Deu também nos noticiários, mas “deu”/bateu mais forte em minhas carnes. O que faço com esta impotência em meu corpo? Com essa dor, faca afiada e fria da morte, prestes a atravessar a jugular? Agora mesmo não tenho nem forças nem disposição racional para continuar falando sobre este tema, mas o feminicídio grita em todos os lados. Está escancarado nas janelas do mundo. É preciso sair da apatia social que aliena mentes, é preciso enxergar, do contrário, nos tornamos cúmplices e culpadas, porque nossa passividade tem implicações morais[3].  

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Um corpo frio sobre a pedra do necrotério. Um corpo não identificado. Uma notícia tão corriqueira que quase ninguém se sensibiliza. Há muita pressa, há coisas mais importantes para se ocupar. Por quê? Onde? Quando perdemos a nossa empatia? Nossa capacidade de comoção? De nos importarmos com a vida de nossas iguais?

Um corpo que é coletivo, mas que não nos pertence. A essas mulheres, a essas meninas que vivem na mira da misoginia de uma sociedade patriarcal que objetifica nossos corpos em prol do lucro e do capital. Em uma sociedade onde não somos pessoas, apenas corpos. Apenas números na crescente lista da vergonha que, a cada fração de segundo, pode ganhar mais uma vítima fatal. A escritora Rosangela Marquezi, de Pato Branco, no poema Coletivo Corpo, de seu livro (In)certas Escreveduras (Editora Medusa, 2023), faz uma abordagem direta sobre este tema. Escancara nossas dores e agruras ao descrever o poema:

Coletivo Corpo

 

O corpo estava ali.

Nunca fora seu, era coletivo.

 

O pai mandara se cobrir.

O marido mandara se abrir.

 

E a ela ninguém ouviu.

E a ela ninguém sequer viu.

 

História coletiva.

De mulheres. De meninas.

 

Correntes que não se quebram.

Sinas que não se desfazem.

 

Seu corpo estava ali.

Nunca fora seu, nem agora.

 

Na mesa fria da necropsia.

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O corpo de uma mulher jaz inerte “na mesa fria da necropsia”. Em vida, já havia sido despojado das vontades, da dignidade, de tudo – inclusive de sua autonomia. Um corpo que alcança o extremo da objetificação na análise póstuma. Um corpo feminino submetido às expectativas e imposições sociais. Um corpo frio “que estava ali”, mas “nunca fora seu, era coletivo”. Um corpo que compartilha a infeliz ventura da história triste de tantas mulheres, vítimas da violência machista, engrossando a lista de mortes de inúmeros corpos de mulheres e meninas subjugados pela sociedade.

O pai, figura que representa a moral e os bons costumes, ordena que a filha se resguarde, que se cobra, que se comporte como uma mulher deve se comportar em uma sociedade patriarcal. O marido, proprietário e beneficiário desse corpo, ordena que ela se abra, que sirva a seus instintos, a seus desejos irrefreáveis. Tanto o pai quanto o marido – figuras de ordem – representam a imposição das normas masculinas sobre este corpo individual feminino. A ela, o corpo anônimo e invisibilizado, que jaz frio em uma mesa de necropsia, resta a negação de seus desejos e sonhos pela sociedade patriarcal falocêntrica. Resta-lhe a história da negligência de mulheres e meninas abandonadas à ausência da própria voz, da própria existência.

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A noção de “História coletiva. / De mulheres. / De meninas” revela os fatos que se repetem, mudando apenas as vítimas das inúmeras tragédias das narrativas cruéis do cotidiano. São histórias que se entrelaçam nas “Correntes que não se quebram. / Sinas que não se desfazem”. É uma história viciosa que fortalece as relações de poder historicamente patriarcais destacando a universalidade dessas experiências e lutas e sugerindo a persistência de padrões restritivos ao longo do tempo. O poema alcança seu ápice no verso “Na mesa fria da necropsia”, encerrando uma reflexão contundente sobre a opressão sistêmica enfrentada pelas mulheres. Melhor não poderia dizer eu! Digo apenas que sempre é tempo de construir algo novo!

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Silvia Federici afirmou, em uma entrevista que assisti recentemente, que quando perdemos a ilusão, sentimos a necessidade de fazer algo novo. E é colocando a esperança nos coletivos que a luta se fortalece. A luta de mulheres sempre esteve nesse ponto zero: ponto onde se perde a ilusão. Mas que este ponto seja não apenas de resistência, mas também de luta e de transformação social. Não queremos morrer todos os dias. Queremos seguir vivas!



[1] Revista Voo Livre. São Paulo. nº 46, pp. 48-53. Disponível em: https://revistavoolivre.com.br/2024/06/07/revista-voo-livre-vol-1-no-46-junho-de-2024/ . Acesso em: 28/03/2025.

[2] CUNHA, Carolina. Feminicídio – Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no mundo. Uol, 2025. Disponível em: Feminicídio: Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo - UOL Educação . Acesso em: 28/03/2025.

[3] TOKARCZUR, Olga. Escrever é muito perigoso – Ensaios e conferências. Gabriel Borowski (trad.). [livro digitalizado]. São Paulo: Editora Todavia, 2023, p. 57.

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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski)
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita a literatura tem o poder de modificar vidas... Nas poucas horas vagas escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR, onde também é Professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

sábado, 8 de março de 2025

TOPOGRAFIA DO MEDO

AVE, CRÔNICA|07

POR MARTA CORTEZÃO

Fonte: Pinterest
Alguns passos deixam marcas que a cidade não ignora. Uma mulher caminha pela cidade. Um homem caminha pela cidade. Dois fatos comuns, no entanto, totalmente distintos do ponto de vista da essência semântica e espacial do corpo que caminha. E não me refiro simplesmente à ação de caminhar, mas ao que não cabe nos fatos em si, o que transborda deles e escorre pelos interstícios do passado e do presente, que pulsam no organismo vivo da cidade. Há uma pragmática quase invisível entre o corpo caminhante e o corpo vivo da cidade, porém essas relações não se apresentam de forma neutra a todos os corpos. Sua topografia, construída por edifícios fálicos e belicosos, se impõe como o cenário dos acontecimentos cotidianos.  

Fonte: Pinterest
A cidade é um ser que respira, reage, amanhece e anoitece a cada passo. Aos passos do homem que caminha, ela abre os pulmões receptiva, e inspira o ar fresco matinal. A brisa favorável dos bons tempos percorre suas artérias, porque a cidade está feita à sua medida. Ela exibe sua fortaleza em suas largas avenidas desobstruídas, que fluem sorridentes, sem impedimentos, em todas as direções, num fluxo contínuo. Já a mulher trânsfuga, ao caminhar, pisa com seus medos no corpo urbano, vivo, mas limitado. A cidade exala, por entre postes e vielas, um ar pesado e sepulcral, como se, a cada passo, fosse revelar o inesperado, ao mesmo tempo previsto e temido, o susto iminente prestes a saltar de alguma esquina. Seus labirintos estreitos suspiram pesado e sussurram segredos medonhos por entre os dentes: fogueiras, massacres, violações, silenciamentos... As veias urbanas pulsam obstruídas no fluxo das incertezas, sem volta, sem refluxo, dificultando o próximo passo, facilitando o tropeço, o coágulo.

Fonte: Pinterest
A cidade, suas sombras e seus olhos de Argos se dissolvem. Invisíveis, espalham-se pelas paredes, pelas janelas, pelas construções, pelas frestas, pelo trânsito afoito dos automóveis, entre buzinas e piscadas de faróis. Um homem caminha pela cidade sem notar o tumulto, sem notar as sombras e os olhos, porque a cidade é neutra ao seu corpo. Ele atravessa sem sentir o bulício, mas seus olhos cravam-se na mulher que caminha em sua direção. Ela, atormentada pelo ruído da cidade, se assusta, sente o olhar do caminhante arder em seu corpo nu e desvia sinuosamente o percurso. A cidade cede palco aos olhos que não piscam – apenas os faróis atentos dos carros, que piscam em cumplicidade à buzina estridente da insinuação incômoda, na hora cansada da cidade. A mulher apressa os passos largos. Pelas frestas dos vidros dos carros, a cidade se assenhora do espaço que o corpo da mulher pisa. As sombras assobiam palavras obscenas que a atravessam, queimando a caminhante assustada como mãos de fogo que não tocam, mas ardem e marcam para sempre.

Fonte: Pinterest
A cidade, insaciável não dorme. Ela é um animal de humor instável, de garras afiadas, pronto para assaltar sua presa com seu baile de máscaras medieval. Com seu ar selvagem e fingido comportamento manso, de aparente desinteresse, prepara-se para dar o bote. Permite a passagem da mulher que caminha, para logo apresentar um risco calculado na próxima esquina. A cidade tem patas silenciosas e olhos de fera noturna. Durante o dia, deixa-se domesticar: ruas iluminadas, passos firmes. À noite, arqueia o lombo, mostra os dentes, e toda mulher aprende a andar como quem não quer acordá-la, pois há os corpos e as cicatrizes que a cidade devora. Até quando uma mulher que caminha pela cidade será apenas mais uma sombra em meio à cegueira extrema do espaço urbano? 


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domingo, 21 de julho de 2024

ANIMAIS, CONTO DE SANDRA GODINHO

 

A N I M A I S

POR SANDRA GODINHO 

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As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo a necessidade que, naquela casa, eram muitas. Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio das mãos, não abriam nem fechavam. Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo. Por acaso não sabiam que, para cada função, havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha do buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos.

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Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles. As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas[1] de açaí, para ser comercializado em todo canto. Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas para produzir a farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres. Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio em época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra.

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É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro. A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões. Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejava na família e naquele mundo de compadrio. As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família colocou as palavras em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçarem, a terra ressecar, os rios murcharem. Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força de florescer. Os rios e igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

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Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir entre eles. Os animais, como homens, se defendiam da fome, procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos. Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem se conciliar ao sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa. No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.



[1] Cestos tecidos com fibras naturais

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

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