CAVAR A ALMA E TECER PRIMAVERA: UMA LEITURA SIMBÓLICA DO POEMA ROSÁRIO MARIA, DE ELIZABETE NASCIMENTO
POR JOCINEIDE CATARINA MACIEL DE SOUZA
![]() |
Imagem Pinterest |
O poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento,
inscreve-se numa linhagem poética que combina linguagem, gênero e território.
Ao mobilizar o nome “Maria” como signo coletivo e ancestral, o texto articula o
íntimo e o político, o místico e o cotidiano. Trata-se de uma poética da
escavação: da alma, da terra e da história.
A repetição de “Cava, cava, cava bem fundo n’alma,
Maria” é um mantra que impõe ritmo e urgência à leitura. Como sugere Gaston
Bachelard (1993), a imagem da escavação remete ao inconsciente profundo, às “cavernas
da alma” onde habita a memória arquetípica. Neste caso, o gesto de cavar é
também um gesto de resistência, de retorno ao próprio corpo como território de
força.
![]() |
Imagem Pinterest |
A passagem de “Maria” para “Marias” marca uma
virada importante. O eu lírico singular se dissolve no plural coletivo, numa
construção identitária que ecoa o conceito de “escrevivência”, cunhado por
Conceição Evaristo (2005): a escrita que emerge da vida, das vivências
encarnadas de mulheres silenciadas. Maria é toda mulher que cava, fia, lavra e
canta.
As Marias de Elizabete “tecem outras rotas”, “acordam”, “desfiam os rosários”, num movimento de agenciamento coletivo. Aqui, o rosário não é símbolo de submissão religiosa, mas de insurgência simbólica. Desfiar os rosários é desfazer as tramas da resignação.
![]() |
Imagem Pinterest |
ROSÁRIO MARIA
Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.
Deixa que escorra na pele o magma, Maria!
Labuta rainha, debulha o rosário, Maria!
Suba a ladeira, acenda a lareira, saia da fileira, Maria!
Desagua a mar, Maria.
Lava-se no lar, Maria.
Senta-se no bar, Maria.
Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.
Há magma em sua terra, Maria.
Incendeia o mundo, Maria!
Saia da fila, Maria!
Balança a saia, Maria!
Lavra a terra com os fios da vida, Maria.
Espalha sementes, Maria.
Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.
Tu és uma Maria.
Nós, somos muitas, Marias!
Vençam as crostas da pele, Marias!
Teçam outras rotas, Marias!
Acorda! Chegou a hora de desfiar os rosários, Marias.
Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Marias.
A conta está paga, Marias.
Unam-se! Há fios prateados na madrugada, Marias.
Teçam atônitas as teias da vida, Marias.
Com pérolas que adornam a garganta, Marias!
Com fé e esperança que ilustram a vida, Marias!
Corações alados espalham amor, Marias!
Vai! Deixa que as palavras abram
sua boca de túmulo,
a primavera precisa chegar.
Referências
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa e outros ensaios feministas.
Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
EVARISTO, Conceição. "Escrevivências: a escrita de
nós-mulheres". Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, 2005.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas:
Editora da Unicamp, 1997.
☆_____________________☆_____________________☆
![]() |
Arquivo da autora |
Jocineide Catarina Maciel de Souza - Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/Unemat) (2021). Mestra em Estudos Literários também pela Unemat (2014). Graduada em Letras (2009). Quilombola do complexo territorial de Pita Canudo em Cáceres/MT. Produziu o documentário: “Quintais Quilombolas: Memória e identidade Cultural do Quilombo Pita Canudos Cáceres/MT”, com o apoio da Secel, por meio da Lei Aldir Blanc, em 2020. É, também, produtora cultural e diretora da Escola Estadual Demétrio Pereira, em Reserva do Cabaçal/MT-BRASIL.
![]() |
Arquivo da autora |