terça-feira, 18 de outubro de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A CASA DA JOAQUIM NABUCO, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|05

POR RITA ALENCAR CLARK

A CASA DA JOAQUIM NABUCO


                                                                               [Para Alencar e Silva]


        Quando penso naquela casa, a casa de meus pais, vou embrenhando em histórias que se confundem com a própria história da cidade. Nos dias tumultuados da minha juventude, vividos na casa da Joaquim Nabuco, em Manaus no começo dos anos oitenta. A época “pré-direta já” explodia em manifestações artísticas, movimentos literários e pensamentos vanguardistas, revolucionários. Para muitos resistência, para outros necessidade de expressão, para todos o desejo de retomar nas mãos a liberdade de um país sequestrado pela ditadura. Ali, no porão da casa, a Democracia já se instalara. Esse era o propósito da casa.


        Às 11 horas da manhã de sábado, invariavelmente, começavam aparecer os primeiros convidados, aqueles que de fato tinham recebido o convite de meus pais para o almoço, precedido de aperitivos no “Porão do Poeta”. Mas isso não impedia que outros, não convidados formalmente, de passagem adentrassem atraídos pela alegria, pela música e pela poesia ou para se deliciar com as iguarias que saiam da cozinha de minha mãe. Entre amigos e parentes havia vários grupos interagindo, os poetas, os artistas em geral, primos que já eram de casa, mas tinham os primos e amigos que estavam de passagem pela cidade, vinham do Rio, de São Paulo, Fortaleza, Recife… a família parecia não ter fim.


        Nesses encontros, a casa era plena, na parte de cima ficavam os quartos, as salas e a biblioteca. Pé direito de seis metros, as portas eram altíssimas, com uma espécie de claraboia vazada  por cima para o ar circular e formar uma corrente de vento, bem ao estilo Português do começo do séc. 20. Era desconfortável e mal dividida, meu pai a reformou e mandou construir mais um banheiro na parte de cima. Imagina, uma casa de 300 metros quadrados com apenas um banheiro… no entanto, lá no porão havia mais dois banheiros geminados. Fiquei sabendo tempos depois que, antigamente, o costume era apenas as mulheres usarem o banheiro de cima, os homens usavam os outros, que, pasmem, não eram cobertos  totalmente e ficavam em área aberta no quintal. Nos dias de sarau eram disputadíssimos!


        Num desses dias, um sábado de manhã, chega Luiz Bacellar, poeta amigo de longa data, tocou três vezes a campainha, batendo palmas e já impacientando-se com a demora. Meu pai gostava de atender, mas até ele escutar… usava aparelho para surdez e, poeta, nem sempre estava sintonizado com o mundo aqui fora. Tínhamos que avisá-lo. As risadas já começavam a se insurgir no portão. Vai ter festa na casa da Joaquim Nabuco. Depois, quem quisesse ficar era bem-vindo, quem não queria, estava livre desde que arrumasse a casa e deixasse as camas feitas. Regras da casa, afinal eram cinco filhos. Eu ficava quase sempre. Nesse dia teria um passeio de barco com amigos. Bacellar era muito curioso e sem rodeios perguntava, enquanto eu  fazia retoques na maquiagem, “Vais para onde?” Preciso fazer uma pausa aqui para explicar, na sala de jantar ficava um móvel, uma cristaleira imensa que teria sido da mãe de meu pai, devia estar na família havia uns 30 anos, calculo, era ótima para se maquiar, tinha uma parte central, que imagino ter sido criada para ser um bar, todo espelhado por dentro com pequenas lâmpadas. Um camarim perfeito no lugar errado. Que seja. Continuando a conversa com o poeta “Estou indo passear de barco”. Ele fazia cara de quem iria embora e voltava “ Com quem vais?” “Com meu namorado” Ai… me arrependia sempre, agora viria a inquisição. "A que família pertence esse namorado?” “Ele não é daqui, é de São Paulo.” “Huuum sei…forasteiro!” Ríamos juntos e ele saía em busca dos tira-gostos na cozinha. Bacellar era uma figura!


        Começava o sarau, quando eu ficava em casa, tinha que trabalhar, era copo e prato para recolher o tempo todo. Nessa época tínhamos sempre pessoas para nos ajudar, gente que vinha do interior, da terra de minha mãe, meninas e meninos que estavam vindo para estudar com vislumbres de uma vida melhor. Minha mãe, assistente social, não negava acolhimento em nossa casa. Arranjava um colégio, um internato, ajudava nos livros, roupas, aconselhamentos…até seguirem seus rumos. Havia um menino, que foi destacado para a função de "babá" do irmão temporão; o Joaquim. O único que aguentava o pique do irmãozinho, o único que tinha pernas e malandragem pra correr atrás do lourinho fujão pelas calçadas da Joaquim Nabuco, quando algum descuidado esquecia o portão aberto. Joaquim, “o babá”, fazia resgates memoráveis! “Pega o lourinho…”


        Agora a gente ri, mas na época nós surtávamos! Lá pelas tantas, depois de muita cerveja e bolinho de pirarucu com molho de tucupi, vinham as bandas de tambaqui e a caldeirada salvadora.


        Minha mãe tinha esperanças que após tanta comilança, partiriam felizes para suas casas. Só que não. Uns remanescentes ficavam e se alongavam como se nunca mais fossem se ver…era  a poesia brotando em carne viva naquele espaço de tempo, agora eu sei, era a própria história da nossa literatura se tornando eterna naquelas tardes; versos de Tufic, com seus aromas do Líbano, Elson Farias e seus cantos lendários, Luiz Bacellar com sua "Frauta de Barro", Antísthenes Pinto, já meio alterado, explodindo em versos e  meu pai já em êxtase galopando os versos de seu “O cavalo de Brahma”. Porão do Poeta efervescia! ah… e tinham os músicos, dedilhando canções inéditas entre pérolas da nossa música genuinamente Brasileira, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Cartola e tantos outros. A forma que dona Nair tinha de “expulsar” os retardatários, uma delicadeza inventada por ela, era servir um pudim de leite ou doce de cupuaçu entre copos de guaraná ou, pior, de coca-cola.  Dizia ela: “ para repor a glicose e conseguirem chegar em casa”... muxoxos de descontentamento se ouvia em uníssono! Mas, quem iria ousar desfazer dos doces da dona Nair?


        Hoje a casa está fechada, muitos anos se passaram, como dizia Fernando Pessoa no poema "Aniversário",  foram-se criando “grelado nas paredes”, aquela vegetação improvável e indiferente às condições climáticas, que brotam entre rachaduras causadas pelo tempo no muro das casas, pondo abaixo o telhado, as escadas, as tábuas pretas e amarelas do assoalho, as portas seculares da casa que um dia foi viva.


      "O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

       O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

       Pondo grelado nas paredes...

       O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)..." 


        Passo por lá de vez em quando e o coração aperta vendo sua decrepitude e impotência diante aos descasos imobiliários. Casa está à venda há pelo menos cinco anos e nenhuma proposta de compra e venda se concretizou. Dizem que a área não favorece, o lugar  está perigoso e tal… Então, a casa da Joaquim Nabuco, fincada no centro histórico de Manaus, junto a outras no mesmo estilo Belle Époque do quarteirão, está obsoleta e destinada ao esquecimento, ao apagamento, como os versos dos “poetas mortos” que um dia a frequentaram? Penso. Mas, ainda assim, ela resiste, alquebrada e imponente, resiste como pode. Há quem diga ouvir barulhos de vozes, risadas, bater de copos e panelas, quando de passagem pela frente, em noites  de lua cheia…devem ser as paredes exalando alegria, cantando a poesia esquecida em sonetos, versos livres e notas de jasmim. Mas, aí já é lenda! 





☆_____________________☆_____________________☆


Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

16 comentários:

  1. Que belo texto recheado de reminiscências!! A gente viaja , se delicia e vive um misto de sentimentos nas suas palavras. Parabéns pela poética e criatividade. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  2. "O desejo de retomar nas mãos a liberdade de um país sequestrado pela ditadura" é legítimo e pulsa forte em nosso peito! Parabéns pelo belo texto e por tudo que ele suscita nesses tempos sombrios. Gostei muito, Rita Alencar Clark!

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  3. Grata pela leitura sensível, Heliene Rosa...parece um flash back perverso o que estamos vivendo. Mas seremos resistência, sempre! Bj!

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  4. Grata pela leitura sensível, Heliene Rosa...parece um flash back perverso o que estamos vivendo. Mas seremos resistência, sempre! Bj!

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  5. Um passeio pela história, pelo poder da palavra; pela defesa da democracia, do amor, da poesia; pela saudade que temos prazer em senti-la, pela vida que pulsa e resiste e insiste... mas também pela sua escrita que denuncia o descaso do poder público com a o patrimônio histórico de Manaus... por tanto, obrigada.

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  6. Marta querida, obrigada, você traduz com delicadeza o meu texto...a casa está pedindo socorro! É o que devo fazer, denunciar, revelar , socorrer. Beijos minha flor!!

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  7. Rita, quanto sentimento nas entrelinhas de seu texto! Vale uma vida, uma vivência repleta de recordações que expressam a memória afetiva de sua alma saudosa. No decorrer da leitura, as imagens se mostram e conferem o sentimento que você procura passar. Toca o coração e permeia etapas de uma existência imortal. Admirável! Hydelvídia Cavalcante

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  8. Cara professora Hydelvidia, você sabe da minha admiração e carinho que lhe tenho, desde as tardes no ICHL da UFAM. Suas aulas contribuiram, fundamentalmente, na minha formação e afirmação como escritora. Hoje somos confreiras em duas Academias e sinto muito orgulho disso! Grata, minha mestra querida!

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  9. Querida prima o teu texto maravilhosamente escrito, me trouxe à mente e ao coração a lembrança querida e amada dos teus saudosos pais, que eu tive a alegria e felicidade de manter agradável convivência, não em Manaus pois saí da terrinha garoto, mas no Rio tanto em festejos em minha casa, como no apartamento dos saudosos primos.
    O.nosso poeta Alencar e Silvs, na intimidade familiar chamado de Neto e a querida Nair, que primava pela excelente hospitalidade, bondade e insuperável solidariedade marcaram minha vida.

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    1. Querido primo Rogério Jansen, obrigada por sua leitura generosa, de certo que meus pais sempre o tiveram em alta estima também ! Um grande abraço, primo.

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  10. Que crônica magnífica, vivenciei um pouco de tudo isso, só que não no porão, na sala e na biblioteca. Os poetas transitando pela sala, declamando, rindo.
    Lembro- me do móvel, na sala perto da escada, lembranças maravilhosas da casa, da família, de tudo. Tempos que vão e não voltam mais, lembranças que me fazem chorar, não de tristeza, mais de saudade.
    Obrigada Rita Alencar Clark.
    Enayram Sevlaçnog

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  11. Parabéns, isso está na memória da Cidade, todos conhecidos da Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, no início dos anos 80.

    Também lembro junto, com seu irmão e suas irmãs, antes de ir ao Carnaval fazíamos nossas brincadeiras na sala.

    Falo seu irmão, pq nessa época o nosso amigo Saulo, era pequeno.

    Ulisses Abinader

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