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terça-feira, 25 de outubro de 2022

LIVROS & ENCANTAMENTOS: TRAVESSIA, DE ANA LIA ALMEIDA, POR CRIS LIRA

 



LIVROS & ENCANTAMENTOS/08

 'TRAVESSIA', DE ANA LIA ALMEIDA


POR CRIS LIRA


Hoje é dia de falar do Volume III da Coleção III do Mulherio das Letras, a novela Travessia, da autora Ana Lia Almeida. Começo dizendo que este livro me fez rir muitas vezes, também me fez chorar, e eu o li devagar, apesar de ser um livro de bolsa, porque cada um dos textos que juntos contam essa viagem, para pensar na ideia primeira do termo travessia, pressionou meus botõezinhos – para não confessar que estou pensando em inglês – em diferentes lugares.

[foto arquivo pessoal Cris Lira]

Desde menina, diante de uma certa profecia, eu decidi que não seria mãe. Há alguns meses, quando um pai de santo me disse, na Bahia, que minha orixá era Yemanjá, a primeira coisa que saiu da minha boca foi “mas eu nem sou mãe”. Ao que ele respondeu, “há muitas formas de se maternar”. Eu simpatizo com essa fala dele, mas, sei, também, que a travessia tão astutamente contada por Ana Lia Almeida é uma que eu nunca fiz e nunca farei, portanto, como eu a agradeço por ter me dado a mão, por meio do seu texto, para que eu me aproximasse um pouco do segredo.  

Dividido em três partes Quedas, Tropeços e Passagem, o livro nos atravessa, como o próprio trem de ferro, mencionado por Adélia Prado, que aparece como a epígrafe motriz do livro. Nos primeiros textos vamos acompanhando os acontecimentos à medida que a própria personagem vai vivenciando as experiências ao mesmo tempo que temos acesso à mente ansiosa, os cenários díspares que vão se formando, cada um mais caótico, tosco ou engraçado, e isso traz uma leveza ao texto ao mesmo tempo que não deixa de emprestar um pouco de ironia. Num deles, a personagem cai e pensa logo nas pessoas que podem vê-la ali, “toda suja nessa beira de calçada” (21). Dentre tantas, a maior ansiedade é que seja a sua médica, “[p]ois a médica mãe de dois filhos vai parar o carro bem aqui ao meu lado e vai me ordenar: “Levante já daí! Todas nós ficamos grávidas, não tem nada de mais” (21). Eu ri. A protagonista queria que eu risse. O jeito como conta me leva a pensar isso. Mas as perguntas que se seguem, o medo de não encontrar “o meio do caminho entre a mãe total e a desnaturada” (23) vão me chamando a escuta. Há uma mãe em construção aqui. Há um serzinho se formando e com ele há mil dúvidas e medos. Há também uma pessoa que se sente perdida de si, desencontrando-se de si mesma, “seria possível terminar o mestrado?” e que vai encontrando nos outros – especialmente nas outras mulheres – apoio e também julgamento. Apoiada neste livro, eu poderia falar muito sobre socialização feminina (a vizinha, a amiga Isadora, a mãe), o mito da beleza, solidão materna, entre outros tópicos. Nada do que eu pudesse fazer, porém, chegaria perto do trabalho feito por Ana Lia Almeida ao nos entregar essa sua travessia, ao criar as pontes para nos aproximarmos um pouco dessa experiência que, de certa forma, une as mães e, ao mesmo tempo, é sempre única e, tantas vezes, pouco revelada.

[foto arquivo pessoal Ana Lia Almeida]

Como diz uma amiga que estou sempre a citar pelas leituras que faço quando me deparo com sua voz a partir do que me traz os livros, a vida é uma contradição. Não há situações ideais, tudo está sempre em constante mudança. Permanecer enquanto se faz a travessia desses espaços turbulentos e contraditórios é o que tonaliza a vida. Por isso, deixo com vocês uma das partes do livro de que gostei mais:

Leite

“Meu peito esquerdo estava quase sangrando quando resolvi dar uma mamadeira de leite em pó a Nina. Não bastasse eu me sentir uma fracassada por isso, ainda tive de lidar com o julgamento dos outros. Minha mãe, quando descobriu, só faltou me xingar. Isadora (*amiga – grifo meu) também não gostou. A pediatra, muito menos. Por ironia do destino, só quem me apoiou naquele momento foi D. Edna (* a vizinha).

(...)

Enquanto D. Edna preparava o crime na cozinha, eu sofria por ser tão horrível a ponto de dar leite em pó para a minha filha. Estava certa de jamais me perdoar por aquilo. Que tipo de mãe eu era, com aqueles peitos sangrando, cheios um leite que minha filha não conseguia mamar?

(...)

Tive de aguentar o julgamento da minha mãe, de Isadora e da pediatra, o que me fez voltar atrás e insistir novamente na luta de amamentar.

(...)
Quanto mais Nina mamava, mais eu doava leite.

(...)

Quanto mais se dá, mais se tem: amor, vida, leite. Uma lição a cada mamada. Toda vez que me sentia alegre, meu peito começava a vazar. O amor jorrando em líquido, uma explosão de vida no meu corpo” (63-66)

Aprendamos a escutar as mães. Uma escuta verdadeiramente empática e tranquila, sem julgamentos. Deixo aqui o convite para que conheçam essa mãe se construindo na e pela palavra de Ana Lia Almeida. Espero que riam junto comigo.

Até o próximo volume!

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Ana Lia Almeida é natural de Recife/PE e mora em João Pessoa/PB, onde leciona para o curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Ainda nas primeiras incursões pelo mundo literário, é autora de “Curtinhas da Quarentena”, livro de mini-crônicas publicado também pela Ed. Venas Abiertas, e da série de contos “Rita na Luta”, publicada quinzenalmente em seu blog Salto de Palavras. analiavalmeida@gmail.com @ana.lia.almeida



Cris Lira é paulista e escreve desde que se entende por gente. Com a Editora Venas Abiertas, participou das Coleções I, II e III do Mulherio das Letras. Seu mais recente livro, Fragmentos do Interior, foi lançado em 2021. Atualmente, é professora e supervisora do Programa de Português da Universidade da Geórgia, em Athens, nos Estados Unidos. Redes Sociais: Instagram: @lircris Facebook: facebook.com/cris.lirica Youtube: Vamos ouvir o Mulherio

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