quarta-feira, 2 de novembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: O DIA DE CÃO, POR SANDRA SANTOS

 

MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|02 

O   D I A   D E   C Ã O

POR SANDRA A. SANTOS

As viagens no metrô paulistano geralmente são longas e cansativas, principalmente para quem mora na periferia. Um período de tempo em que passamos às voltas com nossos pensamentos, dando espaço às reflexões que surgem de forma intrusa, e por vezes deslocadas. Gente demais, com espaço de menos, e cada um isolado no seu mundo.

O silêncio, a alma do trem, instala-se como uma trilha sonora invisível a inundar um cenário, onde pessoas estranhas se encontram, amontoam-se, e são forçadas a um desconfortável grau de proximidade.

Quando o vagão lota completamente, desequilibrar-se é impossível para quem segue viagem em pé, pois mesmo sem segurar o corrimão, basta apoiar-se na parede hermética de carne e ossos que involuntariamente balança na mesma onda.

Fiz essa viagem por muitos anos e tinha dificuldades com um certo tipo de passageiro: aquele que, estranhamente, presume que o outro queira prosear durante o trajeto, e qualquer um serve, desde que tenha ouvidos. Concluo que talvez a solidão incentive esse tipo de comportamento, e mesmo sem nenhum empenho de minha parte, muitas pessoas dividiram suas vidas comigo, querendo eu ou não. Por mim, viajaria calada na companhia dos meus pensamentos nada silenciosos, e mesmo à contragosto, nunca neguei atenção a quem me puxasse conversa.

Antes da febre dos smartfones, as viagens eram mais interessantes e mesmo que praticamente ninguém se olhasse nos olhos, as pessoas ainda estavam lá. Com o passar do tempo e com o avanço da tecnologia celular, elas migraram para um universo paralelo onde os olhos ficam na tela, e alma sai do corpo. Entretanto, há quem resista a essa escravidão virtual e abra um livro; eu me identifico quando encontro outro herói da resistência.

Em São Paulo as distâncias são imensas, e o trajeto de casa para o trabalho e do trabalho para casa, de forma cruel nos rouba a individualidade. Mesmo assim, insisto em amar essa cidade engolidora de gente, emprestando-lhe uma aura de poesia que só os loucos e os poetas conseguem ver.

O dia começara como outro qualquer, e estando eu entregue voluntariamente aos labirintos da minha mente, fui puxada para a realidade pela figura de um homem que, apesar de extraordinariamente comum, despertara minha atenção, fazendo com que um arrepio gélido percorresse todo o meu corpo. Havia nele algo que estava além de seu rosto magro e do seu aspecto sofrido: um sorriso cruel, os olhos frios e desprovidos de brilho. Ao invés de sentar-se, parou de frente para a porta com as pernas abertas e os braços cruzados, fitando-a como se pudesse movê-la com a força de seu pensamento.

Passei a observá-lo de forma mais atenta, e pressenti que viria confusão, pois ele parecia pronto para enfrentar a turba ensandecida que entraria na estação seguinte. Aquilo não daria certo, e ouso dizer que nada me preparou para o que aconteceu quando a porta 28-A se abriu.

Com um enorme salto e de braços abertos, o homem lançou-se para frente com uma fúria terrível. Seus olhos estavam em brasa, e ele latia, rosnava e babava-se como um cão raivoso.  Eu, que nunca vira alguém imitar um cachorro com tamanha precisão, duvidei que fosse apenas uma simulação, pois parecia que ele havia se transformado em um animal. Para mim, aquele homem acreditava ser um cachorro.

A porta se fechou e ninguém entrou. Afinal, quem se atreveria a ser atacado por um monstro feroz? Foi tudo muito rápido, surreal. A movimentação automática na plataforma havia sido quebrada com louvor, e de forma inusitada, qualquer protocolo de convivência social comum aos transportes coletivos, diluíra-se ao som de latidos.

Um silêncio mortal circulou pelo vagão, e as pessoas se entreolhavam contorcendo-se nos acentos, e creio, que como eu, os outros passageiros foram tomados pela surpresa e pelo medo. Olhares confusos buscavam algum tipo razoável de explicação para o que acabávamos de testemunhar. Antecipei seus movimentos tentando traçar uma rota de fuga, afinal talvez fosse necessário. Mantive os olhos nele até que o infeliz me fitou diretamente, e eu por instinto, baixei rapidamente a cabeça considerando que não se olha um predador nos olhos, a menos que se queira enfrentá-lo.

Ele então, calmamente descruzou os braços e passou a nos analisar, observando-nos de forma acintosa, saboreando orgulhoso o impacto que causara. Divertindo-se às nossas custas ele sabia que tinha o controle da situação.

- Ceis gostaram do Toinho? - Indagou certificando-se que era ouvido.

- Esse cão “dos inferno” é meu companheiro, e é só nele que eu confio. Não confio em ninguém nessa cidade de loucos. Cidade de loucos sim. Eu odeio essa cidade. – Frisou aos berros tentando ofender-nos.

- Já passei muita fome, e até hoje não sei o que tô fazendo aqui..., nessa cidade de merda! Cidade fedida. Eu vim pra melhorar de vida e não consegui nada. – Sua expressão ensandecida, paulatinamente, assumia os ares de um solene discurso.

- Cheguei novo e cheio de esperança. A cabeça cheia de sonho. Cheio de vontade de trabalhar... E o que eu ganhei? O que eu ganhei? – Seu olhar nos atravessava e eu imaginei que talvez fosse melhor se o ignorássemos, mas olhar para ele era irresistível, e acho mesmo que, àquela altura, queríamos e merecíamos saber o motivo daquilo tudo.

Quando a voz robótica anunciou a chegada da próxima estação, o homem-cão posicionou-se novamente em frente à porta, pronto para o momento do bote.

- Vem Toinho, a porta vai abrir..., pega tsss tss Pega! Au uau au auuuuuuuu. – Ele berrava, e o Toinho latia como um cão obediente, pronto a proteger seu tutor. Dessa vez foi mais feroz e as pessoas na plataforma recuaram estonteadas. Ninguém se arriscou a entrar, nem na porta onde ele estava, nem nas outras mais distantes.

Impotentes, assistimos o trem ganhar novamente os trilhos enquanto ele continuava sua história. Sua expressão, paulatinamente se modificava, e eu notei que o ódio dava lugar a algo mais leve que eu ainda não conseguia identificar.

- Ceis gostam do Toinho né que eu sei? Eu também... só tenho ele! Ô cachorro danado. Esse é fiel. Au! Auau! Cala a boca Toinho, fica quieto e me deixa falar cachorro danado. - Ralhou com Toinho até conseguir seu silêncio canino.

- Não vi pai nem mãe e se meus irmãos são vivos, só Deus é quem sabe. Aqui carreguei muita areia e cimento no lombo. Nunca estudei, mas arranjei “uns rabo de saia” e trepei e trepei gostoso... Até que sosseguei e casei. Casei não..., caguei. Tive “uns menino” que nunca consegui sustentar direito. Nunca roubei, nunca matei e..., o que eu ganhei? – Suas perguntas só receberam nosso profundo, e agora, consternado silêncio.

- O que eu ganhei? Fala caralho..., eu tô perguntando... – Silêncio mais profundo.

 - Tô sem emprego, tomei uns “belo par de chifre” e agora tô aqui com meu amigo Toinho. Agora só eu e ele... “Ceis” tão com medo dele ou de mim? Fala com eles Toinho! – Fala pra eles que hoje a gente saiu com vontade de morrer ou de matar... Fala pra eles que nóis num tá brincando... Au au auauau – Lembro-me de sentir um certo alivio ao observar que ele não parecia estar armado.

De estação em estação, o desconhecido desabafou, o cachorro latiu e o trem seguiu vazio.

Aquele homem, em seu dia de fúria compartilhou sua triste história, deixando que do ódio explodisse o choro, em um lamento doído e barulhento. Pouco a pouco, o medo deu lugar a solidariedade e o homem-cão agora, era apenas um homem simples pedindo socorro.

Uma espécie de conversa de boteco mesclada a uma sessão de terapia de grupo se instalou aos poucos, e não faltaram os mais variados conselhos para que ele seguisse sua vida: um partilhou sua história de chifre garantindo que com o tempo, a dor passaria; outro pregou um discurso religioso; alguém, da outra ponta do vagão, ensinou uma simpatia para tirar o encosto; a senhorinha sentada ao meu lado, ensinou um chá milagroso para acalmar a alma. Houve até quem brincasse com o cachorro..., se o Toinho fosse de verdade, provavelmente ganharia um cafuné.

Fato é que em um certo momento, alguém do outro lado do vagão gritou:

- Eita que a porta vai abrir e o vagão vai encher! Pelo amor de Deus homem, solta o Toinho!

Todos riram, e arrisco a dizer que o cachorro Toinho, agora abanava a cauda alegremente.

FIM.

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Sandra A. Santos 
é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.

44 comentários:

  1. Que conto lindo e envolvente!

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  2. Texto excelente, prende a atenção, muito obrigado por nos brindar com suas letras.
    Parabéns 👏👏👏

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    1. Agradeço a leitura e o comentário. Gratidão

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    2. Muuuito legal Sandra, crônica e retrato do nosso momento e ainda com direito a um brasileiríssimo final feliz. Obrigado por essa

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    3. Meu amigo querido, que bom que gostou! Fico muito feliz com o carinho da leitura e por suas palavras.

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  3. Muito bom o conto, prende a atenção, com o suspense muito bem construído!!

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  4. Que conto maravilhoso!!! Adorei!

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  5. Obrigada Sara, pelo carinho da leitura e comentário!

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  6. Conto envolvente, comecei a ler e quis ler até ofinal para saber como acabaria esta história. Linguagem direta, simples e sentimos a emoção percorrer por todo o corpo.

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    1. Muito feliz que a história tenha te tocado. Obrigada pela leitura e comentário.

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  7. Sensacional!! Adoro tudo o que você escreve! 👏🏻👏🏻👏🏻 Aguardando o proximo já!

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  8. Me prendeu do início ao fim, muito bem escrito e que mente criativa!

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  9. Muito bom!Uma narrativa aterrorizante com um desfecho tranquilizador ... Você consegue prender o leitor até o fim . E haja criatividade ! Parabéns 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  10. Conto sensacional. Começa com a descrição de um dia no transporte público, como tantos dias com os que estamos acostumados, e de repente vem a surpresa na atitude do personagem. O final é inspirador e otimista. Me fez sorrir. Parabéns, Sandra Santos!

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado! Obrigada pelo carinho da leitura!

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  11. Adorei sua crônica! Ela me captou do começo ao fim e conseguiu ser divertidamente dramática e muito real. Parabéns Sandra!!!

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    1. Obrigada Flávia, pelo carinho da leitura e comentário. Fico feliz que tenha gostado.

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  12. Muito, muito, muito bom. Parabéns, Sandra!!!!! No aguardo de novas histórias sejam advindas da fluência sacolejante de rodas sobre trilhos ou da fluência de rios de águas límpidas. :)

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    1. Obrigada! Sim, a vida inspira a arte e vice-versa. Fico muito feliz que tenha gostado, obrigada pelo carinho da leitura e comentário.

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  13. Sandra querida, o conto é MA-RA-VI-LHO-SO! Envolvente e fiquei curiosa tentando imaginar o fim. Divertido, criativo e estou à espera de que muitos outros venham!

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  14. Obrigada Tana, fico feliz que tenha gostado. Obrigada pelo carinho da leitura e comentário.

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  15. Parabéns querida Sandra ... Seu Conto desperta ao leitor a tão almejada vontade de saber ... quê situação é essa ... ? O que vai acontecer ? Que coisas inusitadas podem nos acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar ... Como eu acho interessante a gente observar o que se passa ao redor e poder extrair de uma "viagem de metrô" ... uma história completa ... ou parte de uma história ... no caso a do Toinho ... Toinho é o nome que ele deu para esse tipo alter ego ... um interessante 2 em 1 ... entrava em ação como um cão ... e depois quis se justificar aos companheiros de viagem no mesmo vagão ... interessante também que parece que ele conquistou alguma compreensão de alguns dos participantes na mesma viagem ... e recebeu alguns retornos para seus questionamentos jogados ao léu ... Olha ... Sinceramente fiquei curiosa com esse personagem inusitado que surgiu nesse seu dia de viagem de metrô ... 😉 ... E o desfecho dado deixou uma porta aberta para outras histórias de um dia que poderia ser comum ... mas foi incomum ... Sucesso sempre amiga ... ❤️

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  16. Obrigada querida Miriam, feliz que o Toinho tenha despertado em você a vontade de olhar mais profundamente à sua volta. Obrigada pela leitura e palavras carinhosas.

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  17. Nossa! Conto maravilhoso, nos faz refletir do quanto a solidão em meio a um mar de gente estranha pode destruir a mente e o espírito de alguém. Lindo e terrível ao mesmo tempo.

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado. Obrigada pelo carinho das palavras.

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  18. Uma história que nos agarra, do início ao fim. Gostei muito. Parabéns 👏🏻👏🏻👏🏻

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado! Obrigada pelo carinho da leitura.

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  19. San, como sempre sensacional! Texto instigante, que nos leva a acompanhar e ver cada parte da cena e com um final surpreendente! Parabéns!!

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  20. Obrigada pelo carinho! Fico muito feliz que tenha curtido a leitura.

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  21. O texto é envolvente, realista e engraçado. Me vi na realidade retratada de usuária de trasporte público. Parabéns 👏

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  22. Amei a história e a escrita da história :) !! Parabéns!!

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