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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

ELES LEEM ELAS: RASGA OSSOS, POR MARCELO FROTA


Rasga Ossos, de Sabrina Dalbelo/05

 

Por Marcelo Frota

 

Rasga Ossos é um livro de reflexões, de questionamentos. É uma obra de imagens, uma sucessão de estranhamentos. É soco no estômago, um desalento. É palavra/evolução, uma montanha-russa, um espaçamento.

Eis o novo livro da autora gaúcha Sabrina Dalbelo, (Penalux, 2020), que adentra no universo literário em um ano em que nada foi lugar-comum, em um tempo em que a arte se entrega a seu papel máximo, ou seja, retratar o tempo presente. Rasga Ossos é tempo presente. Também passado, também futuro.

 

A poesia presente na obra, segundo a própria autora, é um resultado de encontros e desencontros. Entre conhecidos e estranhos. É, aos meus olhos, um reflexo de experiências e vivencias. Um algo familiar entre os estranhamentos dos caminhos da vida. É como um filme de Ingmar Bergman, uma jornada entre a leveza e o lado mais sombrio de uma jornada que nem sempre tem um começo definido, ou um fim estabelecido, mas que em seu meio, se faz matéria de reflexão e silêncio.

 

No poema Cicatriz é artéria pulsante, Sabrina faz uma reflexão divertida e profunda sobre os caminhos da tristeza. A autora constrói por meio de frase envoltas em simplicidade um lamento que nos remete a encontros com presente/passado. “A tristeza é uma amiga. É ferida que deve ser sentida, vivida. Tristeza é para ser abraçada, doída”.

 

Sim, a tristeza é amiga, é companheira, é constante. A tristeza é o intervalo da felicidade. Aquela visita indesejada, que sempre aparece, e, muitas vezes, fica além da hora. Mas que quando vai embora, alivia o clima da casa, tira o peso do corpo. É como cantavam Tom & Vinicius: “Tristeza não tem fim, felicidade sim”. Tristeza tem intervalos, às vezes curtos, às vezes longos, mas fim não tem. Tem recessos, tem intervalos.

 

Em Medo da vida, poema que remete a preocupações, anseios, receios, paranoias, Sabrina Dalbelo faz um desafio aos medos que estão no íntimo de todos nós. “Quero falar do medo de receber resultado de exame, de vislumbrar um futuro de medicação, fisioterapia, de tratamento, hospital e de, todos os dias, se perguntar o porquê, por que você, por que a estatística veio lhe pegar”.


Viver é ter medo da morte? Medo da doença? Medo da ruína do corpo? Da falha da mente? Viver é uma sucessão de medos, uma eterna estrada de pequenos receios. Ter medo da vida é ter cautela? Não, ter medo da vida é não viver, é não deixar o acaso se tornar real. Não deixar o sonho se tornar palpável. Ter medo da vida é não deixar a vida ser vida, vivida, desfrutada. A morte é natural, e, como disse Cazuza: “Morrer não dói”. Digo eu, “viver dói mais”.

 

Em Na teoria o céu é azul, a tortuosidade da vida cotidiana é matéria para versos “fofinhos”, que escondem, por trás de sua aparente doçura, a brutalidade da realidade do nosso tempo. “nas nuvens branquinhas que pairam no azul/céu azul o passo é manso/o sonho é carinho de mãos firmes/a brisa é fresca como limão taiti”.

 

Nas esquinas das ruas da vida, o mal que ronda por nosso tempo se faz presente. A doença que infesta nosso planeta, o descaso do nosso governo, a incapacidade e desumanidade o presidente “Mito”, o descaso com o que é minoria, a desgraça de viver em tempos em que o homem agride seu semelhante, mata seu semelhante pela cor, pela orientação sexual, pela diferença. O poema “soco no estômago de Rasga Ossos para mim.

 

Em meio à densidade da poesia da Sabrina Dalbelo, termino com a doçura agridoce de Mulher-goiaba: “mulher não escreve memórias/em papel de seda ou de presente/calada/tem filho/faz goiabada”. Lygia Fagundes Teles, a homenageada com o poema, acredito eu, ficaria feliz.

 

Rasga Ossos, como antes mencionei, é um livro para reflexões. Reflexões profundas, e como toda reflexão, ora leva, ora sombria, mas sempre relevante. Leitura de uma vez só, para depois ser revisitada, redimensionada, reinternalizada. Uma jornada de intensidade.


 


domingo, 3 de janeiro de 2021

Carta a uma Mulher mais Bonita do que Eu



Prosa Epistolar/01 

Por SabrinaDalbelo

 

Minha Sacerdotisa,


Tenho pensado em tudo o que ocorreu. Estou ciente de que passaste a viver em meio ao horror e no isolamento. Todavia, não posso deixar de reconhecer a mulher que eras. Creio que a fêmea desejável ainda exista por detrás desses muros petrificados que te cercam e por debaixo dessas serpentes perniciosas que te prendem à monstruosidade.

Persisto firme na minha decisão de condenar-te ao vazio, pois ainda não suporto que tanta beleza, como a tua, fosse conferida pelos deuses a uma mera mortal.

Poseidon começou a me falar de ti e eu não sei quem eu passei a odiar mais, se ele ou tu.

Não pude acreditar que vocês dois cederam à tentação justamente embaixo de meu próprio teto, na minha casa sagrada. Até aquele momento, tu me idolatravas, e ele me desejava. Pouco depois, eu já não tinha mais nada. Feriu-me a honra tamanha traição, sobremaneira porque banhada pelo suor carnal escorrido de ambos.

Lembro-me de Poseidon vangloriando-se de ti, de te ter nos braços, de apalpar tuas carnes e de afagar teus cabelos macios, enquanto preparava os mais vigorosos maremotos, enternecido por um entusiasmo jovial, fruto da lembrança dos momentos íntimos vividos contigo.

Enquanto me traías, eu seguia ocupada, mantendo-me imbatível nas guerras, até mesmo frente a Ares. Optei pela luta solitária e gloriosa. Coube a mim a virgindade perpétua, apesar de saber que sou bastante desejável para os homens e outros deuses.

Foi por isso que te tornei tão vingativa e rancorosa no que diz respeito aos machos, como eu própria sou. Foi por isso que te condenei a uma vida isolada e trágica. Eu queria que vivenciasse minha congênita falta de ternura.

Dolosamente, te penitenciei a não olhar, não acariciar, não presenciar mais nada. Tua sina é paralisar aquele que chegar a ti. Teu destino é viver rodeada de estátuas tão inertes quanto teu próprio coração gelado. Ou seria o meu?

Te condenei a nem mesmo “te” olhar, pois terás nojo e raiva todas as vezes que perceberes o quão horrenda tu te tornaste por fora, como sou por dentro.

Preciso contar-te mais uma coisa. Na tua cabeça abominável, o sangue de tua artéria esquerda é puro veneno, amargo, provocador de dor e petrificação. Contudo, o de tua artéria direita é um remédio divino, com propriedades de ressuscitar os mortos. Ironicamente, permanecerás bonita por dentro, mas nunca te atentarás de usar o remédio da vida. Quando te tornei isso, tu acabaste optando pelo medo e pela infelicidade. Tu, tomada de rancor, vejo agora, só te socorres do veneno que habita metade de ti.

Minha mensagem, por isso, cara Medusa, é para reconhecer que, como minha vingança ao assédio que aceitaste, tornei-te tão dura e fria como eu mesma, incapaz de reconhecer a própria vida que ainda conténs.

Para meu regozijo, saibas tu, nem mesmo terás acesso a esse relato, pois o mensageiro que mando para entregar-te é um homem e, fraco, cederá ao desejo de encarar-te, como todos aqueles que chegam até ti após atravessarem o reino dos mortos a bordo do barco de Caronte. Ele será mais um ornamento paralisado a tua porta, para te lembrar que tua vida estagnou.

Nunca saberás disso, mas haverá um mortal que te libertarás, no exato dia em que te decapitares. Somente ele terá acesso ao sangue da vida que escorre de ti, o qual será usado pelo bem da Grécia.

Desse dia em diante, Zeus me perdoará pelo que fiz contigo e eu voltarei ao Olimpo.

Eu nunca serei liberta, eu sei. Mas tu, Medusa, nunca serás bela novamente.

Resta a mim, agora, vendar meus olhos e carregar a Justiça nas costas, para nunca mais ter de presenciar tamanha insolência, como a tua, embora seja meu fardo olhar pelos mortais, eternamente.


Até nunca, minha Sacerdotisa.


Palas Atena.

 

* mensagem originalmente em grego dada pela Deusa virgem Atena, filha de Zeus, deusa da estratégia em batalha, das artes, da justiça e da habilidade, a um mensageiro mortal para ser entregue à Medusa. O homem, apesar de atravessar a Grécia, rumo à extremidade ocidental do mundo, foi petrificado à porta do covil da górgona, diante do seu olhar paralisante. Medusa nunca leu a carta.





 

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