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segunda-feira, 24 de julho de 2023

ELES LEEM ELAS: MEU SILÊNCIO LAMBE TUA ORELHA, DE MARTA CORTEZÃO

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ELES LEEM ELAS: MEU SILÊNCIO LAMBE TUA ORELHA, DE MARTA CORTEZÃO


 POR RONALDO RHUSSO

Meu silêncio lambe a tua orelha” da Marta Cortezão - Editora TAUP (Toma Aí Um Poema – 2023)

Trombei, por assim dizer, com a Marta Cortezão numa das esquinas da rede de gente virtual nem um pouco virtual! Convite da Eliana Castela para ver, em outubro de 2020, ápice pandêmico, a Live VIII Tertúlia Virtual sob o Tema: “A Poética que roça os sentidos” no Canal Banzeiro Conexões do iutubi... Vi o “card” de chamada, procurei textos das outras convidadas para compartilhar na hora e vi a Marta apresentando geral, um tanto desacostumada com as geringonças internéticas, porém, sempre com esse sorriso de Sol, fazendo um trabalho lindo de divulgação de novas poetas e escritoras...  Conferi os vídeos anteriores e continuei acompanhando os demais, enquanto ela se transmutava em “Enluarada”, “Bruxa”, “Deusa” (levando geral com ela, grande parte, gente que tinha seus escritos engavetados e desacreditados) ... Aí fui lendo, também, o versejar vicejante da Marta...

E o atual livro? Ah! Sim. “Meu silêncio lambe a tua orelha” (gostosinho falar isso, não é? Quem não fica logo muito a fim de ler este livro?) derrama sobre nós leitores um balde estelar de poemas vivos... Saca, vivo? Tipo vivo assim:

estas cicatrizes que levo

agarradas na pele

falam muito mais de mim

que as palavras fugadas

de meu distraído silêncio

                          (intemporalidades)

 

meu corpo desértico

feito de solidão e degredo

pelo ímpeto da dor

do não pertencimento

reage com solícitos ais

                       (mar de diásporas)

Evento Campinas, das 14h às 16h30, Sáb/27/JUL

Há, notavelmente, um espetáculo de poemas Concretos e um desnudar de alma em cada um deles, sendo que a Marta já havia demonstrado esse poder ou virilidade no escrever sobre o que ainda é tabu para quem se assusta com a realidade que todo mundo sente ou todo mundo quer sentir e se libertar para tanto! O uso das Figuras de Retórica é aplicado de uma forma bastante rica e o gozo do leitor se amplifica num acompanhar de momentos poéticos que nos fazem reler e reler porque a sonoridade é boa e a identificação com o que lemos nos embala a continuar a beber as palavras:

o tempo escorre arenoso

pela ampulheta

vai inevitável

estirando granulado fio

que tece a sanhuda

pressa das horas

               (liquidez)

Eu preciso comentar essa combinação bonita entre a Marta Cortesão e a Toma Aí Um Poema, inicialmente um podcast idealizado pela Jéssica Iancoski que postou a primeira declamação em novembro de 2020 no Canal com o mesmo nome. Ou seja, “Meu Silêncio Lambe a Tua Orelha” e a TAUP é mais que uma parceria com poemas fortíssimos e um trampo de editoração bonito pra caramba! Design gráfico bastante contemporâneo, tão vivo quanto os sessenta e seis poemas. É um livro que tinha que acontecer! É um encontro de dois belos e caudalosos rios escorrendo e se juntando, em delta, ao mar da Poesia para deliciosamente encher o mundo dessa fertilidade criativa...

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Marta Cortezão, de Tefé/AM, é escritora e poeta. Possui publicações em antologias nacionais e internacionais. Livros de poesia publicados: “Banzeiro manso” (Porto de Lenha Editora, 2017), “Amazonidades; gesta das águas” (Penalux, 2021), Zine “Aljavas para Cupido” (2022) e “meu silêncio lambe tua orelha” (Toma Aí Um Poema Editora, 2023). 


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Ronaldo Rhusso
: autor anual de “Meditações para o Pôr do Sol” da Casa Publicadora Brasileira pela União Sudeste dos IASD, do Compêndio poético “2016, o Dia, o Tema e o Poema” (produção independente) e de “Atos de Jesus” pelo Clube de Autores (2022), além de cordéis em parceria com membros da Academia de Cordel do Vale da Paraíba. Escreve, principalmente, no site “Descanso das Letras” e em seu blogue particular “A Sós Com a Poesia”.

sexta-feira, 24 de março de 2023

ELES LEEM ELAS: É TUDO FICÇÃO, DE FLAVIA FERRARI


É TUDO FICÇÃO, DE FLAVIA FERRARI

 POR RONALDO RHUSSO


Eu queria ter o talento da escritora campinense Nilza Azzi para descrever o que lê de uma forma a pintar tão bem as cenas quanto ela o faz.

Hoje eu reli “É Tudo Ficção” (Editora TAUP – Toma Aí Um Poema - 2022) da Flávia Ferrari. E quem é Flávia Ferrari?

A pergunta faz sentido porque uma busca no Google vai resultar numa blogueira que ensina as pessoas a viverem como se o planeta não existisse antes dessas tais dicas que ela dá. Bom para ela. Péssimo para quem vive exausto dessas futilidades.

Mas a Flávia Ferrari a quem me refiro é uma poeta que já era poeta antes de ver a si mesma como tal, ou seja, poeta.

Ah! E é professora, de verdade, influenciando de forma muito positiva o que a gente chama de nova geração.

Bom para essa nova geração ter uma influência tão necessária!

Estreou, por assim dizer, nesse momento pandêmico agudo com o livro Meio-Fio: Poemas de Passagem, Editora TAUP, 2021. Participou de Coletâneas, essa trilha que muita gente percorre, antes de brindar os bons leitores com um trabalho mais pessoal e espontâneo e eu, assíduo nessas redes antissociais, acabei por ter o privilégio de me deparar com suas participações generosas nas “lives” cujas participações são restritas a mulheres que escrevem e pleiteiam pela justa equidade, não só no Mercado Editorial, mas, também, na vida. E vejo a Flávia, principalmente, em vídeos onde ela lê outros poetas sempre com um sorriso de luz e o brilho no olhar que mostra uma alegria sincera, uma dorzinha contida, uma vontade de dizer o quanto o texto lido lhe tocou e não é que diz, mesmo? Ela, também, é publicada em Revistas digitais, mas vamos ao É Tudo Ficção? 

Antes eu quero frisar que não sou analítico como os resenhistas e críticos textuais. Se fosse estaria muito ferrado porque só leio o que quero ler e entendo o que quero entender, sendo, assim, independente e livre para depor e não julgar o íntimo do escritor, que, por ser escritor, não é ser humano usual.

Esse segundo livro da Flávia Ferrari a expõe, como disse outro dia a Jalna Gordiano numa live da Banzeiro Conexões sobre essa característica nas escritoras viscerais. Ele, o livro, a desnuda como ser humano que tem a sorte infinita de saber descrever isso juntando palavras e isso requer uma coragem tão necessária nesse mundo hipócrita!

“É Tudo Ficção” foi dividido em oito partes. Parece uma carta (se eu fosse fodástico teria escrito “Epístola” para ficar mais fofo) e pode nem ter sido conscientemente, contudo é uma carta de amor.

“Se tivesse mais tempo

Viveria as ilusões

De quem atribui ao tempo

Os impedimentos” (Kairós)

 

“Se pudesse mesmo criar algo extraordinário

As plantas teriam voz” (O estado das coisas)

Reparem como esses dois trechinhos poderiam fazer um leitor atento parar para meditar na estultice humana de se acorrentar ao tempo e fingir que ele existe de tal forma a restringir a existência de quem nele acredita?

E se as plantas falassem? Ah! Sim, elas falam, mas e se a gente as entendesse ou se elas tivessem voz? A Flávia vem com essas ideias doidas de poeta pra cima da gente e agora eu, que ando ressentido com meu pé de maracujá, gostaria muito que ele me desse algumas explicações verbais.

Em “Partir” ela me chama a atenção para o fato de ser ambidestra em quase todos os textos, mas só nesse foi que percebi e acabei relendo todos os poemas mais uma vez. Vejam:


“Eu queria acabar com esta sensação

De que sempre há algo esquecido

Seja palavra ou coisa ou gesto

Esta falta insistente que não tem letra

Eu queria”

Eu não planejei citar fragmentos de textos, mas como não fazê-lo se esses fragmentos me fazem um bem danado de dar um tempo a mim mesmo e ficar pensando os pensamentos da Flávia que vão inundando o meu pensar de leitor que pensava que era doido sozinho?


“Todos esses poemas que escrevemos

Não dizem nada de relevante

Meu plano é jogar fora tudo o que você já escreveu

Se penso ser capaz de fazer isso

Certeza que você já pensou em fazer pior

E passo a noite acordada pensando o que seria”

 

Agora que me liguei estar dando “spoilers” nessas citações, mas e daí? Aqui vai mais um:

o amor tem a consistência de um guarda-chuva

em algum momento será insuficiente

e quando estiver toda nua

sem as minhas roupas ensopadas

estarei sozinha (Tempo)

Onde é que essa escritora estava engavetada nesse tempo todo? O que ela escreve desce macio na garganta do cérebro e se espalha pelos capilares dando aquela ondinha gostosa de sentir...

Eu pensei em falar sobre a parte em que ela chamou de “Diário” e dividiu em quatro partes/poemas, mas é tão íntimo e tão bonito que eu prefiro não tirar esse gostinho dos próximos leitores.

É Tudo Ficção” descerra essa fricção gostosa de corpos, de pensamentos, de acasos e descasos, das ternuras que foram interrompidas... Essa fricção entre existência e vida e que você, se for raso, pode chamar de redundância, mas experimenta ler esse livro e ao final pergunte a si mesmo, entre aquela tentativa de respirar devagar após o gozo, se foi bom para você, também.

Eu gostei.

O Projeto Gráfico? É um luxo a mais nesse livro fascinante.

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Flavia Ferrari. Poeta e professora da rede pública de São Paulo. Lançou, em novembro/2021, o seu primeiro livro de poemas, intitulado “Meio-Fio: Poemas de Passagem”. A obra foi editada pelo Toma Aí Um Poema. Flavia Ferrari escreve desde a adolescência, mas começou a publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais, participando de antologias e contribuindo com diversas revistas literárias digitais. Desde o princípio, os seus poemas foram muito bem recebidos pelos leitores e pelos periódicos digitais

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Ronaldo Rhusso: autor anual de “Meditações para o Pôr do Sol” da Casa Publicadora Brasileira pela União Sudeste dos IASD, do Compêndio poético “2016, o Dia, o Tema e o Poema” (produção independente) e de “Atos de Jesus” pelo Clube de Autores (2022), além de cordéis em parceria com membros da Academia de Cordel do Vale da Paraíba. Escreve, principalmente, no site “Descanso das Letras” e em seu blogue particular “A Sós Com a Poesia”.

sábado, 21 de janeiro de 2023

LIVROS & ENCANTAMENTOS: FIO DE PRATA, DE MARGARIDA MONTEJANO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/09

DESFIANDO  REMINISCÊNCIAS, EPIFANIAS E METÁFORAS

POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Sociedade distópica em função da pandemia da Covid-19, isolamento social por conta do coronavírus nos últimos dois anos, leva as mulheres que escrevem a se projetar com seus escritos nos mais variados gêneros. Em múltiplas linguagens dão vozes à potência feminina que dá um basta na violência cotidiana. Nesse curto período, estamos escrevendo sobre condição social, econômica, educacional, moda, comportamento, opressão, submissão, corpos, violência, política. Nada nos detém porque, enquanto reescrevemos nossos textos, damos novo enfoque àqueles que alienam de nossa condição.

Mulheres potentes em fusão por um mundo melhor. Foi nesse contexto que conheci Margarida Montejano e sua produção literária que traz traços de suas vivências como educadora, apresentadora do Canal N’outras Palavras, mãe, amiga, esposa. enfim, uma sobrecarga de papeis a que muitas de nós estamos expostas. E, justamente, por isso vamos nos apoiar e nos ler.

Margarida Montejano -Lançamento do livro Fio de Prata
[Foto arquivo pessoal da autora]

Em Fio de Prata, seu primeiro livro de contos, Margarida Montejano mostra que veio contribuir dando vez e voz a suas personagens femininas, para isso se apoia em alguns recursos estilísticos que se destacam: a reminiscência, a epifania e a metáfora. De fato uma maneira de aprofundar sua prosa poética.

 Na filosofia, Platão recorre à anamnese, à lembrança com pouca certeza. Nessa recordação vaga – reminiscência – é possível perceber coisas que ficaram na memória inconscientemente. Com o conto Reminiscências? Talvez, que abre o livro, percebe-se o quanto isso vem à tona. Quantas vidas existem e resistem em nós, mulheres? Múltiplas somos que “esse corpo estrangeiro” quando se depara na forma física “alta, negra, cabelos longos, pele quase negra”, “um corpo estranho e um cérebro em desalinho”, “vestido longo como num filme antigo”, natural o biotipo incomodar? Quando se vive no país em que vidas negras parecem pouco importar, isso não é à toa, vive-se livre num filme em busca das raízes que nos constituem. E nos vemos cara a cara com A Mulher do Retrato, a história de Inês/Inezita é recheada de romance, de perdas e ganhos, de se reinventar a cada amanhecer. Na primeira parte – A noiva do pescador – Inezita e Julinho vivem a saga de construir família e o sustento dela, o Condor passa, lutam até o luto. Na segunda parte – A Medalha da Sorte – Inezita, viúva, beija a medalhinha de Nossa Senhora da Conceição, os ventos e os rumos mudam, chega Naldo. E na terceira parte – A Mulher, o mar e vida que segue – vemos Naldo morrer à deriva no mar, após enfrentar duas árduas ressacas: a do mar e a da bebida. Apesar das dificuldades enfrentadas, na sua simplicidade, a mulher vivia feliz. Porque o tempo todo foi ela o arrimo que a todos sustentou, mesmo “com os olhos marejados de preocupação e saudade, trabalhava e trabalhava muito. Costurava, cozinhava, cuidava dos filhos”. Exatamente por isso, D. Inês enfrentou as marés e seguiu altiva e agradecida.

[Foto do arquivo pessoal da autora]

A seguir, já anunciada no título, está A Epifania Feminina. Como Clarice Lispector, a autora explora a epifania – o(s) momento(s) de revelação. Essa característica literária nunca anda sozinha, vem acompanhada de questões existenciais: Nascer de novo? Não como menina! Repetir a mesma história? Nem pensar nessa falta de sorte. Qual o seu lugar na família numerosa? O clube do Bolinha ordena, o clube da Luluzinha executa. Deus dará, a fé ilimitada da avó determina, assim tem sido. Mas a garota de 10 anos questiona quando vê que os irmãos e primos têm tratamento diferenciado e privilégios. Sente-se arrasada quando o pai diz: “Como diz o otro, o bão e o que dá sorte é bater na nossa porta um menino pedindo anobão. Se vié uma menina, aí o ano será ruim, não será anobão”. Que desaforo! Mas menina conta com o apoio, a sensibilidade e coragem da mãe para livrar da triste sina, não ficará relegada a segundo plano enquanto os meninos seguem maiorais pelo anobão. Bandeira de luta e resistência já desde cedo o feminismo floresce.

Outras epifanias surgem em A Mão e o Espelho quando a jovem funcionária do banco fala que pratica quiromancia. Um dos colegas fica animado e põe sua mão para ela ler. A moça dá trela, pois é boa observadora de pessoas e com base nas atitudes delas “revela” as previsões futuras. Tempos depois, em outra cidade, já com outra profissão, “as revelações” se confirmaram para surpresa de Márcia, uma espécie de espelho que filtra os desejos do outro, da outra, de quem quer que seja, pois reflete também a si mesma, pois quem é que não quer ter uma vida repleta de realizações? Linhas da vida, fios entrelaçados pela escuta, o melhor dos autocuidados em nosso cotidiano tão banal, no entanto revelador se atentarmos aos detalhes.

Para adquirir exemplares, fale com Margarida Montejano

Finalmente as metáforas retratam várias faces. Hora de olhar as analogias, as comparações entre uma coisa e outra, qual a similaridade entre ambas? Nos contos seguintes, percebo que as personagens estão em busca do sentido da vida, partem para uma reavaliação existencial. Foi desse modo que enxerguei A Metáfora do Buraco e a Água no Rosto. O homem, em busca de sua alma gêmea, caminha sedento pelo deserto. E do nada é “engolido pelo buraco”. Perde a noção espacial e temporal. Miragem, passagem? Sente o frescor do oásis, em “fragmentos de sonho” vê a si mesmo bem mais velho, “a mulher misteriosa” nas “dunas centenárias”. Perdeu o senso ao deixar de viver o inusitado? Afinal o que é a vida? Miragem, passagem? Melhor é água no rosto, acordar para vida e dela desfrutar, ouvir a intuição, porque, às vezes, procuramos por algo bem longe de nossa vista quando o objeto de nossa fixação está abaixo de nosso nariz.

Na narrativa Se Não Entender, Pergunte!, o universo da educação se faz presente. A princípio parece ser mais um conto daqueles em que o opressor da pedagogia do oprimido vence. No entanto, Paulo Freire nos educa para uma educação que liberta então vem o revés. Somos sujeitos históricos, oras! Enquanto uma criança mantiver sua curiosidade acesa, que venham as perguntas! Já as respostas podemos encontrá-las juntos! Criatividade exige aprendizagem cooperativa. Isso se dá com interação das partes envolvidas: professor, estudante, sociedade inseridos num determinado contexto gerando uma pedagogia da esperança, metáfora que indica novas leituras, novos modelos de educar, porque os tempos são outros. Ter consciência desse processo é humanizar a nós mesmos.

[Foto arquivo pessoal da autora]

Por fim, o fechamento do livro com O Fio de Prata, canal que transmite energias vitais. Dona Maria Teresa e Nona são as anfitriãs da casa sem espelho. Ali compartilham histórias e ausência de vaidades. Em contraste com a convidada que se fixa na imagem de Narciso, de poemas, de personagens literárias, incluindo seus autores como forma de manter o corpo-matéria vibrando. Vibração esta que vem do fio de prata, pois nele está a força divina que mantém o corpo ligado ao espírito. Nesta metáfora bíblica, Margarida Montejano nos enriquece com várias outras imagens que são espelhadas e espalhadas assim como deve ser o universo literário que nos reflete, ora é susto, ora é vislumbre, ora totalmente espelho.

Após a leitura dos 7 contos, comovida, percebo que faço parte desse mulherio em movimento. Assim são as mulheres que redescobrem dentro de si mesmas verdades intrínsecas e se movem sem a validação de outros olhares, agora encontramos em nós próprias representatividade. Ressalto, ainda, que foi apenas um recorte desta leitora e que outras análises são possíveis. Encerro lembrando de um dito popular que diz que recordar é viver. Diria mais, aprender é recordar, seja conhecimento e aprendizagem por reminiscência, epifania ou metáfora. Quando se toma consciência do quanto certas situações ficcionais se aproximam de situações cotidianas experimentadas por nós, tais fragmentos de vivências nos fortalecem, estamos unidas pelo fio de prata que herdamos da literatura de Margarida Montejano, pois cada qual, a sua maneira, quer encontrar o fio condutor de sua existência.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta, escritora e professora

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Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).



Margarida Montejano, mora em Paulínia/SP. Supervisora Educacional na Rede Municipal de Campinas, Poeta, Pedagoga, Ms. em Educação PUC Campinas, Dra. em Educação pela Unicamp; Pesquisadora do Loed/Unicamp e Produtora do Canal Literário – N’outras Palavras – histórias que inspiram, no Youtube. Livro solo Fio de Prata (Editora Scenarium, 2022).

 


sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO E JOCINEIDE MACIEL

A POESIA DE AUTORIA FEMININA: DE ESPADA EM PUNHO!

  

MariaElizabete Nascimento de Oliveira[1]

JocineideCatarina Maciel de Souza[2]

 

Após duas décadas do século XXI, quando o céu do solo brasileiro projeta sair da cor cinza e surgem estrelas a esperançar dias melhores, mulheres/brasileiras que vivem em diferentes espaços geográficos, fortalecidas pela força artístico-literária se unem para se inscreverem na história da literatura brasileira por meio da poesia. É, nessa conjectura, que exibimos alguns fios dos muitos que encontramos no I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida (2021), uma coletânea de poemas escritos por mulheres negras, indígenas, brancas e amarelas, dividida em três partes, que de acordo com as organizadoras são as três condições necessárias à liberdade.

Adotamos como metodologia a apresentação integral de três poemas que compõem a coletânea, um de cada parte da obra. Da parte I, intitulada: meu Corpo, minhas Normas, meu Templo Sagrado, selecionamos o poema intitulado Pastoreio (p.73), de autoria de Marta Cortezão; Da parte II, Dos Silêncios que ardem no Fogo das Injustiças e dos prodígios da Palavra, escolhemos, Femina (p.142), de Verônica Oliveira; da última parte III Da Chama Poética que abrasa o Ventre Divino das Bruxas, temos o poema Borboletas (p.177) de Sandra Santos. Essas criações poéticas se constituem como convites à leitura da obra completa e evidenciam a sensibilidade da figura feminina ao tecer fragmentos de suas vivências e utopias que, por sua vez, comparecem nesse espaço repletos de existências. No sentido de que mesmo tratando-se, muitas vezes, de um espaço particular, há a presença inegável do espaço coletivo, humano, que se imbrica aos liames existenciais, como se pode conferir nas produções selecionadas, iniciando por Pastoreio, de Marta Cortezão.


PASTOREIO - Marta Cortezão (p.73)

vinde, ó pastoras!

pastoreemos estes prados

que outrora nos foram negados

 

de pés descalços

dancemos sobre Gaia

que nutre vida viva palavra

 

abracemos nossa dororidade

vigiemos nosso rebanho

cantemos à liberdade

 

substância

              verbo

                    amanho

 

A convocação no verbo que abre o poema nos remete a um tempo presente, ao se juntar ao substantivo pastora que por si, já demanda um compromisso de sororidade, se pensarmos na imagem do pastor messiânico que ao recolher suas ovelhas percebe a falta de uma e volta a procurar a única que se distanciou do rebanho. Por outro lado, remete a insubmissão ao atentar para o fato de que o eu-poemático é feminino e, na primeira estrofe está convidando as demais a unirem-se por meio do imperativo: “vinde, ó pastoras!” para que, juntas possam cuidar de um território que lhes fora negado. É como se fosse um convite a adentrar um espaço interditado e registrar lá a presença da figura feminina (WALKER, 2021).

Na perspectiva bíblica, o vocábulo prado referia-se aos pastos, local em que pastavam as ovelhas, no entanto, prado surge como metáfora do campo artístico-literário, onde precisam atuar as mulheres no século 21. Ao considerarmos os inúmeros estudos sobre a atuação da mulher nas esferas sociais e políticas, ainda é um espaço pouco ocupado por mulheres. Deste modo, precisamos olhar para a substância existente no ser feminino, no percurso das mulheres que fizeram “trieiros” e pavimentaram nossos caminhos, para que hoje, por meio da coletividade pudéssemos reunir para pisar nesse solo tão árduo e romper as bolhas do mercado editorial e da ocupação dos lugares de poder dos quais sempre fomos excluídas, todavia não devemos ocupar  o lugar de vítimas, pelo contrário, é preciso protagonizar o nosso viver, "[...] em um tempo no qual todas as identidades estão em crise, ou são manifestadamente postiças, ser vítima dá lugar a suplemento de si."(GIGLIOLI, 2016, p.07).

Na segunda estrofe, temos o verbo “que nutre viva palavra”, é preciso desbravar os ritmos das linguagens e, nesse sentido, reportamos à simbologia da palavra:


A palavra úmida germinou, como próprio princípio da vida, no ovo cósmico. É a palavra que foi dada aos homens. É o som audível, considerado como uma das expressões da semente masculina, o equivalente do esperma. Ela penetra na orelha, que é outro sexo da mulher, e desce para enrolar-se em torno do útero para fecundar o germe e criar o embrião. Sob a mesma forma de espiral, ela é a luz que desce à terra, trazida pelos raios do sol e que se materializa, no útero terrestre, na forma de cobre vermelho. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015 p. 679)

 

Ao trazer a palavra como fecundadora, como germe da criação, já podemos chamar a ligação ancestral verbo (palavra) e Gaia (terra), ambas vivendo a promiscuidade da existência. Mulher, terra, palavra; trio perfeito que se fundem e clamam por resistência. “De pés descalços”, deixemos que Gaia nos envie energia e tome conta do nosso corpo. Logo, coadunamos com os pressupostos apontados por Frederico Fernandes (2019, p. 295) ao afirmar que o corpo-memória “[...] por meio da linguagem artística recupera os acontecimentos nos quais formas de opressão e estratégias de resistência que passam a ser evidenciadas”. Pensar essa escrita feminina numa perspectiva de resistência latino-americana, como o faz Fernandes, é demarcar uma construção estética que aborda a forma que cada uma está e age no mundo.

Na terceira estrofe, o eu-poemático clama para que demonstremos afetos a todas as mulheres, tanto ao trazer o termo feminista cunhado em 2017, por Vilma Piedade, dororidade, que compreende a dor de todas as mulheres, focalizando especialmente na mulher preta, haja vista, que segundo a autora o termo sororidade não contempla algumas especificidades que focalizam na dor específica da mulher afrodescendente; quanto ao metaforizar a mulher, no segundo verso. Além disso, convoca para que cantemos para a liberdade. Vejam ao crasear a vogal à liberdade, o eu-poemático deixa entrever que é uma convocação também a esta, já que ela inexiste no presente.

 

É nesse ponto que a Dororidade se instaura e percorre a trajetória vivenciada por Nós, População Negra, e, aqui em especial, Nós – Mulheres – Mulheres Pretas, Brancas, de Axé, Indígenas, Ciganas, Quilombolas, Lésbicas, Trans, Caiçaras, Ribeirinhas, Faveladas ou não, somos Mulheres (PIEDADE, 2017, p.15). 

 

Os três últimos versos são compostos das três palavras chaves que sustentam as estrofes anteriores, a primeira é substância que nos remete a ideia daquilo que é essência, inerente ao ser; a segunda é verbo sugerindo a existência que se metaforiza em palavra e a terceira, a palavra amanho que se trata da arte ou técnica para o manejo da terra. É interessante observarmos os degraus compostos pelas palavras que, também, podem ser vistos em formato de espiral – substância, verbo, amanho.

Nos doze versos que compõem o poema Pastoreio, temos o fazer artístico integrando à escrita, à dança e à música. Linguagem corpórea, que com ritmo e música salienta que não há restrição para ocupação desses espaços, talvez a única regra seja vencer o medo e dançar descalças e juntas em defesa da terra, que para nós, mulheres, é sinônimo da própria existência. Numa linguagem que, também, poetiza o espaço vivenciado pela mulher, apresentamos o poema: Femina, de Verônica Oliveira.

 

FEMINA - Verônica Oliveira (p. 142)

Ah, me fascina essa mulher que se entrega

Que se arrasta, se magoa, se anula

E quando todos a julgam apagada

Emerge das cinzas feito a fênix

Ressuscitando a dignidade e fortaleza

Me fascina vê-la retomar o seu papel real

Brigar pelo direito de ser independente

Defendendo os seus anseios de pessoa capaz

Me fascina a coragem de, mesmo sentindo

O coração esfacelado, deixar ir o seu amado

A fim de preservar o seu eu

Ah, me fascina a malícia das senhoras

Que se transformam em fêmeas cheias de desejo

Enroscando-se em seu amado

E sorvendo dele todo o mel

E quando as vejo assim,

seja nas manchetes, nas filas,

Nas repartições, passeatas,

Nos parlamentos

Nas escritas doídas

Ou em casa por opção

Me fascina ser mulher.

 

          Se a escrita de Marta Cortezão é uma convocação às pastoras que estão em diferentes lugares e espaço no mundo, nos versos, de Verônica Oliveira, apresentam-se nuances das artimanhas de sobrevivência dessas mulheres, que não sem dor se atreveram, na “hora gris”, a ocupar o seu papel. A fascinação apontada nos versos (1, 6, 9, 12 e 22), tem muito mais que o ato de admirar, mas carrega o empoderamento de também assumir o lugar de mulher. Além disso, observamos como o termo dororidade também está presente no poema de Oliveira implicitamente e, mais abertamente “nas escritas doídas”. Há na escrita da mulher esse fazer afetivo que carrega as várias mulheres que a compõem.

Nos dois primeiros versos temos uma gradação com o uso dos termos (entrega, arrasta, magoa, anula) que apontam as dores que as mulheres vivenciam diariamente na luta pela sobrevivência. Ao refletirmos sobre a construção desses versos nos chama atenção o uso da partícula “se”, que a priori pode relegá-la à passividade. É importante visualizarmos como o eu-poemático aciona a fragilidade e o poder feminino em ocupar espaços, enfatizando as inúmeras situações que, muitas vezes, as condicionam a um lugar predeterminado, pois a ruptura dos condicionamentos históricos e sociais é dolorida, está para além do exposto em palavras porque se encontra intrínseco no corpo feminino, quer seja pela falta de reconhecimento e ou por situações de ordem sociocultural, econômica e/ou política.

No verso /E quando todos as julgam apagadas/, temos a evidência de como a sociedade está a todo tempo, colocando-a em situação de julgamento pelo fato de ser mulher. A resistência feminina metaforizada na fênix desfaz essa ideia de passividade e nos remete as estratégias que, ao longo da história, foram necessárias para demarcar o ser feminino no mundo; no poema, essas marcas apresentam-se, sequencialmente, com os verbos “retomar”, “brigar” e “defender”, para apontar as estratégias de ruptura com luta e determinação pela conquista de um espaço de atuação.

Na história de emancipação e de resistência da mulher, a dor e o apagamento tornam-se antídotos para combater a maldade do mundo que as relegou aos lugares subalternos, negando-lhes o acesso aos estudos, de modo a subjugá-las aos afazeres domésticos. Quando em meio às estratégias e, quase sempre, em parcerias com outras mulheres tinham acesso ao domínio da escrita, não podiam assinar seus escritos, suas descobertas científicas e, nem mesmo, reger seus próprios corpos, por isso a fascinação pode ser entendida como a palavra-chave que norteia o eu-poemático de Verônica Oliveira.

Na perspectiva acima, ressaltamos que: “[...] o poder, mesmo herético, teme a palavra das mulheres. Ele tratou rapidamente de fechar-lhes a boca. [...] restaurar a ordem é impor o silêncio a esta desordem: a palavra das mulheres” (PERROULT, 2005, p. 320). Por séculos, esse silenciamento imposto, muitas vezes, de forma a violar o direito de SER mulher, fortalecido pela hegemonia do patriarcado e da própria historiografia literária que demonstra o apagamento das mulheres na literatura, como destaca Marli Walker (2021).

 

[...] a condição da mulher escritora em Mato Grosso não diverge da realidade observada em outras esferas, sejam nacionais ou civilizacionais. A literatura produzida por mulheres em Mato Gross, em conformidade com o que ocorreu no país, apresenta uma produção ainda marcada pelo protagonismo masculino no âmbito da literatura, da cultura, da sociedade e da política. Dentre outros espaços, este é um dos fatores que caracteriza as autoras mulheres como um grupo de escritoras colocado à margem da historiografia literária do estado de Mato Grosso em determinados períodos. (WALKER, 2021, p. 27)

 

Nos versos (9,10,11), o eu-poemático nos apresenta uma mulher que se prioriza e, ainda que seus sentimentos sejam importantes com relação ao seu parceiro, é a autonomia do seu corpo que prevalece. Ainda assim, o índice de feminicídio é elevadíssimo e cada hora temos mulheres sendo violentadas e assassinadas no mundo. Todavia, a fascinação pela coragem dessa mulher, que não aceita a violação de seu corpo, encoraja a outras mulheres a se movimentar no seu próprio existir.

Ainda sobre a autonomia dos corpos femininos afloram a libido da mulher nos versos 12,13, 14, 15, de forma autoral e sensualizada, algo proibido às mulheres do século XIX, pois: “[...] historicamente situada na esfera dominada, foi duplamente submetida à lei; pois, além de enquadrar-se às normas gerais, devia, ainda e sobremaneira, subjugar-se à ordem masculina na relação conjugal” (WALKER, 2021, p. 95), ainda de acordo com a autora é somente no século XX, que esse cenário começa a ruir com a revolução feminista.

          Justificamos a escolha da palavra-chave fascinação, aliada ao conjunto desse tomo, principalmente no sentido de poder de encantamento que a palavra causa, esse corrobora com o uso do gerúndio nos versos (5, 8, 14 e 15), que denotam um estado de permanência. A panorâmica de ocupação dos diferentes espaços citados por Oliveira podem ser os prados a se pastorear de Cortezão.

Nos últimos versos, a poeta Marta Cortezão, aponta para lugares, que com muitas lutas foram conquistados e respalda a ideia de que a mulher necessita estar atenta aos espaços que são de todos por direito. Por outro lado, ou talvez do mesmo lado, Verônica Oliveira, no último verso: “me fascina ser mulher”, deixa subentendido a fascinação do eu-poemático surge pela conquista dos espaços. A seguir, descrevemos o poema de Sandra Santos que surge, também, como um convite à conquista desse espaço, mas com especificidades permitidas pelo campo semântico das palavras por ela selecionadas.

 

BORBOLETAS - Sandra Santos (p.177)

Me deem borboletas de presente

Quero deixá-las ir

Escolher do caminho, o rumo

Do voo, a altura

Do espaço, o momento

Certezas... Abolir.

Bater asas

Beijar flores

Saborear amores

Deixem-me ser,

Eu mesma, uma borboleta

Desvairada, colorida

Passageira, reluzente

Tatuagem minimalista

Estampada em preto, pele

E argumento

 

O poema Borboletas nos convida a despir das coisas funcionais e voltar a olhar às experiências e às coisas destituídas do poder visto pela ótica do capitalismo. E, ao mesmo tempo, se juntar ao eu-poemático. Os elementos sensoriais se apresentam leve na linguagem adotada por Sandra Santos, para sugerir que, às vezes, é preciso romper com as engrenagens que focalizam a sociedade mercantilista e vislumbrar outros saberes que, muitas vezes, são efêmeros e passam despercebidos.

 

O conhecimento de sua linguagem permite o acesso à intimidade de uma pessoa e de um grupo. Atacar uma linguagem equivale a atacar um ser; respeitar uma linguagem é respeitar o ser que a fala. Porque ela detém uma carga de energia, que provém de todo o ser e visa ao ser por inteiro. A força do símbolo impregna dessa energia os signos e os suscita. A linguagem permite que se participe de uma vida. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 552)

 

Ainda segundo os autores (p.138), devido à “graça e ligeireza, a borboleta é, no Japão, um emblema da mulher”, destacam que a ela está arraigado o símbolo de ligeireza e inconstância. Nos primeiros versos o eu-poemático conclama, também, o coletivo para o movimento, tal qual Cortezão, e poetiza: “deem-me borboletas de presente”. Um mesmo chamamento, com roupagem diferente, substância e verbo tecendo danças diversas nas escritas femininas, mas num mesmo ritmo. Vejam que o eu-poemático, aqui, também canta à liberdade: “Quero deixá-las ir/Escolher do caminho, o rumo/Do voo, a altura/Do espaço, o momento/Certezas... Abolir”.

Em tempo, destacamos que não somos alheias às fragilidades desses corpos femininos que ora regam as páginas da antologia, muito pelo contrário, como pesquisadoras e estudiosas das linguagens, refletimos também sobre os fatores contextuais e os intratextuais que, não em raras exceções e, de acordo com os mais conservadores, ferem as normas e convenções da linguagem e, não menos, também incomodariam àqueles que buscam descobrir os métodos por trás dos signos. Mas, a nós que compreendemos todo percurso com seus desvios e aprendências, sabemos que a coragem dessas mulheres em adentrar esse espaço instituído e instituinte reafirma seus protagonismos no curso dessa história, outrora, escrita apenas por homens.

Os três substantivos que fecham o poema de Marta Cortezão, também, bailam aqui nos versos da segunda parte do poema de Sandra Santos, pois a substância e o verbo estão contemplados nos versos “Tatuagem minimalista/estampada em preto, pele/e argumento”, e o amanho, a arte de cuidar da terra, está implicitamente bordado nos versos: “Bater asas/Beijar flores/Saborear amores” porque cuidar da terra é, também, cuidar de nós mesmos. Nessa conjectura, somos convocadas pela memória à música de Geraldo Vandré: “para não dizer que não falei das flores”, que nos remete ao poder da coletividade empunhando a arma do sensível.

A ocupação de espaços evidenciados no poema de Verônica Oliveira, de certo modo, também, se presentifica em Sandra Santos, que pelo voo da borboleta sugere abolir as certezas e promove o voo livre em outros caminhos e rumos. Ademais, quando o eu-poemático revela: “Tatuagem minimalista/Estampada em preto, pele/E argumento”. Podemos inferir sua fascinação pelas coisas simples que corroboram com o verbo, com a linguagem do corpo, no entanto, com uma linguagem adocicada pelas imagens que reverberam de seus versos. Nesse ínterim, vale destacar que:

 

[...] dadas às diferenças históricas estabelecidas entre o homem e a mulher, advindas do patriarcado, cabe à mulher assumir a tarefa de construir seu lugar no universo da ficção e, portanto, da linguagem a partir de uma postura feminina que implica, necessariamente, entender-se e se manifestar como mulher, sem ressentimentos em relação ao sexo oposto. (WALKER, 2021, p. 27)

Há nos três poemas, a presença forte e sensível da mulher que se reinventa, se coloca no protagonismo e na ocupação dos seus espaços, no domínio dos seus corpos e em defesa dos seus ideais. Como, diria Nelly Novaes Coelho (1993), para além de poética, as viscerais experiências de vidas que exalam dos poemas, aqui trabalhados, estão encharcados de profundas e específicas experiências de mulheres. Acreditamos que os poemas trazem questões que em essência se metaforizam em sementes, pois anunciam a aurora de outros tempos à produção de autoria feminina e/ou à produção de mulheres-poetas que assumem espaços aparentemente comuns, mas que em sua essência trazem sentidos diversos e eloquentes. Para além do espaço de resistência política, sociocultural é, sobretudo, na linha existencial, ontológica que os poemas podem alçar voo numa mesma direção, uma linha tênue e, muitas vezes, invisível porque coexiste a sensibilidade de corpos de mulher, sua identidade poética, ora deusa, ora demônio; mas sempre carregada de vivências, transformadoras e capazes de rastejar, mas também, de levantar voos numa mesma proporção de leveza, simplicidade e retidão. São poemas que trazem linguagens de corpos específicos, que se conjugam e se encontram em memórias e sonhos, se unem para celebrar o espaço feminino em suas dimensões mais íntimas e profundas. Portanto, de espada em punho, bradamos todas com a lâmina afiada: poesia!

 

REFERÊNCIAS

CACAU, Patrícia; CORTEZÃO, Marta. I Tomo das bruxas: do ventre à vida. Juiz de fora, MG: editora Siano, 2022.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.

FERNANDES, Frederico Garcia. Corpo-memória e a poética da resistência: apontamentos sobre literatura e performance na América Latina. In: BARBOSA, Sidney; SILVA-REIS, Dennys. (Org.). Literatura e outras artes na América Latina. Campinas: Pontes, 2019. p. 295-322.

GIGLIOLI, Daniele. Crítica da Vítima. Tradução Pedro Fonseca. Editora Âyiné. Belo Horizonte/Veneza, 2016.

WALKER, Marli. Mulheres silenciadas e vozes esquecidas: três séculos de poesia feminina em Mato Grosso. Cuiabá: MT: Carlini & Caniato Editorial, 2021.

PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.



[1] Doutora em Estudos Literários/PPGEL-UNEMAT e, também, autora de poemas publicados na coletânea I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, 2022.

[2] Doutoranda em Estudos Literários/PPGEL-UNEMAT - bolsista CAPES/Edital 013 -Amazônia Legal.

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Elizabete Nascimento: Doutora em Estudos Literários, poeta, professora e mulher que sonha com equidade. Livros: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos. São Paulo: Paulinas (2012); Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá/MT: Carlini & Caniato (2019), Sinfonia de Letras: acordes literários com Dunga Rodrigues. Paraná: Appris/2021. Professora, DRE-Cáceres/Mato Grosso-Brasil.





Jocineide Maciel é Quilombola Pita Canudos, graduada em Letras, Mestre em Estudos Literários e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL/UNEMAT (2021). Experiência na área de Letras, ênfase em Literatura Brasileira; atua principalmente nos seguintes temas: literatura mato-grossense, historiografia literária, Literatura de Autoria Feminina, literatura e ensino, letramento literário, literatura afro-brasileiras e Poéticas orais. Membra fundadora (2017) do Coletivo de Mulheres Negras de Cáceres/MT.


Marta Cortezão é escritora e poeta. Possui publicações em antologias nacionais e internacionais. Livros de poesia publicados: “Banzeiro manso” (Porto de Lenha Editora, 2017), “Amazonidades; gesta das águas” (Penalux, 2021), Zine “Aljavas para Cupido” (2022) e, no prelo, “meu silêncio lambe tua orelha” (Toma Aí Um Poema Editora, (2023). Colunista da Revista Literária Voo Livre. Idealizadora das Tertúlias Virtuais (Prêmio APPERJ/2021), do blog Feminário Conexões e, em parceria com Patrícia Cacau, do Projeto Enluaradas.




Verônica Oliveira é educadora com formação em Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Participou da coletânea Palavra Russas (2011) e lançou seu primeiro livro de poesia Entre a Bruxa e o Dragão, em 2014. Participou durante a pandemia das coletâneas Conexões AtlânticasEcos do Nordeste e da antologia Mulheres, Afetos e Liberdade.




Sandra A. Santos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.

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