Mostrando postagens com marcador Margarida Montejano. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Margarida Montejano. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 24 de julho de 2023

AMOR E EROTISMO: A DUPLA CHAMA NAS PÁGINAS DE "É tudo ficção", "meu silêncio lambe a sua orelha" e "Fio de Prata", Por ISA CORGOSINHO

 

AMOR E EROTISMO: A DUPLA CHAMA NAS PÁGINAS DE 

É tudo ficção, meu silêncio lambe a sua orelha e Fio de Prata

POR ISA CORGOSINHO

 

Chegaram-me às mãos três livros das amigas poetas do projeto Enluaradas. É tudo ficção e Fio de prata aportaram matutinos quando as autoras Flavia Ferrari e Margarida Montejano estiveram em Brasília, em pleno verão, já o meu silêncio lambe a sua orelha, de Marta Cortezão, chegou marcando o final do outono.

Releio algumas passagens do livro A dupla chama: amor e erotismo, de Octavio Paz, para me acompanhar nesse pequeno artigo, que escrevo para nosso encontro em Campinas, marcado para o final de julho de 2023.  

Os livros das três autoras reforçam, na realidade sensível, que a poesia é o testemunho do mundo dos sentidos. Um testemunho que projeta sua veracidade nas imagens que se oferecem ao leitor como palpáveis, visíveis e audíveis.

O que nos ensina a poesia está no real ou na ilusão? Pergunta que permeia o livro É tudo ficção, de Flávia Ferrari. A ambivalência da resposta está na sustentável fusão de ver e crer. É na conjunção do ver e crer que está o segredo e os testemunhos da poesia a serem desvelados pelo leitor, pois aquilo que vemos na poesia não pode ser visto com nossos olhos da matéria, e sim com as janelas da alma, os olhos do espírito.

FUSÃO


Percebo as vidas soltas

Que deixam de ser invisíveis

Quando contemplo os pés descalços

__ Sempre os pés __

Ponto de apoio quando caminho

Há outro destino disponível que não a espera?

Penso no tempo e em sua medida

Tão legitimada e disseminada

Tão suscetível ao espanto

Há quase tudo por fazer

E tantos lamentos que não alimentam nem o minuto

 

Octavio Paz acerta quando diz que a experiência com a poesia é a mesma que experimentamos no sonho e no encontro erótico. Na poesia de Ferrari, marcadamente no capítulo 5. Entre paredes, tanto nos sonhos como no ato sexual o eu poético abraça fantasmas, ausências, reminiscências. 

      

O TAMANHO DAS COISAS


uma memória pode ser maior que o vento

e mesmo quando surge com todo o seu domínio

é ainda menor que o meu amor presente

 

o tecido que me envolve

e que agora se desmancha na fúria da sua luz

já nos embrulhou em nossas fugas

das histórias ruins que repartimos

e acatou os segredos que soubemos oferecer

 

esses pontos que foram se soltando

e que antes entrelaçavam as banalidades e as aventuras e o pacto

foram alterando toda a estrutura

tivemos que nos arrancar de nós

 

agora que há tão pouco aqui comigo

e mesmo tirando tudo o que persiste

eu não consigo me escapar

 

nem no momento de maior aflição

desejei não ter vivido nossa verdade

mesmo que jamais consiga fazer parar

 

prometo que não escreverei mais

assim diretamente

saber-me invasiva da sua nova  vida

agora me constrange

e me encerra aqui

neste ponto exato

de onde não haverá partida        

    

Embora nosso parceiro tenha corpo, nome e face, na sua realidade, precisamente no momento mais intenso do abraço, acontece a dispersão em ondas de sensações que inexoravelmente se dissipam. A pergunta que insiste em não se calar, está sempre ecoando pelas bocas dos apaixonados, porque guarda em si o mistério erótico:  quem é você? Não é possível obter a resposta, porque os sentidos são e não são deste mundo. É a poesia, por meio deles, que ergue uma ponte entre o ver e o crer. Por essa ponte transita a imaginação, por ela ganha corpo e os corpos se convertem em imagens.

A poesia de Marta Cortezão nos convida a tocar o impalpável e a escutar as ondas do silêncio cobrindo uma terra devastada pelos insones. O testemunho poético refrata, revela um outro mundo dentro deste, o mundo outro – alteridade – que é este mundo.  Os sentidos aqui trabalham, sem descuidar de seus poderes, como servidores da imaginação e nos incitam a ouvir o inaudito e ver o imperceptível.

Quem ri quando goza / é poesia / até quando prosa 

                                                                {Alice Ruiz}

desvãos

 

meu silêncio lambe tua orelha

e se arvora feito cobra

para infiltrar-te o veneno

 

meu silêncio se espicha

pelas frestas feito lagartixa

para roubar-te a fala

 

meu silêncio aflora

e ri que goza

quando lambe

quando cobra

quando se larga e atiça

para confundir-te as horas

e de olhos nos olhos

alimentar-te a prosa

com íntima poesia

 

Octavio Paz faz uma profícua relação entre erotismo e poesia. Segundo ele, o erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal. Os dois são compostos de uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – e é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação.

No livro meu silencio lambe a sua orelha, de Cortezão, encontramos as imagens recorrentes da chama vermelha do erotismo, transfigurada em linguagem.   

Eu não nasci rodeada de livros, e sim rodeada de palavras 

                                                              {Conceição Evaristo}

geossintaxe                    


com passos indecisos

percorro as sentenças

da língua que me devora

 

reviro os escaninhos

dos verbos obtusos

cuja geometria

adensa os advérbios

que florescem das pedras

 

meus sapatos sujos de pausas

deixam todas as pegadas

órfãs de sintaxe-delírio

 

onde guardei a palavra

com gosto de chuva?

 

onde minha língua

se entrelaçará na tua

para cópula ardente

de neologismos?

 

quando o sexo verbal

gozará metonímias

em teu corpo metáfora

afro afrodisíaco

Afrodite de palavras?

 

Na poesia de Cortezão ocorre a concreção daquilo que afirma Paz. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora, e a imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É, afirmativamente, a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora.  Observamos em sua poesia a imagem poética como um abraço de realidades opostas, os versos livres e a poesia concreta encenam a cópula de imagens e sons. Sua poesia erotiza a linguagem e o mundo, porque ela própria, em modus operandis, já é erotismo.

Diferente da mera sexualidade, o erotismo é uma metáfora do sexo animal, reafirmando o significado conotativo designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, uma invenção distinta dos termos que a compõe. Igualmente, a poesia já não aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comunicação prosaica do cotidiano como o erotismo, a reprodução. 

Os sentidos do amor e do erotismo também estão presentes no conto A metáfora do Buraco e a Água no Rosto, do livro Fio de prata, da escritora e poeta Margarida Montejano, do qual destacamos alguns fragmentos.

__ Caro amigo,

Você já teve a sensação de que está andando, ou parado e que, de repente, um buraco se abre e sua frente e você é simplesmente engolido por ele?

[...]

Água! Me dei conta que... minha boca, nariz e olhos estavam cheios de areia. Meu corpo sendo sacolejado por mãos delicadas. Mãos de mulher. Água sobre o meu rosto ela jogou.

__ Acorda! Acorda!

Disse a voz rouca e suave!

[...]

O perfume da mulher me inebriou a mente, a alma e, como a um sonho, as imagens se desvaneceram. Sensação agradável tomou-me.

Respiro. Olho meu ouvinte de olhos arregalados e pergunto:

Quem é esse ser de meia idade abobado que acorda? Sem nome e sem história? Sem memória e feliz com o que vê? Com o que sente?

Bem! A misteriosa mulher ajudou-me a levantar. Olhou-me nos olhos e como a um encantamento, me disse:

__ Eu sabia que um dia a gente iria se encontrar de novo! Que bom que você veio!

[...]

Tenho a sensação de que uma curva do tempo me engoliu e me devolveu para esta era. Me trouxe de volta.

__ E Ela? A mulher do perfume?

Perguntou-me ele:

Respondo de pronto:

Ela é a melhor parte de mim. A minha companheira! Minha alma gêmea. A mulher que acorda ao meu lado, dia após dia! Que me acalma e me toca com a serenidade que somente no céu eu poderia encontrar, eu poderia sentir! Ela me completa, mas... mas tem algo nesta história que eu ainda preciso entender.                   

 

O personagem vivencia uma experiência na qual o tempo se entreabre e nos deixa ver o outro lado. São instantes de conjunção entre o sujeito e o objeto, do eu sou e você é, do agora e do sempre, do mais além e do aqui. A imperiosa imagem que está presente no conto de Montejano é a do amor, na qual a sensação se une ao sentimento e ambas ao espírito. O personagem experimenta um alto nível de estranhamento, uma epifania: está fora de si, lançado diante da pessoa amada -- experiência da volta à origem, a esse lugar que não está no espaço e que é a nossa pátria original. A pessoa amada é a um só tempo a terra incógnita e a casa natal; a desconhecida e a reconhecida.

Ao citar um fragmento de Hegel sobre o amor, Octavio Paz ressalta que o grande e trágico paradoxo do sentimento amoroso consiste em que os amantes não podem se separar a não ser na medida que são mortais ou quando refletem sobre a possibilidade de morrer.

No conto, a morte é a força da gravidade do amor. Ao cair no buraco, o personagem encena o impulso amoroso que nos arranca da terra e do aqui; a consciência da morte nos faz compreender que somos mortais, feitos de terra e a ela temos de voltar. A unidade compacta se rompe em dois e o tempo reaparece – é um grande buraco que nos engole. A dupla face da sexualidade reaparece no amor: o sentimento intenso da vida é indistinguível do sentimento não menos poderoso da extinção do apetite vital; a subida é queda, e a extrema tensão, distensão. Dessa forma, a fusão total implica a aceitação da morte.

Ao seu atento interlocutor, o narrador solitário ensina que amor é vida plena, unida a si própria, o contrário da separação. Ao sentir o perfume e as mãos da amada em estado epifânico, ele reencontra o abraço carnal. A união do casal se faz sentimento e este, por sua vez, se transforma em consciência: o amor é o descobrimento da unidade da vida. 

O narrador, o mar e a areia nos permitem a reflexão poética de que somos tempo, nada é durável.  O amor não vence a morte, mas a integra na vida. A morte da pessoa amada confirma nossa condenação: viver é um contínuo separar-se, mas, paradoxalmente, na morte cessam o tempo e a separação: regressamos à indistinção do princípio, a esse estado da cópula carnal.  O amor é o regresso à morte, ao lugar de reunião. 

Os poemas e conto aqui trabalhados, neste breve texto, estão em fina sintonia com importantes passagens do livro de Octavio Paz, principalmente em consonância com a magnífica imagem do fogo, elaborada por ele: a chama é a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor. Erotismo e amor: a dupla chama da vida.         

       

Referências bibliográficas:

CORTEZÃO, Marta. Meu silêncio lambe a tua orelha. Curitiba: Eu –i, 2023.

FERRARI, Flavia. É tudo ficção. Curitiba: Eu-i, 2023.

MONTEJANO. Margarida. Fio de Prata. São Paulo: Scenarium, 2022.

PAZ, Octavio. A dupla chama – amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.   

☆_____________________☆_____________________☆

Para adquirir os livros, entre em contanto diretamente com as autoras Flavia Ferrari, Marta Cortezão e Margarida Mntejano.

☆_____________________☆_____________________☆



Isa Corgosinho é de Brasília/DF, professora universitária aposentada, poeta. Participou de várias Coletâneas, entre elas: Coletânea enluaradas (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Ciranda de Deusas I e II (Enluaradas Selo Editorial, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal 2021); Livro Memórias da pele, Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021.

sábado, 21 de janeiro de 2023

LIVROS & ENCANTAMENTOS: FIO DE PRATA, DE MARGARIDA MONTEJANO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/09

DESFIANDO  REMINISCÊNCIAS, EPIFANIAS E METÁFORAS

POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Sociedade distópica em função da pandemia da Covid-19, isolamento social por conta do coronavírus nos últimos dois anos, leva as mulheres que escrevem a se projetar com seus escritos nos mais variados gêneros. Em múltiplas linguagens dão vozes à potência feminina que dá um basta na violência cotidiana. Nesse curto período, estamos escrevendo sobre condição social, econômica, educacional, moda, comportamento, opressão, submissão, corpos, violência, política. Nada nos detém porque, enquanto reescrevemos nossos textos, damos novo enfoque àqueles que alienam de nossa condição.

Mulheres potentes em fusão por um mundo melhor. Foi nesse contexto que conheci Margarida Montejano e sua produção literária que traz traços de suas vivências como educadora, apresentadora do Canal N’outras Palavras, mãe, amiga, esposa. enfim, uma sobrecarga de papeis a que muitas de nós estamos expostas. E, justamente, por isso vamos nos apoiar e nos ler.

Margarida Montejano -Lançamento do livro Fio de Prata
[Foto arquivo pessoal da autora]

Em Fio de Prata, seu primeiro livro de contos, Margarida Montejano mostra que veio contribuir dando vez e voz a suas personagens femininas, para isso se apoia em alguns recursos estilísticos que se destacam: a reminiscência, a epifania e a metáfora. De fato uma maneira de aprofundar sua prosa poética.

 Na filosofia, Platão recorre à anamnese, à lembrança com pouca certeza. Nessa recordação vaga – reminiscência – é possível perceber coisas que ficaram na memória inconscientemente. Com o conto Reminiscências? Talvez, que abre o livro, percebe-se o quanto isso vem à tona. Quantas vidas existem e resistem em nós, mulheres? Múltiplas somos que “esse corpo estrangeiro” quando se depara na forma física “alta, negra, cabelos longos, pele quase negra”, “um corpo estranho e um cérebro em desalinho”, “vestido longo como num filme antigo”, natural o biotipo incomodar? Quando se vive no país em que vidas negras parecem pouco importar, isso não é à toa, vive-se livre num filme em busca das raízes que nos constituem. E nos vemos cara a cara com A Mulher do Retrato, a história de Inês/Inezita é recheada de romance, de perdas e ganhos, de se reinventar a cada amanhecer. Na primeira parte – A noiva do pescador – Inezita e Julinho vivem a saga de construir família e o sustento dela, o Condor passa, lutam até o luto. Na segunda parte – A Medalha da Sorte – Inezita, viúva, beija a medalhinha de Nossa Senhora da Conceição, os ventos e os rumos mudam, chega Naldo. E na terceira parte – A Mulher, o mar e vida que segue – vemos Naldo morrer à deriva no mar, após enfrentar duas árduas ressacas: a do mar e a da bebida. Apesar das dificuldades enfrentadas, na sua simplicidade, a mulher vivia feliz. Porque o tempo todo foi ela o arrimo que a todos sustentou, mesmo “com os olhos marejados de preocupação e saudade, trabalhava e trabalhava muito. Costurava, cozinhava, cuidava dos filhos”. Exatamente por isso, D. Inês enfrentou as marés e seguiu altiva e agradecida.

[Foto do arquivo pessoal da autora]

A seguir, já anunciada no título, está A Epifania Feminina. Como Clarice Lispector, a autora explora a epifania – o(s) momento(s) de revelação. Essa característica literária nunca anda sozinha, vem acompanhada de questões existenciais: Nascer de novo? Não como menina! Repetir a mesma história? Nem pensar nessa falta de sorte. Qual o seu lugar na família numerosa? O clube do Bolinha ordena, o clube da Luluzinha executa. Deus dará, a fé ilimitada da avó determina, assim tem sido. Mas a garota de 10 anos questiona quando vê que os irmãos e primos têm tratamento diferenciado e privilégios. Sente-se arrasada quando o pai diz: “Como diz o otro, o bão e o que dá sorte é bater na nossa porta um menino pedindo anobão. Se vié uma menina, aí o ano será ruim, não será anobão”. Que desaforo! Mas menina conta com o apoio, a sensibilidade e coragem da mãe para livrar da triste sina, não ficará relegada a segundo plano enquanto os meninos seguem maiorais pelo anobão. Bandeira de luta e resistência já desde cedo o feminismo floresce.

Outras epifanias surgem em A Mão e o Espelho quando a jovem funcionária do banco fala que pratica quiromancia. Um dos colegas fica animado e põe sua mão para ela ler. A moça dá trela, pois é boa observadora de pessoas e com base nas atitudes delas “revela” as previsões futuras. Tempos depois, em outra cidade, já com outra profissão, “as revelações” se confirmaram para surpresa de Márcia, uma espécie de espelho que filtra os desejos do outro, da outra, de quem quer que seja, pois reflete também a si mesma, pois quem é que não quer ter uma vida repleta de realizações? Linhas da vida, fios entrelaçados pela escuta, o melhor dos autocuidados em nosso cotidiano tão banal, no entanto revelador se atentarmos aos detalhes.

Para adquirir exemplares, fale com Margarida Montejano

Finalmente as metáforas retratam várias faces. Hora de olhar as analogias, as comparações entre uma coisa e outra, qual a similaridade entre ambas? Nos contos seguintes, percebo que as personagens estão em busca do sentido da vida, partem para uma reavaliação existencial. Foi desse modo que enxerguei A Metáfora do Buraco e a Água no Rosto. O homem, em busca de sua alma gêmea, caminha sedento pelo deserto. E do nada é “engolido pelo buraco”. Perde a noção espacial e temporal. Miragem, passagem? Sente o frescor do oásis, em “fragmentos de sonho” vê a si mesmo bem mais velho, “a mulher misteriosa” nas “dunas centenárias”. Perdeu o senso ao deixar de viver o inusitado? Afinal o que é a vida? Miragem, passagem? Melhor é água no rosto, acordar para vida e dela desfrutar, ouvir a intuição, porque, às vezes, procuramos por algo bem longe de nossa vista quando o objeto de nossa fixação está abaixo de nosso nariz.

Na narrativa Se Não Entender, Pergunte!, o universo da educação se faz presente. A princípio parece ser mais um conto daqueles em que o opressor da pedagogia do oprimido vence. No entanto, Paulo Freire nos educa para uma educação que liberta então vem o revés. Somos sujeitos históricos, oras! Enquanto uma criança mantiver sua curiosidade acesa, que venham as perguntas! Já as respostas podemos encontrá-las juntos! Criatividade exige aprendizagem cooperativa. Isso se dá com interação das partes envolvidas: professor, estudante, sociedade inseridos num determinado contexto gerando uma pedagogia da esperança, metáfora que indica novas leituras, novos modelos de educar, porque os tempos são outros. Ter consciência desse processo é humanizar a nós mesmos.

[Foto arquivo pessoal da autora]

Por fim, o fechamento do livro com O Fio de Prata, canal que transmite energias vitais. Dona Maria Teresa e Nona são as anfitriãs da casa sem espelho. Ali compartilham histórias e ausência de vaidades. Em contraste com a convidada que se fixa na imagem de Narciso, de poemas, de personagens literárias, incluindo seus autores como forma de manter o corpo-matéria vibrando. Vibração esta que vem do fio de prata, pois nele está a força divina que mantém o corpo ligado ao espírito. Nesta metáfora bíblica, Margarida Montejano nos enriquece com várias outras imagens que são espelhadas e espalhadas assim como deve ser o universo literário que nos reflete, ora é susto, ora é vislumbre, ora totalmente espelho.

Após a leitura dos 7 contos, comovida, percebo que faço parte desse mulherio em movimento. Assim são as mulheres que redescobrem dentro de si mesmas verdades intrínsecas e se movem sem a validação de outros olhares, agora encontramos em nós próprias representatividade. Ressalto, ainda, que foi apenas um recorte desta leitora e que outras análises são possíveis. Encerro lembrando de um dito popular que diz que recordar é viver. Diria mais, aprender é recordar, seja conhecimento e aprendizagem por reminiscência, epifania ou metáfora. Quando se toma consciência do quanto certas situações ficcionais se aproximam de situações cotidianas experimentadas por nós, tais fragmentos de vivências nos fortalecem, estamos unidas pelo fio de prata que herdamos da literatura de Margarida Montejano, pois cada qual, a sua maneira, quer encontrar o fio condutor de sua existência.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta, escritora e professora

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡


Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).



Margarida Montejano, mora em Paulínia/SP. Supervisora Educacional na Rede Municipal de Campinas, Poeta, Pedagoga, Ms. em Educação PUC Campinas, Dra. em Educação pela Unicamp; Pesquisadora do Loed/Unicamp e Produtora do Canal Literário – N’outras Palavras – histórias que inspiram, no Youtube. Livro solo Fio de Prata (Editora Scenarium, 2022).

 


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM MARGARIDA MONTEJANO, POR GABRIELA LAGES VELOSO

 


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |03

ENTREVISTA COM MARGARIDA MONTEJANO

Por Gabriela Lages Veloso

De acordo com a escritora chilena Isabel Allende, “as mulheres foram silenciadas por séculos e só agora, com as conquistas do feminismo e as inevitáveis ​​mudanças na sociedade, elas começam a receber alguma consideração. Custa a uma mulher três vezes mais do que a um homem obter metade do reconhecimento. No meu caso, isso ficou evidente, especialmente no Chile. Ninguém é profeta em sua terra, pior se for mulher”. Diante disso, a literatura manifesta-se como uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber a escritora Margarida Montejano, cujos versos e narrativas são repletos de sensibilidade, reflexão e sororidade.

ENTREVISTA COM MARGARIDA MONTEJANO: 

Arquivo pessoal da autora

Margarida Montejano é natural de Mogi Guaçu (SP), mas reside em Paulínia (SP). Atualmente a escritora e poeta é Supervisora Educacional na Rede Municipal de Campinas. Cursou a graduação em Pedagogia e o Mestrado em Educação, na PUC Campinas, e, o Doutorado em Educação, na Unicamp. Além disso, é Pesquisadora do Loed/Unicamp, e, Produtora do Canal Literário N’outras Palavras – histórias que inspiram, no Youtube. Em 2021, foi Co-Organizadora do livro Cotidiano, Poesia e Resistência, publicado pela Editora Siano. Em 2022, publicou o seu primeiro livro, intitulado Fio de Prata, pela Scenarium Livros Artesanais (SP), e, em seguida, o livro  Pérolas do Caminho, na Amazon.

Como você adentrou no mundo das letras?

Gabriela, querida. Antes de dialogar com você nesta e nas outras provocações deste maravilhoso espaço literário, quero agradecer o convite e desejar a você e ao Feminário Conexões, muitos êxitos! Que sua coluna atinja o objetivo maior que é o de ser lida,  ressignificada e compartilhada com inúmeras mulheres do Brasil e do mundo. Sobre como adentrei no mundo das letras, penso que as letras sempre estiveram em mim, desde a infância, pelos olhos de minha mãe, primeira leitora e contadora de histórias. Eu era uma ouvinte atenta e curiosa, e fazia perguntas que a ela, talvez,  por não ter as respostas,  me pedia para ouvir até o fim  porque lá, no final, eu entenderia. Não funcionava bem assim, mas ela tentava e conseguia prender minha atenção. Contudo, posso dizer que, foi na adolescência, período em que, por influência de um professor de literatura, mergulhei literalmente nos livros.  Devorava os clássicos da biblioteca da escola municipal e, não satisfeita, na época, me inscrevi num clube do livro e recebia livros de bolso, com grandes títulos, pelo correio. Foi uma época mágica, pois tive contato com obras nacionais e internacionais, dentre elas algumas de Machado de Assis, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Agatha Christie, Julio Verne,  Gabriel Garcia Marques. Dele, faço questão de citar Cem Anos de Solidão, lido em cinco dias. Um livro que me marcou muito, pois trago comigo os detalhes de Macondo, cidade fictícia e a riqueza do real e do imaginário, retratada pelo autor na existência e especificidades humanas, presentes nas várias gerações da família Buendia.

A sua formação acadêmica, na área de educação, tem alguma influência na sua escrita literária?

Sim, com toda certeza. Minha formação acadêmica sempre esteve vinculada à educação pública. Tive o privilégio de receber uma bolsa de estudos no Mestrado e realizar meu doutorado numa universidade pública. Penso que a base político-educacional, que recebi em minha formação,  possibilitou-me estar mais atenta à leitura crítica da realidade e, por conta disso, escrever com os pés fincados nos contextos político e social. E, ao mesmo tempo, considerando a licença poética e criativa que a literatura me permite, criar, sonhar e esperançar por tempos melhores, como nos ensinou Paulo Freire. Não consigo escrever descolada da realidade sócio-político-econômica que produz e se alimenta das desigualdades, miséria, violência e opressão. Neste sentido, acredito que, pela educação, com bases numa formação humana que promova o gosto pela leitura e, com isso, a leitura crítica da realidade, será possível construirmos um mundo mais fraterno, mais humanizado e sensível no enfrentamento dos problemas sociais.

Por que você escreve?

Eu diria que escrevo para me libertar de todas as amarras culturais que carrego comigo. A escrita feminina e a esperança são temas que permeiam minhas produções, sejam na poesia ou nos contos. Penso que minha escrita retrata as violências praticadas contra os oprimidos, de um modo geral. Contudo, mais especificamente, contra as centenas de milhares de mulheres que sofreram e sofrem com a violência e o preconceito causados pelo machismo estrutural, presente nas sociedades e que precisam ser enfrentados e combatidos. A escrita é uma ferramenta extremamente necessária e importante para melhorar a elaboração das ideias, da capacidade argumentativa, oralidade e autonomia da pessoa e deve ser estimulada a todos, desde a infância.

Quais escritoras(es) te motivam a continuar sua carreira literária? 

São muitas escritoras maravilhosas, que me motivaram e motivam, quando as leio e as releio, vejo o quanto eu tenho a aprender com elas!  Interessante que suas escritas me marcaram como tatuagem. Fazem parte de meus poros, de minha pele, de minha essência. De Clarice Lispector, A Hora da estrela, quanta sabedoria na reflexão sobre a vida e a morte! De Lygia Fagundes Telles, a Ciranda de Pedra. Eu era adolescente ainda, quando me encantei com a menina Virgínia, na luta por ser reconhecida! De Adélia Prado, me vem à mente o poema Casamento e a lembrança de que "Coisas prateadas espocam..." Muita riqueza em suas construções poéticas! De Cecília Meireles, o Retrato, muito forte e questionador, me toca lá no fundo:  "Em que espelho ficou perdida a minha face?".  De Cora Coralina, o poema Das Pedras, quanta aprendizagem em seus versos duros e realísticos. Dói e ensina que viver é lutar. Elisa Lucinda, Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo, em luta pela defesa da vida das mulheres e de tantos outros irmãos do caminho. Vidas Negras me importam muito! E, como não poderia deixar de citar, as obras de Isabel Allende me estimulam a crer que é possível outro mundo diferente para nós mulheres, destacando, de sua obra, Mulheres de Minha Alma. De Clarissa Pinkola Estés, Mulheres que correm com os lobos e Angela Davis, é claro, com Mulheres, Cultura e Política. Penso que as escritoras citadas e tantas outras escritoras contemporâneas me convocam à escrita pela história de luta feminina e me lembram, nos lembram, em suas produções, de não esquecermos de nosso valor roubado, sonegado, negado e que a luta deve ser constante pelo lugar social reconhecido a que temos direito. Valiosas contribuições que me ajudaram e me ajudam a pensar e a sonhar com um mundo mais humano, fraterno e solidário para conosco e com todos os outros.

Conte-nos sobre o seu primeiro livro, Fio de Prata (2022). Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo?

Fio de Prata é, como costumo dizer, um livro-presente, pois tem o encanto das ilustrações confeccionadas pelo amigo e artista plástico, Ruy Assumpção Filho exclusivamente para os contos, iluminado pelos prefácios e posfácios e pelo feitio artesanal da Scenarium livros artesanais, sendo em sua forma costurado com uma fita prateada que se prolonga como um marcador  de páginas. Dá para imaginar? É lindo, não deixe de conhecê-lo! Fio de Prata traz, no bojo dos 07 contos, memórias reais e ficcionais projetadas pela literatura em retratos da realidade e da existência, apresentando a mulher como protagonista em sua luta cotidiana pela  integridade sócio-econômica e política de sua presença no mundo. Posso dizer que o processo da escrita nasceu sem pretensão literária, contudo fluiu com o desejo de se fazer registro para não se perder as histórias, transformando-se em contos. Neste sentido, bebeu conteúdos em vivências próprias e em histórias/causos colhidos em encontros com outras mulheres que se entregaram à contação de memórias, considerando não perdê-las no tempo. Como já sinalizado, Fio de Prata é permeado pela presença do feminino no protagonismo da menina, da moça, da mulher madura e idosa, todas apresentando seu aporte às lutas na denúncia e no anúncio de novas formas de enfrentamento do machismo estrutural na atualidade. E, se alguém se interessar em adquirir o livro Fio de Prata, na versão física, poderá fazer os pedidos diretamente com a editora Scenarium Livros Artesanais, ou, na versão digital, no site da Amazon.

Além de escritora de contos, você também é poeta. Na sua opinião, existe alguma diferença entre a escrita de prosa e poesia?

Sim, pois ambas as categorias têm forma própria. Na poesia, há ritmos, rimas, métricas... Na prosa não há versos e nem quebra de linhas, contudo em alguns de meus contos subverto a regra, pois, se na estrutura textual meu narrador pensar alto, não hesitarei em inserir um verso em meio à narrativa.

Você pretende lançar também um livro de poesia? 

Sim. Já está sendo preparada, para o ano de 2023, uma coletânea de poemas, reunindo temáticas variadas, contudo todas em defesa da vida e da esperança.

Comente sobre os seus projetos na área da literatura e cultura, como, por exemplo, o Canal N'outras Palavras: histórias que inspiram

Gabriela, além da leitura e da escrita que têm tomado conta de mim nos últimos tempos, outra ação que me é muito cara é a produção de conteúdo significativo à atualidade para o Canal do Youtube, N'outras Palavras - histórias que inspiram.  Trata-se de um espaço cultural, sociopolítico e educativo, que nasceu no início de 2020, na época do início da Pandemia da Covid-19. O objetivo primeiro do canal era produzir leituras de contos, fábulas, poesias às pessoas que se encontravam em isolamento social, em especial às que estavam internadas em clínicas de recuperação, asilos e, mesmo em casa, longe dos familiares. Em 2021, o Canal intensificou sua produção e foram criados novos quadros, dentre eles o "Fala Poeta", voltado para a apresentação de poemas enviados ao Canal, com a leitura pelo próprio autor; o quadro "Janela Cultural", onde o autor apresenta seu trabalho destacando a sua atuação no universos literário e artístico;  Lives com convidados que tratam temáticas da atualidade e como  um  espaço de lançamento de livros. No ano de 2022, mantivemos os quadros e criamos mais uma possibilidade de produção de conteúdo, o quadro "Na lata", no qual os convidados são entrevistados com questões atuais e que transitam pelas várias áreas do conhecimento, em especial,  as de cunho filosófico-político e culturais. É importante realçar que os conteúdos apresentados no canal dialogam com a música e a arte de modo geral e o objetivo deste espaço de comunicação é apresentar pessoas que produzem educação e cultura na perspectiva da formação humana.

Qual é a importância da literatura?

Quando penso na importância da literatura me vem à mente o poema de Mário Quintana, "Quem faz um poema, salva um afogado". Assim vejo e sinto a literatura. Sua prática representa possibilidades de ampliação do olhar e de perspectiva do sujeito sobre a realidade. De enriquecimento do vocabulário, de elaboração de ideias e de produção escrita, assim como para o desenvolvimento da autonomia e da criatividade. Neste sentido, a presença da leitura desde a infância, ao meu ver, possibilita formar gerações de adultos mais sensíveis e humanizados no desenvolvimento das relações sociais, da ciência, da arte e nos cuidados consigo, com o outro e com o meio ambiente.

Como convidada da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

Minha mensagem e desejo para as novas gerações de meninas, moças e mulheres: escrevam. Leiam muito e, em especial, literatura escrita por mulheres. Deixem registradas as experiências de vocês e participem de coletivos femininos. Não desanimem quando tudo parecer aterrador. Lembrem-se das mulheres que as antecederam e se fortaleçam nas experiências de suas vidas, pois somos o que somos por conta delas e das lutas que elas travaram.


Contatos da escritora:

Instagram: @montejanomargarida

Facebook: //www.facebook.com/margarida.montejano

Youtube: //youtube.com/c/NoutrasPalavras

☆_____________________☆_____________________☆

Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru e do Feminário Conexões, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colabora com coletâneas e revistas nacionais e internacionais. Em 2023, organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO, POR MARGARIDA MONTEJANO

 


                 CONTE-ME UM CONTO|06

A   M Ã O   E   O   E S P E L H O

Por Margarida Montejano

Era uma sexta-feira comum numa cidadezinha pacata do interior de São Paulo.  Éramos jovens funcionários de um banco, na casa dos 20 anos. Eu, Márcia e meu amigo Jorge sentados em guichês coligados, esperando os clientes do banco chegarem.

Sim. Trabalhávamos como caixas bancários, naquele tempo em que não havia caixas eletrônicos e o atendimento era mecânico e humano simultaneamente, tínhamos que executar as operações monetárias e, ao mesmo tempo, agradar o cliente, pois era essa a política para se manter no emprego.  Pois bem. Havia alguns dias no mês em que o trabalho era raro. Tínhamos que nos cuidar para não cochilar.

Num desses dias, apesar de me mostrar sempre animada e criativa para passar o tempo, estava meio entediada, pois as horas não passavam. Foi então que meu colega Jorge provoca, dizendo: 

─ Não é você que sempre arranja um jeito de nos animar? Qual talento usará hoje para que o tempo passe depressa?

Pensei um pouco e, como adoro ser desafiada, fui logo dizendo:

─ Me dê tua mão!

─ Por quê? Vai me pedir em casamento?

Olhei paro os olhos dele e falei sério:

─ Jorge. Dentre os talentos que tenho, há um que você não conhece. Eu leio mãos. Pratico quiromancia.

Ele olhou-me incrédulo, duvidando. Foi então que o desafiei:

Vamos! Me dê sua mão esquerda!

Ele, em meio àquela calmaria, olhou e viu que não vinha ninguém em direção aos caixas. Esticou o braço e estendeu a mão.

Quero ver isso!

Para comprar o livro, clique AQUI!

Foi aí que tudo começou. Como alguém que entendia do assunto, fui logo lançando meu olhar na direção das linhas daquela mão jovem e magrela, que se encontrava, naquele momento, úmida de suor. Estava meu companheiro nervoso e eu me divertindo um bocado.

Anda, Márcia! Por que essa demora? Dizia meu colega aflito com receio que chegasse algum cliente.

Séria, como se visse algo nas linhas de sua mão, relatei a ele o texto que em minha mente se formava:

─ Jorge. Você irá se transferir de agência… será promovido em breve e, após formar-se na faculdade, se casará com uma jovem que não é a sua atual namorada. Pronto.

Importante dizer que as palavras descritas a ele eram uma projeção possível, pois eu o conhecia há um bom tempo: ele era um bom funcionário, dedicado e com potencial para liderança, logo uma promoção teria muita chance de acontecer. A transferência, uma possibilidade real para todos nós que lá trabalhávamos, também era fato. Muito bem. Com relação ao futuro afetivo de Jorge, eu também já tinha os dados. Ele estava terminando o curso superior e o namoro dele, pelo que ele mesmo contava, ia de mal a pior.

Conclusão. Brinquei com Jorge e fiz a previsão de seu futuro considerando as possibilidades.

Ele ficou pensativo, mas logo os clientes vieram e tratamos de esquecer essa brincadeira de desocupados. Seguimos por cerca de uns três meses trabalhando, levando a sério as atividades a nós confiadas e nos ocupando de passar o tempo com criatividade, o tempo que nos rodeava.

Jorge, um belo dia me chama e diz:  

Márcia! Não é que você adivinhou mesmo! Recebi uma promoção e terei de me mudar de cidade.

Que bacana, amigo! Eu disse surpresa! 

Fico feliz por você!

E assim Jorge foi para outra cidade, outra agência e eu fiquei sem meu companheiro de trabalho e de assuntos aleatórios.

Não é que, em uma manhã, eu ainda não havia assumido os trabalhos no caixa, pois faltavam 50 minutos para a agência bancária abrir, uma funcionária me chama e avisa que havia uma mulher à minha procura, dizendo-se ser a mãe de Jorge. A dona Odete.

Fui, é claro, atendê-la, como fazia com todos que me procuravam na agência. Ofereci a ela um café e já embalei na pergunta:

Bom dia, dona Odete! Em que posso ajudá-la?
Ela pediu para falar comigo em particular. Levei-a até a cozinha que estava vazia naquele momento.

─ Márcia! Leia minha mão? Disse-me ela de forma direta.

 O quê? Engasguei com o café. Não estou entendendo!

 Márcia, você leu a mão de meu filho e você acertou. Está acontecendo tudo o que você viu nas mãos dele. Ele se mudou de agência e cidade, foi promovido a gerente e você acredita que ele rompeu com a Cris e está super apaixonado por Paula?

Naquele momento lembrei-me de minha travessura lendo, de forma inconsequente, as mãos de Jorge. Tremi nas bases. Respirei e expliquei a ela que eram coincidências, pois eu havia brincado com Jorge. Que não lia mãos.

Ela foi logo pegando em minhas mãos e oferecendo as suas, implorando para que eu as lesse.

Dona Odete. Ouça-me. Eu brinquei com Jorge. Não leio mãos, repeti:

Ela com os olhos cheios de lágrimas me implorou. 

Moça. Por favor! Diga-me alguma coisa, pelo menos! Eu estou a um passo de explodir, de fazer uma loucura! 

Estava desesperada, com os olhos tomados de lágrimas. Era visível a necessidade daquela mulher de ser ouvida. De receber atenção. De um ombro, um colo, uma palavra!  Sentamo-nos no banco daquela cozinha gelada como todo ambiente bancário, peguei as duas mãos da senhora aflita à minha frente, e disse:

Fala-me: o que está acontecendo? Rendi-me ao pedido.

E ela falou da traição e separação do marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de desistir de tudo. 

Ela desabou ali e contou-me de suas dores. A mim, uma mulher desconhecida.

Ouvi com atenção cada palavra. Ela chorou e eu chorei junto com ela. Quando ela parecia mais calma e recomposta, eu disse:

Odete. Vou lhe chamar assim. Não preciso ler tua mão. Você vai vencer essa tormenta, porque você é mulher e, por isso, é forte. Vai enfrentar a adolescência dos filhos com coragem, porque você é mãe e os ama e vai ainda ser muito feliz. É esse o seu desejo e também porque o mundo não acaba quando um casamento não dá certo. Creia nisso! Acredita. Tudo se encaminhará! 

Ela secou os olhos vermelhos com as mãos. Agradeceu-me por ouvi-la e saiu. 

Naquele dia, a agência lotou de clientes e eu mal tive tempo de pensar no que havia se passado na cozinha. De organizar as ideias. De respirar, de entender o ocorrido naquela manhã.

Passou o tempo, desliguei-me do banco, formei-me professora, casei-me e fui morar no Rio de Janeiro. 

Um belo dia, em visita à cidade natal, estava eu na farmácia São José, sendo atendida por um balconista, quando, dentre outros clientes que também esperavam no balcão, uma mulher reconhece minha voz e, sem demora, me aborda!

Moça. Dá licença. Você não é a Márcia que trabalhava no banco com o Jorge, meu filho? 

Para comprar o livro, clique AQUI.

Eu gaguejo, olho nos olhos dela e a reconheço. Estava mais envelhecida, mas ainda muito bonita. A senhora é a…

Odete. Sim, mãe do Jorge! 

Enquanto o balconista providencia minha compra, converso com ela:

Olá Odete! Prazer em vê-la! Eu disse meio espantada.

Como a senhora está? E seu filho? Eu gostava muito de trabalhar com ele!

Ela esperou eu terminar de ser atendida, puxou-me pelo braço num canto da farmácia e foi logo dizendo:

Nossa, menina! Como eu a procurei! Muito obrigada! Preciso dizer que tudo o que você falou para mim, naquela cozinha, aconteceu! 

Emocionada pegou minhas mãos e apertou-as como se quisesse transpor a mim sua energia. Sua gratidão.

Aos poucos fui me desvencilhando das mãos da bela senhora e fiquei por uns segundos olhando-a. Um tempo de um raio ou de uma eternidade durou a cena. Só sei que foi o suficiente para lembrar-me de tudo o que aconteceu e pude dizer a ela, com detalhes, o que senti naquela manhã no banco.

Dona Odete. Naquele dia eu não fiz a leitura de sua mão. Eu não podia atender seu pedido, porque seria imprudente fazer aquilo. Mas, eu fiz a leitura das minhas mãos, das nossas mãos. 

Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos, nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando nos damos as mãos!

Ela me olhava atenta e eu respirei fundo e continuei:

 Quanto às palavras ditas naquele dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia e repetia em voz alta, eram os seus desejos.

Sou também grata por aquele momento, Odete! Aprendi muito. Boa sorte a você querida!

Sequei meus olhos com uma sensação estranha, mas feliz. Me despedi dela e saí da farmácia com o espelho na mão, o qual eu acabara de comprar.

(Margarida Montejano, in Fio de Prata, 2022)


Feminário Conexões, o blog que conecta você!

EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

  Clique na imagem e acesse o Edital II Tomo-2024 CHAMADA PARA O EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS: CORPO & MEMÓRIA O Coletivo Enluar...