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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR JOCINEIDE MACIEL

Clique na imagem e baixe o I Tomo das Bruxas gratuitamente
 

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO NO I TOMO DAS BRUXAS


POR JOCINEIDE MACIEL


O livro I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, organizado por Marta Cortezão & Patrícia Cacau, é composto por três partes que relacionam às três condições necessárias para a liberdade: meu Corpo, minhas normas, meu Templo Sagrado; Dos Silêncios que ardem no fogo das injustiças e dos Prodígios da Palavra; Da chama Poética que abrasa o ventre Divino das Bruxas.

Ao percorrer a primeira parte da obra, o leitor poderá encontrar diversos eus poemáticos que se embrenham na perspectiva histórica sobre o lugar que a mulher ocupou/ocupa ao longo da história da humanidade, principalmente as mulheres que ousaram sonhar, pensar, e acima de tudo assumiram a autonomia dos seus corpos e de suas vozes “negra índia branca amarela/ sou mulher!/ [...] não me julgue pelo que vê/ ou pelo que tenho na bolsa/ respeite minha identidade biológica ou social/ esse lugar é meu e dele não abro mão!” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p.43).

O encadeamento dos poemas que compõem a segunda parte da obra permitirá o vislumbre da escrita feminina num olhar que transcende: “as obrigações imposta socialmente a mulher” e alcança a magnitude da alma humana, em um envolvente jogo de palavras em que o fazer poético e o existir se metaforiza “[...] Quando eu começar a escrever,/ a mulher que, até um dia,/ pelas janelas olhava,/ abrirá as portas que nunca/ lhes deveriam ter sido fechadas,/ E será, na vida, tudo aquilo/ que um dia havia desejado.” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 105).

A última parte do livro finaliza a grande roda, onde cada uma e todas têm o seu lugar, onde os corpos bailam aquecidos em volta da fogueira que elas acenderam para clarear os caminhos e as noites escuras, nos gritos eufóricos por liberdade de expressão, elas se fortalecem na compreensão de que as bruxas nunca andam sós, mas são povoadas por muitas, com diversas paragens, espaços em que a escrita é a única e necessária poção “[...] é tempo de origens/ e coreográficas travessias/ despojadas da carne/ expõe-se às fibras/ e a nada mais” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 192).

Destacamos a escrita da poeta, professora, doutora, crítica literária e pesquisadora Elizabete de Nascimento, que nessa coletânea nos agracia com dois poemas intitulados: Promessas do meu Patoá e Essa miserável, uma dobradinha perfeita, que repercute dois pontos essenciais na produção dessa obra de forma geral. No primeiro poema, compreendemos que a vida e a poesia são metaforizados pelo próprio sangue a correr na veia: “[...] Sangue, música torrencial dessa vida dissoluta, minha essência./ Você! Ah, você!?/ Você é minha melhor poesia,/ é quem sustenta as missivas da minha biografia”. (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 132) e o segundo reúne a força de todas as escritoras que se lançam à escrita, e que em suas condições de poetas anseiam pelo reencantamento do mundo: “[...] Essa miserável, que dá boca e orelha ao papel, que torna público o impublicável/ Ah! Essa miserável, a poeta, ainda tiro-a do anonimato e entrego-a à forca” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 133).

Que esse meu eco de leitura encontre com os ecos de outros leitores e promovam um alarde literário a fim de fortalecer, ainda mais, a escrita feminina contemporânea.

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Referência bibliográfica:

CORTEZÃO, Marta; CACAU, Patrícia (Org.). I Tomo das bruxas: Do Ventre a Vida. Juiz de Fora, MG: Editora Siano, 2022.

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Jocineide Catarina Maciel de Souza é Quilombola Pita Canudos, possui graduação em Letras (2009) e Mestrado em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2014). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL/UNEMAT (2021). Componente do Grupo de Pesquisa em Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil - GPFENNCO-UNIR/CNPQ. Professora de língua portuguesa, atuando como formadora no DRE/CEFAPRO em Cáceres/MT. Bolsista do Programa de Apoio à Pós-Graduação da Amazônia Legal Edital 013/CAPES. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura mato-grossense, historiografia literária, Literatura de Autoria Feminina, literatura e ensino, letramento literário, literatura afro-brasileiras e Poéticas orais. É membra fundadora (2017) do Coletivo de Mulheres Negras de Cáceres/MT.

 

quarta-feira, 23 de março de 2022

TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


                            Baixe o edital clicando AQUI

TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


 Por Margarida Montejano

Patricia Cacau

Agora vamos para trilogia.

Virgem (Se Essa Lua Fosse Nossa)

Mulher na fertilidade (Ciranda de Deusas)

Mulher na sabedoria (I Tomo das Bruxas)

A mulher nas 3 fases da sua existência.

Formando o tripé*

 

Se essa Lua fosse Nossa

 

É manhã… muito cedo ainda…

Me ponho a olhar. Fixo os meus olhos e, a retina enfeitiçada vê a menina faceira, virgem, cheirando a alecrim e à flor de laranjeira.

 

Maria, Isabel, Marta, Teresa… Quanta energia, quanta beleza!

 

Leve e solta, canta com o sol e o vento.

Corre feliz entre os campos e, de espírito livre com flores se enfeita, na relva se deita!

Oh criatura divina que a lua do céu ilumina! 

Que da boca escorre mel! Que ofusca as estrelas do céu!

 

Fátima, Conceição, Imaculada,

Margarida e Rosário…Fiam a noite, tecem o dia, experimentam a vida!

 

Vejo  outra menina igualmente bela,

preta, branca, vermelha, amarela,

a desfilar sua singularidade entre carros e arranha céus!

Seja no campo ou na cidade ou, de qualquer ponto do universo,

as meninas encantadas, perfumam as noites estreladas 

e  à lua, declaram em prosa e verso o seu amor no papel.

Numa aquarela, seduzem, inspiram… ah se essa lua fosse nossa!

Enternecidas, cantam o amor próprio e viajam para a lua, a Consolação, a Rita de Cássia, a Glória e a Aparecida!

 

Uma Ciranda de Deusas

Afastem de mim a sua Filosofia!

Joguem fora estas Poesias de Amor!

Tessalonicenses 4:16-18

 

É tarde, mas… cedo ainda para ela. Para elas!

Pego-me a admirar a formosa mulher que de botão, flor se fez. Faz de conta que o tempo não passa e a bela corajosa, canta espantando os males e as tardes ensolaradas, encanta.

 

Da Penha, Ana, Das Dores, Gorete e Catarina, aos olhos da mãe em noite de lua, são elas ainda meninas

 

Com a alma lavada nas noites enluaradas, escreve receitas, rabisca poesias, aprende com os erros, acalma o vento e, do tempo, os temores.

Ensina o amor e inventa a esperança.

O tempo e as agruras da vida, enfrenta.

Seguem Ana, Madalena, Clara e Remédios, o caminho das pedras, no enfrentamento das dores.

 

Luta na labuta do dia e sonha na candura da noite.

Destemida, cuida da casa, da roça e das crias.

Tão fértil é ela que gesta em seu ventre a luz

e, o dia é pouco para o tanto que faz!

Ela, somente ela é capaz de, ao mesmo tempo, três verbos conjugar - amar-perdoar-seguir. 

 

Rosa, Edwirges, Luzia, Patrícia  e Helena…

tão sensíveis, tão combativas e, ao mesmo tempo,  tão serenas…

 

De versos, coragem, abraços e afetos faz rimas.

Da o colo, o ombro, faz serestas, cantigas e poemas às amigas!

Poderosa faz ela o que bem quiser e,

numa ciranda de deusas, dança e dança a madura mulher.

Chora a dor do mundo, enfrenta o ódio gratuito, o machismo, o desemprego, a fome. Sangra, teme, enfrenta os dilemas, as tempestades e não desanima. O corpo endireita, se veste de sol, põe estrelas no cabelo e a terra germina. É ela a menina, a deusa, a mulher!

 

 

I Tomo das bruxas

 

Há quem passe pelo bosque

e só veja lenha para a fogueira.

Há quem veja VIDA. 

Jéssica Freires

 

Lá vem a noite e, para ela, para elas… é cedo ainda!

Ouço atentamente. A bela senhora conta histórias com sabedoria e, sua voz reverbera no ontem, transita no hoje e se põe a sonhar o amanhã.

As histórias que compôs, que viveu, que contou e que ainda estão guardadas em seu íntimo, inspira e ilumina as mulheres, jovens e meninas, durante o luau…

 

Ela, com o sol sobre os pés, revestidas da prata da lua, viaja no tempo e busca, nas origens das origens, o grão de terra que a constitui e, ao invocar o chão ancestral, encontra as ervas para todas as curas, as palavras certas para todas as situações e a reza devida, para o livramento dos males.

 

A mulher madura, na altura da idade que carrega, respeita a hora de falar, pois aprendeu com os anos, com o peso da lenha nas costas, a lata cheia d'água na cabeça e os tombos do tempo, a arte da escuta. Os olhos delas são parceiros dos ouvidos e os lábios, quando se abrem, trazem a palavra sabedoria.

 

Para além da filosofia, não é à toa que as mãos, sabedoras das medidas exatas preparam os chás, caldos e quitutes mais sofisticados do mundo e, com docilidade essas mãos, quando tocam a parte que dói nos corpos doentes, são capazes de curar. Com reza, alecrim e guiné, fazem poesia.

 

Não é à toa que essas incríveis criaturas são tão temidas! Pois, se são capazes de suportar a dor com resiliência, de enfrentar o machismo secular e de defender com unhas e dentes a causa a que acreditam, o que mais elas podem fazer? Ah! Elas podem muito, desafiam a ciência as tais feiticeiras! Elas podem, quando de mãos dadas, mudarem o mundo!

 

Na dúvida, melhor silenciá-las!

 

Assim tem se revelado as duras estatísticas do feminicídio.

Ato que substitui a fogueira e demonstra a covardia daqueles que se acham mais fortes.

Covardes eles são!

Malditos! Estes não são dignos de desatar as sandálias dessas maravilhosas bruxas do nosso tempo!

 

À  todas as mulheres que viveram, lutaram e se foram antes de nós! À Joana D’arc, a Carolina de Jesus; Irmã Dulce, Dorothy Stang; Zilda Arms, Márcia, Joene, Marielles, Elzas e a todas as Marias do mundo! O nosso respeito, admiração e reverência!

 

Estamos aqui por elas, por nós e pelas que ainda virão. Continuaremos a marcha por uma e por todas. A luta que a força bruta não estanca. O amor e o poder feminino que a tirania não vence! Seguiremos confiantes de que, na mistura perfeita da semente humana e divina, o ventre da terra haverá de gestar um mundo em que todos tenham um lugar.

Um lugar para viver dignamente e sem preconceitos, amar!






terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A ‘NEOPOESIA’ DO SÉCULO XXI



A ‘NEOPOESIA’ DO SÉCULO XXI

Por Carla De Sà Morais-Gossuin


As novas vozes da poesia:


A poesia sempre esteve viva entre nós, todavia, continua uma desconhecida do grande público. É quase um paradoxo, mas é a realidade.

Em Portugal e em outros países, também, a poesia contemporânea continua desconhecida do grande público. Raros serão aqueles que poderão citar nomes de poetas do século XXI.

A culpa, cabe também aos média que falam pouco sobre ela e, quando falam, referem-se a maior parte das vezes aos grandes clássicos. É uma pena, porque a poesia dos nossos dias além de estar bem viva, é duma enorme riqueza.

É interessante ressaltar, que, apesar de tudo, a poesia tem-se mantido numa certa dinâmica, graças às pequenas editoras que a promovem em eventos, e dão assim a oportunidade a que ela se expanda, ao mesmo tempo que revelam os seus autores. Seria de grande benefício que as suas forças se unissem para melhor divulgarem, evitando assim o esquema de arquipélago que se tem vindo a formar, porque no fundo, têm todas um público que as apoia e porque também, os lugares onde a poesia pode ser escutada, multiplicaram-se e isso dá-nos a perspetiva de viver e de sentir como a poesia vive fora das páginas. A união é importante porque a Cultura desenvolve-se de mãos dadas.

As mulheres, estão muito presentes nesta era de neopoesia, contribuindo para este renascimento poético, onde a música das palavras tem um ritmo atento ao espaço e ao tempo.

Em Novembro do ano passado, o prémio Nobel da literatura foi atribuído a Louise Glück, poeta americana. Então, sinto que estamos todos no bom caminho.

 




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segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO



COLETÂNEA POÉTICA: ENLUARADAS II (2021): UMA CIRANDA DE DEUSAS

SÓ PARA DIZER QUE “AGORA SOMOS NÓS QUE VAMOS DIZER O QUE [não] SOMOS”[1].

  

Por Elizabete Nascimento

 

Agrego ao título a afirmação de Lygia Fagundes Telles, por traduzir uma das essências que emana da coletânea de poesia de autoria feminina Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021)[2], com eus poemáticos que reafirmam a infinita tarefa de poetizar o mundo e não compactuam com o poder arbitrário que aprisiona a fala de todas em detrimento de uma. A obra é subdividida em quatro oráculos sagrados regidos pelas deusas da mitologia grega, conforme destaca Marta Cortezão (2021, p. 09):


O primeiro homenageia a deusa Gaia, a Mãe Terra que nos nutre e que nos revela a importância de recuperar nossa sacralidade e nos conectar com nosso espírito primitivo; o segundo, a Deusa Selene, La Bella Luna, a que comanda os mistérios de nossa natureza cíclica e do Sagrado que nos habita; o terceiro, a Deusa Lilith, a que controla os ventos e as tempestades, lutando pelos seus direitos, negando subserviência ao patriarcado; e o quarto e último oráculo que celebra a Deusa Afrodite, a que vem nos revelar a sacralidade do amor, alimentando-nos a força da luta coletiva pela sororidade, pelo amor que faz morada no colo do numen primitivo. 

Da estrutura supramencionada, mitológica e envolvente, pescamos quatro poemas para brincar com o tecido poético da criação de autoria feminina que compõe a coletânea, esse mar de águas inundado por sentimentos. A pescaria teve como critério trazer para o palco a percepção de que as palavras voam livres, entram por dentro do corpo e levantam em forma de poema para ressignificar a figura feminina no mundo contemporâneo. Por escolha trazemos os poemas na íntegra, a fim de que o leitor constate ou não as percepções descritas, até porque o objetivo aqui não é trazer o significado do poema, muito pelo contrário, é dizer que o poema tem mil faces e sugerir que você, caro leitor, encontre a sua e descubra como as palavras desses eus poemáticos falam em nós e nos afetam os sentidos. Eis os poemas:                                     

RESSIGNIFICÂNCIAS

                

Ale Heindenreich (p. 24)

 

Me reencontro nas palavras

Como o rio que corre seu curso.

Deparo-me com a cachoeira de

Águas mansas. Ora torrentes.

Escorrem no papel linha por linha

Verso por verso.

 

Permeiam as folhas do meu

Caderno vermelho.

Respingam em palavras formando

Choro, riso ou receio.

 

Caem como gotas de

Chuva desprentensiosa.

Tornam-se poças tímidas que

De mãos dadas se movem até

O córrego manso,

E de lá outra vez serei

Rio de águas renovadas.


O poema Ressignificâncias apresenta o poder libertador das palavras e como, por meio delas, o eu poemático descreve seu percurso: “Me reencontro nas palavras/Como o rio que corre seu curso”. Como algo que ultrapassa os obstáculos, vence as barreiras do tempo. Nota-se ainda, que as palavras simbolizam as águas e, estas por sua vez constituem o rio, rio que transforma-se no eu poemático, como um ciclo onde o ser humano e a natureza se entrelaçam numa rede constituinte de identidade: “E de lá outra vez serei/Rio de águas renovadas”. Há uma boniteza de imagem poética que se levanta do poema e clama por sentires múltiplo e que, portanto, não podem estar aprisionados em interpretações e/ou conceitos previamente definidos.


A PALAVRA QUE ME FALTA


Dani Espíndola (p. 71)

 

Onde se esconde

A palavra que procuro

A que me estancará as feridas

Me guiará no escuro

Que é viver só de vontades

De inventar realidades

Onde estará a palavra

Que me falta

Para terminar o poema

A palavra que condena

E liberta

Impunemente

Onde se esconde

A palavra

Que me desmente.


Ainda no seguir a tessitura da rede iniciada pelo poema Heindenreich, A palavra que me falta – de Dani Espíndola, metaforicamente também apresenta a incompletude da palavra e do ser, ambos em via de fazer-se: “Onde se esconde/A palavra que procuro/A que me estancará as feridas”. Por mais que a procura seja incessante, sempre haverá uma lacuna para ser preenchida. Essa artimanha do signo verbal lembra-me Carlos Drumonnd de Andrade: “Trouxeste a chave?”. Espíndola apresenta um eu poemático consciente de suas limitações e vontades, à procura da palavra definitiva, que contraria o eu poemático e que, ao mesmo tempo, possa completá-lo: “onde estará a palavra/Que me falta/Para terminar o poema/A palavra que condena/E liberta/Impunemente./Onde se esconde/A palavra/Que me desmente.”

Ao considerar o exposto, o eu poemático de Espíndola enche-se de questionamentos a respeito da completude da palavra como se sabedor de que “um escritor pode amontoar frases e mais frases, adjetivos e mais adjetivos, para capturar a essência esquiva de alguma coisa. Mas, quanto mais usa a linguagem para descrever um personagem ou situação, mais tende a soterrá-lo sob uma montanha de generalidades” (EAGLETON, 2019, p. 63)[3]. Nesse sentido, ainda de acordo com o autor, na e pela palavra, podemos fazer sangrar tudo que existente aprisionado em nós e, é por esse motivo que a poesia: “não trata apenas do sentido da experiência, mas também da experiência do sentido” (EAGLETON, 2019, p. 196).


CHÃO ANCESTRAL


Margarida Montejano (p. 148)

 

Às vezes, mora em mim uma loba

 que uiva como louca quando sente que o perigo ronda.

Defende a cria, sobe as paredes e as unhas afia.

Mora em mim, às vezes,

uma ovelha desgarrada de olhos mansos

que tece, nas rugas do tempo  e nos fios de lã,

 o cachecol do dia que aquece nossas noites insanas.

 

Às vezes, mora em mim

uma bem-te-vi que vive a cantar a esperança.

Que não desiste. Insiste no voo que aquece o ninho.

Enfim, mora às vezes em mim uma louca,

que grita insana nas noites insones, que existir é muito mais que viver.

Que eu posso ser amarga, azeda,

macia, árida e áspera, sem deixar de ser doce.

 

Que eu possa ser lua, estrela, constelação.

Deusa, musa, menina, princesa e bailarina.

Posso ser meretriz, caipira, doutora do lar, poeta e atriz...

Habita dentro de mim um ser inconcluso,

Confuso, difuso, mas tomado de essência divina

Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!

Mora em mim um anjo sagrado e profano,

Uma boneca de pano que às vezes me chama e me diz

 - você é o que você quiser!

Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher.

 

Chão ancestral, de Margarida Montejano, exibe o movimento das diversas identidades da figura feminina que busca na complexidade das relações viver com intensidade seus paradoxos: “Habita dentro de mim um ser inconcluso,/Confuso, difuso, mas tomado de essência divina/Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!”. Um eu poemático consciente da potencialidade da alma humana que caminha por múltiplas direções: “Que eu possa ser lua, estrela, constelação./Deusa, musa, menina, princesa e bailarina”. Ou seja, capaz de ultrapassar as linhas da objetividade e peregrinar pelo campo da ficção. Nesse sentido, é interessante atentar para o fecho do poema: “Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher”, como o ser livre e múltiplo estivesse apenas na palavra porque o ser mulher, nessa sociedade, exige o cumprimento de regras, de imposições que limita seus fazeres.  

Ao dizer o que queria no poema, o eu poemático afasta-se do texto, segue a vida real, na versão mulher. Nesse sentido, convoca-nos à necessidade de olhar para o texto, deixar-se ser provocado por ele, pois: “A linguagem em poesia é uma realidade em si mesma, e não um mero veículo pra algo diferente dela. A experiência que importa é a experiência do poema. As ideias e os sentimentos pertinentes são aqueles que estão ligados às próprias palavras, e não a algo dissociável delas” (EAGLETON, 2019, p. 142).

A batalha da produção de autoria feminina é ser (re)conhecida em suas diversas facetas e qualidade de sua produção, embora já tenha algumas conquistas é preciso seguir em frente, pois segundo Octávio Paz (1954): “A liberdade do escritor não é algo abstrato, mas algo que se conquista dia a dia. Em sua obra, em seu trabalho, melhor dizendo, de revelação do homem, o escritor deve lutar contra todo tipo de limitações e imposições. Alguns pessoais e outros externos”[4]. Ainda recorrendo a Paz, vale destacar que a essencialidade literária consiste em descobrir e revelar parte do ser humano, no que ele tem de mais específico, além disso, o autor destaca que técnicas adotadas por um ou outro autor(a) podem até influenciar o caráter das produções, mas não alteram o seu valor.


SINA


 Vania Clares  (p. 199)

 

de muitas herdei pudores

e desígnios acumulados,

as células carregam dores

por caminhos atribulados.

Custei a entender essa trama

Tecida através dos séculos,

Vista por muitos como drama,

Os iguais assumidos vínculos.

Revivo a história dia a dia

Nos olhos de outras mulheres

E reconheço em todas a ousadia

De fazer valer os seus saberes.

Condensamos a força deferida,

a que rasga imperiosa o ventre,

Lembramos sem medo a ferida,

Afrontando o risco de estar entre

Aqueles que nos desconhecem.

E porque somos amor e doação

Damo-nos as mãos em sintonia,

Colhendo na luta a inspiração,

Prevalecendo o milagre da poesia.

E porque entendi como privilégio,

Exulto em canto a sina em sagração,

Em mim encontrarás eterno refúgio,

Em nós o cerne da vida em ebulição.

 

Observem que o último verso do poema Chão ancestral dialoga com Sina, de Vânia Clares que, com seu jeito peculiar, poetiza o percurso da figura feminina no decorrer da história, bem como, destaca a ancestralidade, com alguns episódios que se repetem e fazem eco no mundo contemporâneo. Invoca ao poder do trabalho coletivo para “pular o cerco”: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia.” No poema Sina percebe-se o tom metafórico para que a mulher vá à luta, aprenda as lições deixadas por seus antepassados, toque na ferida como bandeira de redenção e, dessa forma, passa a incomodar àqueles que desconhecem a legítima voz de quem aprende com a própria história. Nos dois últimos versos há a profunda e necessária relação entre o eu e o nós como constituintes do processo de criação poética: “Em mim encontrarás eterno refúgio,/Em nós o cerne da vida em ebulição”. Uma mulher que reconhece o limite de sua individualidade e ao se reconhecer compreende-se também como um ser híbrido e, portanto, em contínuo processo de aprendizagens com as outras: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia”. Terry Eagleton (2019) diria que o eu-poemático, na produção dessas mulheres, “surge como metáfora da natureza e povoada de fantasias da vida humana real” porque quem carrega os sonhos somos nós, humanos.

A busca incessante por liberdade percorre os poemas, de modo que metaforicamente a figura feminina concebe a escrita/palavra, como personificação de si mesma, pois:

Sua memória corre fluída no texto, embaralhada nos tempos vividos que se fundem na emoção do recordar/viver. Saberes e sabores dos mais diversos se fundem em sua escrita seivosa. Escrita sinuosa de contador-de-histórias que vê a aventura humana enredada em seus mil caminhos e veredas que se cruzam, entrelaçam e se separam. Nenhuma vida existe por si só, mas enovelada, determinada, abortada ou frutificada por outras vidas que a ela estão presas por invisíveis e irredutíveis fios. (COELHO, 1993, p. 320).

São vidas filtradas pelos sentimentos e pelos conflitos de quem, até pouco tempo, eram negados o direito à voz/escrita. Octávio Paz legitima essa proposição ao destacar que “O poema é um objeto único, permeado por uma técnica específica de cada poeta, a qual possui um estilo específico, marcado tanto pelo individualismo de seu criador quanto pela sua época, estilo literário de seu tempo e vivências sociais e históricas”[5].

Nesse ínterim, retorno ao título dessa abordagem: “agora somos nós quem vamos dizer o que somos”, trata-se de um chamamento à leitura da produção de autoria feminina, porém, sabedora de que muito pouco ainda está sendo e será dito, sempre com a palavra em falta nesse chão ancestral escrito pela diversidade que solicita coragem no mar de ressignificâncias que engendra a epifania do ser e/ou a imprescindível mudança dessa sina da mulher. Ressalto que: “a melhor maneira de ver uma obra literária não é como um texto com sentido fixo, mas como matriz capaz de gerar todo um leque de significados possíveis. Mais do que conter significados, a obra o produz” (EAGLETON, 2019, p. 149).

Finalizo, por ora, destacando que os poemas selecionados foram produzidos em primeira pessoa, por mulheres, talvez para que observem a transfiguração engendrada pela memória e pela arte como um apelo para que olhem de novo, de outro jeito a produção de autoria feminina, com corpos e almas que nos contrários se edificam, linguagens cingidas na experiência e nos sonhos rotineiros que, em sua maioria, recusam a linguagem burilada, às sintaxes consagradas e se levantam no jeito particular e, ao mesmo tempo, coletivo desmanchados na/pela escrita que eleva imagens e sensações plurais.

 


[1] TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.  “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”.

[2] CORTEZÃO, M.; CACAU, P.; Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas. São Paulo: Saravasti, 2021.

[3] EAGLETON, Terry. Como ler literatura. Porto Alegre: L&M, 2019.

[4] PAZ, Octavio. Fragmentos de uma entrevista à Rosa Castro, México/La Cultura, 1954.

[5] https://homoliteratus.com/poesia-e-poema-sao-sinonimos-nao-para-octavio-paz/




quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A PALAVRA, A POESIA E O FEMININO DE TUDO: ASSIM SOMOS

 


A PALAVRA, A POESIA E O FEMININO DE TUDO: ASSIM SOMOS


 Por Margarida Montejano


Mar.. mar.. maravilhoso artigo da divina Elizabete Nascimento, publicado neste Feminário, que brota após a experiência das belas mesas enluaradas!

Um mar de palavras, sentidos e conexões! Um mar que guarda as águas calmas,  bravias e serenas das mulheres do nosso tempo, revestidas de tantos outros tempos.

Pensei no femino-masculino que Bete descreve!

Pensei na força da Deusa Selene! Nos movimentos que provoca no mar. Na palavra mar.

Ilustração Deusa Selene de Daniel Firmino - danielbrafir@gmail.com - para a Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Sarasvati Editora, 2021)

Pensei no mar de Neruda e na sua mãe Rosa Basoalto! Pensei na peneira que carregava água, de Manoel de Barros e, em Alice Pompeu, sua mãe. Voltei a  ler o artigo “O abismo sublime das enluaradas: a poética do abraço” no Feminário Conexões, e  novamente pensei em Neruda. Mergulhei no seu mar. No mar de palavras  e nas ondas da escrita reordenei as ideias e refleti sobre  as mulheres e homens que se arvoram a escrever. Pensei nas mães, avós e nas tantas antepassadas que nos constituíram e nos constituem. Pensei no que somos.

Lembrei-me, madrugada adentro, de Carlos Drummond de Andrade, de Gabriel Garcia Marques, Chico Buarque, Paulo Freire, de Adelias, Cecílias, Rutes, Martas, Patrícias e as tantas Marias que somos.  Pensei em suas mães, em nossas mães, avós, irmãs,  filhas,  tias, primas e amigas!

Que constatação me bateu, poetas?

Que neste mar de linguagens e poesia que culmina no universo femino-masculino, há sempre uma mulher. Uma grande mulher! Ah! Não fosse essa inspiração…! Essa parte feminina tão presente neles e em nós!

Eis aí a experiência da vida em Gaia nos provando que a mãe é mulher. Que a palavra é mulher! Que a vida e a gestação de tudo  é mulher.

Ilustração Deusa Gaia de Daniel Firmino - danielbrafir@gmail.com - para a Coletânea II: uma Ciranda de Deusas (Sarasvati Editora, 2021)

Meio dormindo-acordada, pensei no infinito amor, que faz germinar, nascer, crescer  e que, constitui a beleza de tudo o que há debaixo do céu, no fundo das águas e acima da terra. No  feminino em canção!

Daí a beleza das coisas. Daí a poesia da vida, me provam as Enluaradas!

Somos, pois, reflexos da Grande Senhora que passeia nas Brumas… Somos, na festa da natureza, a fertilidade do solo, as mulheres que correm com lobos. Que uivam e se transformam em defesa da cria e da criação de si. A feitiçaria da poesia que brota de nosso ser!

Somos a natureza divina e, em essência, somos a nossa ancestralidade.

Nas coletâneas Enluaradas e no mar de poesias desse coletivo feminino me vi no 1º FLENLUA… Me encontrei nua, banhando nestas águas que me mostram, como diz Elizabete em seu artigo recheado de beleza, que sou una e múltipla.  Assim, as águas deste mar de escritas e de vida  fazem com que eu me sinta mulher valorosa, empoderada da palavra e da possibilidade de senti-la, de escrevê-la e de dizê-la. Livre! Fazem com que eu assim,  “seja”!

Mas… só “sou” com vocês. Assim somos neste coletivo constituído de outras mulheres Enluaradas de hoje, de ontem e do amanhã.

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