A poeta indígena Eliane Potiguara é Doutora Honoris Causa pela UFRJ No dia 22 de novembro de 2022, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concedeu o título de Doutora Honoris Causa a uma ex-aluna ilustre: a escritora indígena brasileira Eliane Potiguara. A autora nasceu em 1950, na cidade do Rio de Janeiro, no seio de uma família indígena desaldeada e cursou Letras na UFRJ, no início da década de 1970.
A literatura indígena contemporânea, compreendida como a produção literária dos intelectuais indígenas brasileiros na atualidade, vem se tornando bastante expressiva a partir das últimas décadas e tem na figura de Eliane Potiguara uma importante precursora. No contexto da produção literária da autora percebe-se uma escrita voltada para o universo feminino em que se destaca a afirmação das diferenças, em contraposição ao modelo hegemônico.
[foto do Facebook da autora] |
Na condição de intelectual orgânica – sua produção literária não se distingue de sua atuação de militante do Movimento Indígena, Potiguara promove, no conjunto de sua obra, uma série de rupturas em relação aos padrões clássicos de textualidade, de linguagem e de pressupostos, tanto teóricos quanto epistemológicos. As principais publicações de Eliane Potiguara são: A Terra é a Mãe do Índio (1989); Akajutibiró: terra do índio potiguara (1994); Metade Cara, Metade Máscara (2004); Sol do Pensamento (2005) e-book; O coco que guardava a noite (2012); O Pássaro Encantado (2014); A Cura da Terra (2015). Diversas antologias produzidas no Brasil e no exterior. Potiguara também costuma publicar textos em seu site, nas páginas, Instagram, perfis no Facebook, e em grupos que administra nos espaços virtuais.
[foto do Facebook da autora] |
Esse reconhecimento vem como honraria para a intelectual que, em sua longa jornada no campo da escrita autoral, já enfrentou inúmeros desafios e foi, muitas vezes, silenciada, aviltada e até violentada em sua condição de mulher indígena que não se cala diante das injustiças e das incoerências. Seu livro Metade cara, metade máscara, referenciado pelo eminente escritor indígena Ailton Krenak como um livro totem, representa um libelo contra a opressão aos povos indígenas, sobretudo às mulheres indígenas.
Eliane Potiguara é uma autora que escreve com as suas ancestrais. A partir de um jogo polifônico, ela resgata as vozes das matriarcas indígenas. A escritora realça a importância da convivência com as mulheres de sua família, como a mãe, a avó e as tias-avós, para a sua formação como escritora. De acordo com ela, porque narravam suas histórias indígenas de forma mágica e envolvente. E a partir dessas narrativas, a poeta promove reflexões sobre os enfrentamentos das mulheres indígenas em trânsito, sua solidão e os preconceitos dos quais costumam ser vítimas. Dessa forma, seus escritos denunciam a violência, o racismo e a intolerância da sociedade.
Nos
versos de seu poema: Fim de minha aldeia:
Tenho
medo das coisas que falo
Que
mais parecem profecias
De
tudo mais que falei
Hoje
estou tão só, triste e descontente
Perdi
o meu amor
Perdi
minha razão
Dói-me
profundo
Profundamente
meu coração.
Choro
intranquila, sofro a desgraça
Vivo o
desamor na solidão
E por
onde passo
Há só
lembranças, tristes lembranças
De uma
aldeia acabada.
Eu
tenho medo das coisas que falo
Que
mais parecem profecias
Pois
de tudo, tudo que falei
Hoje
estou sofrida, amargurada
Perdi
minha essência
Grito
traída, canto a trapaça
Sou a
própria tristeza
Transformei-me
numa constante ameaça.
Agora
não rio, não sonho
Não
suporto mais nada
Uma
dor aguda me sufoca, me maltrata
É a
dor da saudade que me mata.
(POTIGUARA, 2018, p. 35).
[foto do Facebook da autora] |
Os versos realçam a subjetividade das indígenas exiladas, como a avó da autora – Maria de Lourdes, forçada a deixar a aldeia no Nordeste, de forma violenta, após o desaparecimento do pai Chico Solon. De acordo com relatos da própria escritora, as matriarcas chegaram ao Rio de Janeiro em um navio que carregava imigrantes e enfrentaram inúmeras adversidades.
A cerimônia de outorga do título reverenciou também o poeta popular Carlos Assumpção, personalidade negra brasileira internacionalmente reconhecida. Em solenidade de grande força simbólica, a academia premiou, concomitantemente, uma escritora indígena e um escritor afrodescendente. Dois intelectuais considerados periféricos cujas produções movimentam discursos contra-hegemônicos.
Nessa linda cerimônia, foram ouvidos: o grito de uma guerreira indígena potiguara e um rufar de tambor acompanhado por calorosos protestos de um intelectual negro. A cena revela rupturas em relação ao pensamento abissal moderno. A literatura abre caminhos para a valorização dos saberes populares, dos escritos das mulheres, do povo preto e dos povos indígenas.
[foto do Facebook da autora] |
A beleza dessa cena sugere a possibilidade de revitalização do cânone literário tradicional, a partir da apresentação de escritoras e escritores silenciados no interior do sistema literário brasileiro, como é o caso dos intelectuais indígenas e dos intelectuais negros e negras que tiveram suas participações negadas durante a constituição da historiografia literária. Que a literatura possa, cada vez mais, tocar a sensibilidade das pessoas para que superem preconceitos e ódio. Que a sociedade se torne, cada dia, mais harmônica e equilibrada sempre se pautando pelo respeito às diferenças e pela convivência pacífica entre os povos.
[foto do Facebook da autora] |
Que a exemplo da escritora Eliane Potiguara, cada vez mais mulheres sejam reconhecidas, dentro e fora dos espaços institucionais, cada vez mais indígenas, negros e negras sejam reconhecidos e reconhecidas. E que a diferença não seja mais critério de exclusão, mas que possa ensinar o respeito pela diversidade.
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Referência:
POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Máscara. 3ª ed. Rio de janeiro: Grumin Edições, 2018.
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