Mapa das Narrativas nos Romances de Milton Hatoum, de Francisca de Lourdes Souza Louro
A LANTERNA DO LABIRINTO
Em “Mapa das narrativas nos romances de Milton Hatoum de Francisca de Lourdes Souza Louro. -- Manaus, 2021” há uma cartografia, um passeio pelo mundo das ruas, das portas da linguagem, do som da crítica e da imaginação, as algaravias, as falas, as cartas, as identidades.
O livro vai tecendo um tapete de significações, explicitações, com a vantagem de que vai ficando cada vez mais interessante à medida que avança, de forma que em vez de ser cansativo, acadêmico, árido, repetitivo para o leitor mais alarga mais aumenta os interesses hermenêuticos, aquelas confissões, murmúrios, fofocas, recados, sintomas, cartas, como disse alguém: “Conta logo, mas devagar...”, que o prazer está nos cantos escuros do texto, e detalhes, n“as mocinhas do viúvo Talib, não as filhas: as outras, que ele fisgava perto dos armazéns. Na casa dos Reinoso era muito pior, Zana ficava sem fôlego, me pedia para contar tudinho. Quando a confusão começava, os empregados ligavam o gerador para abafar os guinchos dos macacos e os gritos de Abelardo Reinoso”.
“Em que consiste a unidade de A la recherche du temps
perdu?
Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem
tampouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Recherche não
está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é
simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a palavra
deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da
verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado;
é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É
certo que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais
profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a
estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase
musical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembrança, nenhuma
ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a
madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso,
remetem ainda a uma "explicação material". A obra de Proust é baseada não na exposição
da memória, mas no aprendizado dos signos. (Deleuse: “Proust e os signos”).
Esse aprendizado o faz a leitura que a Lourdes Louro faz (por exemplo) das mulheres que emergem dos romances, principalmente daquelas invisíveis, as “escravas”, crias, prostitutas. É na teia dos igarapés, da cidade flutuante, das falas, dos esquecidos, da algaravia. O aprendizado da vida amazônica. Sua tristeza, seu capitalismo periférico. Como em Proust, “é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos”.
Pode-se dizer que Lourdes Louro construiu um romance
fragmentado sobre os três romances do Milton através de “pistas sobre sua
produção, cartas, fotos, conversas com os mais velhos, especialmente os avós, o
pai, muitos artifícios para dar os nós nos fios que amarram o texto”.
Escreveu Hatoum:
“Decidi, então, perambular pela cidade, dialogar com a
ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço (p. 122). Atravessei
a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro
desconhecido. Crescemos ouvindo histórias macabras e sórdidas daquele bairro
infanticida, povoado de seres do outro mundo, o triste hospício que abriga
monstros. Foi preciso distanciar-me de tudo e de todos para exorcizar essas
quimeras, atravessar a ponte e alcançar o espaço que nos era vedado: lodo e
água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco-íris e
recortadas por rasgos verticais...”
De acordo com Ricoeur e Gadamer, a hermenêutica vê os
textos como expressões da vida social fixadas na escrita, através de fatos
psíquicos, de encadeamentos históricos. Sua interpretação consiste, então, em
decifrar o sentido oculto no aparente, e desdobrar os diversos graus de interpretação
ali implicados. Na realidade a hermenêutica é compreensão de si, mediante a
compreensão do outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor se
compreende a si mesmo, interpretando o texto.
A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade,
mas compreender não significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula
uma superação: Ela se quer uma teoria e uma arte, fazendo da leitura uma nova
criação, e dela se exige uma reflexão que leve à ação.
A hermenêutica questiona a evidência, recusando-se a
explicar completamente o fato interpretado. Uma interpretação definitiva deve
ser uma contradição em si mesma, diz Gadamer. Pois, mais importante do que
interpretar o claro conteúdo de um enunciado, é perguntar pelos interesses que
o guia.
“Vemos nas cores da grande tela amazônica, os quadros
narrativos que o autor imprime e apresenta aos leitores, como se observa nos
três romances”, diz a Lourdes Louro.
Ele conclui que “neste texto, mas por acharmos ser a
mais exata para fechar a análise pode-se constatar que estudar os três romances
nessa “perquirição” foi uma aprendizagem abalroada (em que) eu ia vislumbrando,
talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do
novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da
fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas ou visgado na penumbra
dos quartos (RcO: p. 51) onde percebi e tive o prazer de (re)ver nas histórias
hatounianas o (re)viver da vida amazônica.”
O termo hermenêutica, num sentido mais radical, não
quer dizer arte da interpretação, mas a tentativa de determinar a própria
interpretação, a própria compreensão. E assim, a hermenêutica torna-se
interpretação da compreensão ou “círculo hermenêutico”, pois toda compreensão
apresenta uma estrutura circular: “Toda interpretação, para produzir
compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar.” O mundo,
portanto, é o que se encontra no horizonte da compreensão. Nosso mundo é o que
se encontra no horizonte de nossa compreensão, mas podemos alargá-lo, mediante
a compreensão do outro, realizando então uma fusão de horizontes.
O que deve ter norteado a dra. Lourdes Louro é
compreender a nossa cidade de Manaus, estabelecendo e abrindo um mapa de
sentidos, um roteiro no labirinto, do entrecruzamento de vidas, de relatos, de
sofrimentos, um quadro que se amplia no espaço, no tempo, na profundidade dos
sentimentos – os nichos e escondidos, as gavetas – as tensões, amizades, e tudo
que constitui a vida, esse mistério. As estórias daqueles personagens naquela
cidade única, cercada de floresta, rios e lagos. Através dos textos do Milton
procurou o valor de sua própria vida, de sua humanidade, que é o que faz a
hermenêutica. Toda pergunta busca essa impossível resposta nos fragmentos das recordações
(e assim o livro é fragmentado).
O livro de análise e leitura é propositalmente
costurado em temas e lemas, em fatos e motes, em fantasmas, medos, vultos,
sombras, pois em certa época (que eu conheci)
não se podia andar à noite sem levar uma lanterna.
Essa lanterna é o que busca o rumo do nosso destino.
Sobre Francisca de Lourdes Louro:
De Manaus/ AM. Possui Pós-Doutorado em Sociedade e Cultura da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Mestrado e Doutorado em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra-Portugal. Especialista em Literatura Moderna e Pós-Moderna pela UFAM, Graduação em Letras – Língua e Literatura Portuguesa pela UFAM. Professora de Língua e Literatura Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC/AM). A autora escreveu mais de uma dezena de artigos sobre a produção literária de autores amazonenses que estão disponíveis em versão eletrônica pela internet. Em 2019, publicou o livro Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos, em parceria com José Aldemir de Oliveira. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP e do Projeto Poesia, Prosa e Cinema no Amazonas: 1996-2016, ambos desenvolvidos na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sob a coordenação da professora Dra. Rita Barbosa de Oliveira. É Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos Semióticos: Literatura, Cultura e outras Artes (GES), do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Coordenado pela Dra. Socorro Viana de Almeida. Publicou em parceria: com a Dra. Socorro Viana de Almeida :IMAGENS AMAZÔNICAS - Estudos de Semiótica, Poética e Hermenêutica.