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A PROSA NA OBRA "ALAMEDA" DE ASTRID CABRAL
A primeira vez que tomei conhecimento de Alameda, a
obra inaugural de Astrid Cabral publicada em 1963, foi através do meu querido e
falecido amigo José Benedito dos Santos que, sabendo que eu escrevia um romance
cujo narrador era uma árvore, deu-me o livro de presente. O efeito da escrita
da autora em mim foi devastador e indelével. Meu querido amigo me fez entender
a grandeza de Astrid e, além disso, reconhecer que era uma mulher à frente do
seu tempo.
Primeiro, porque ela deu protagonismo ao mundo
natural. Não que não houvesse outros autores que mencionassem matas e florestas.
Inferno Verde, livro de contos de Alberto Rangel publicado em 1908, e A Selva,
romance de Ferreira de Castro publicado em 1930, já mencionavam o mundo
natural, mas sempre como cenário, selvagem, inóspito e imenso. Astrid não
somente deu protagonismo ao mundo natural, mas também relacionou o mundo
natural ao humano, fazendo uma analogia à nossa própria vida. Ao personificar
grãos de feijão, laranjas, rosas, papoulas, folhas, orquídeas etc., atribuindo-lhes
características humanas, a autora fugiu do que poderia ser considerada uma
literatura regional, algo que na tradição literária sempre foi considerada
menor. Além disso, Astrid antecipa uma consciência ecológica que só tomou vulto
no Brasil em meados dos anos 1980, quando a consciência nacional sobre as questões
ambientais passou a ser levada a sério, corroborada por estudos científicos de
maior envergadura. Não fosse isso o bastante, Astrid trouxe temáticas femininas
às suas narrativas, especialmente ao tratar a terra como um “cemitério e
viveiro de sementes”, reforçando a função maternal, equiparando a terra ao
útero feminino; trata-se agora da mãe-terra e da mãe-natureza, mas não só.
Astrid, ao abordar temas como a beleza e a reprodução, e refutando-as como o
ápice das funções femininas, evidencia o ativismo feminista em suas narrativas.
Outro item que me chamou a atenção foi o título
escolhido pela autora, Alameda, que é, afinal, um caminho constituído por
árvores plantadas em fileiras. O que se intui através desta escolha é que
realmente Astrid não quis retratar a natureza selvagem, mas uma domesticada,
singularizada e culturalizada. Ao discorrer sobre esta natureza domesticada,
Astrid, por analogia, fala da nossa própria domesticação frente aos valores
impostos por nossa sociedade.
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Em Destino, por exemplo, uma plantinha se
encontra dentro de um vaso, tomando sol num canto da janela, até que um gato
descuidado a derruba, destruindo o vaso que se parte em inúmeros cacos. A
empregada recolhe os cacos, a planta e os atira pela janela. Esta plantinha,
nomeada por Astrid de “brotinho”, traz a primeira conexão com o humano/a mulher,
visto que brotinho era uma gíria da época que fazia referência a uma moça.
Temos aqui também os temas caros a Astrid, que nos remete à finitude da vida,
da morte que nos colhe ao acaso, ainda que no texto esteja presente certa
mensagem de esperança: apesar das nossas prisões, somos abençoados por
simplesmente existir. Além disso, se atentarmos para o trecho da obra: “Era o
sol que lhe punha aquelas grandes sardas douradas, o ar todo faceiro. Também a pose graciosa com que distribuíra
seus membros, já agora
multiplicados, era convenientemente adequada ao banho de sol [...] A cútis fina, queimada de tempo, engelhava-se até a queda final, que seria mansa, ao arrepio do primeiro vento”, reparamos que a verve
poética de Astrid já se faz presente nas assonâncias, aliterações, nas
metáforas, nas imagens e no ritmo das frases.
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No texto intitulado A cerca, ela que é “uma
árvore sob outra forma’, reflete sobre sua vida, está entregue agora às
intempéries e aos cupins, e se sente culpada pela morte de seu amigo gato, que
caiu de pé em um dos seus sarrafos pontiagudos. De sua abundância de árvore, forte
e firme sobre a terra, ela está reduzida a um corpo estéril capaz de causar a
morte de outro ser. Escrita em tom melancólico, a cerca fala sobre seu
inconformismo e sobre sua degradação, refletindo sobre a inutilidade de tudo,
convencendo-se de que sua vida foi apenas um acaso. Os temas neste conto são o
sentido da vida e a inevitabilidade da morte. Apesar do tom melancólico, o que
me chama a atenção nesta narrativa é a ironia empregada pela autora: a árvore
firme e forte se tornou uma cerca que mal para em pé. A partir desta história
aparente e linear, Astrid traz subtextos potentes: a despeito da estabilidade e
da firmeza que um ser pode ter, todos podem desmoronar de uma hora para outra,
ou: é suposto que uma cerca contenha as coisas, mas a cerca de Astrid não
contém nada, nem a passagem do tempo, nem as ações alheias, ou: a cerca lamenta
ter perdido as referências do passado, de quando era árvore, mas para viver o
presente, o passado não importa, ou: nutrir um sentimento melancólico
previamente à morte é vivenciar a morte em si mesma, ou: o vínculo com as
nossas raízes é o que nos fortalece.
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O conto O parque fala de um parque cujas
“árvores espichadas, esguias, e arbustos baixotes, corpulentos, mantêm-se
atados pela tranquilidade de pedra. Ali a vida não se pui com o uso, não
implica amanhãs e mortes, mas trata-se de uma paz de pedra, marmórea e mortal.
Neste mundo de pedra, é sempre noite. O tema de Astrid nesta narrativa é a
domesticação da própria existência. Este viver de modo mecânico, sem notar se é
dia ou noite, sem atentar para o que realmente importa, é um não viver.
No conto Avispiscis pulcherrima, Astrid fala de
uma árvore imaginada, uma árvore fabulosa, com a capacidade fantástica de se
adaptar a tudo, aos charcos, ao deserto, às geleiras dos polos e que é de uma
beleza inigualável. Apesar da exuberância, ela tem frutos estéreis, incapaz de
deixar descendência, motivo de suas lágrimas. A temática de Astrid nesta
narrativa diz respeito à validação da beleza pela capacidade de reprodução. A
uma planta (mantendo a analogia com relação à mulher) não basta ser vistosa sem
reproduzir, é necessário deixar sementes e descendência para ser validada sob o
olhar dos humanos. São temas intrinsicamente femininos.
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No texto Um grão de feijão e sua história, o
conto mais lindo desta coletânea na minha opinião, grãos de feijão estão sendo selecionados
para serem cozidos, mas um grão é deixado de lado por não atender às
expectativas da empregada. Ele é jogado pela janela e vai parar numa terra
fértil, enchendo-se de esperança, julgando que vai brotar, enraizar e
reproduzir, até que a empregada, que tinha o mau hábito de jogar coisas pela
janela, derrama um jato de água quente sobre ele, desfazendo seu futuro. A
partir desta história singela, podemos pensar em inúmeras inferências, tais
como: só inteiros temos o ‘direito’ de ‘estar no mundo’, ou: a finitude nos
torna tão vulneráveis quanto um grão de feijão, ou: mesmo uma planta é capaz de
sentir, ou: para ‘ser’ algo ou alguém é preciso ocupar um determinado lugar,
ou: é na terra que está a vida; é ela que preserva toda nossa descendência, ou:
é preciso criar raízes para florescer. Astrid abre portas para vários subtextos
e várias interpretações.
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A grandiosidade da obra inaugural de Astrid é notável e pujante, seja nos temas, seja na sua prosa poética, na sua visão à frente do seu tempo, na sua preocupação com o feminismo e nas questões ambientais, fazendo os leitores refletirem sobre a vida através de histórias singelas do nosso cotidiano, lhe reservando o merecido lugar de destaque na literatura amazonense e na literatura brasileira contemporânea. Leiam Astrid!
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| Arquivo da autora |
Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira.
















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