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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

REFLEXÃO SOBRE O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO, POR MARIA DO CARMO SILVA

VIVÊNCIAS POÉTICAS|04 
                                                                                                                    POR MARIA DO CARMO SILVA


Sou de uma época em que o exercício do Magistério era sinônimo de status social, de uma profissão reconhecida, valorizada, respeitada, relevante, destacando-se perante as demais, símbolo de "Poder", que era refletido na capacidade de ensinar! "Ensinar" a ler (via ABC) a escrever, a realizar cálculos (via Tabuada), e sobretudo os valores essenciais à formação humana e cidadã, com destaque para o respeito.

O Diploma do Magistério era privilégio de poucos, quase que exclusividade de jovens oriundos de famílias abastadas que possuíam condições de bancá-los e historicamente era uma profissão tradicionalmente exercida por mulheres que eram conhecidas, reconhecidas e tratadas com reverência como 'Prof.ª'... com um indescritível orgulho.

No dia da formatura, a colação de grau, era o auge! O momento-chave da comemoração, do recebimento do tradicional canudo, simbolizando o Diploma que posteriormente seria entregue, era o "Evento"! Vestidos deslumbrantes que imitavam vestidos de noiva, selavam o tão esperado momento, com direito inclusive a dançar a valsa com o pai ou o padrinho do formando que a partir daquele momento seria Professor(a), exerceria o Magistério.

O indispensável Estágio na pré-conclusão do Magistério já era o prenúncio de que a luta seria árdua e de que o exercício da profissão seria desgastante perante a uma realidade permeada por questões estruturais e sociais que perpassam pelo espaço físico e pelas as estruturas hierárquicas, estruturas estas as quais o(a) Professor(a) deve obediência e que não condizem com a realidade de cada lugar onde a escola está localizada.

A desvalorização salarial também sempre foi um grande entrave para os profissionais do Magistério. É "cultural" prover financeiramente com um salário mais digno, profissionais de outras áreas, a exemplo da medicina, da engenharia,  deixando os profissionais que possuem a responsabilidade de formar todas as demais profissões com um salário incompatível com o trabalho que exercem na classe e extra-classe, não os reconhecendo como aqueles que carregam a responsabilidade de formar todos os profissionais das demais profissões.

Há ainda, na contemporaneidade, o caos gerado pelo contexto social ocasionado pela desestrutura familiar, pelo desemprego, pela fome, pela violência, pelas doenças emocionais que refletem no comportamento dos alunas e alunas, na sala de aula e na dinâmica escolar como um todo, acrescentando a existência de disciplinas e livros didáticos que ainda não estão condizentes com a realidade (local e regional) de vivência do alunado.

Diante de todas estas questões, nós, profissionais da educação, mais conhecidos como professores, refletimos e lembramos com saudades dos bons tempos em que o exercício do Magistério era valorizado a nível pessoal, profissional e social; em que o ambiente escolar era tido como um espaço prioritário de aprendizagem e da prática do respeito e de outros valores humanos e em que a desestrutura familiar e social ocorria numa intensidade bem menor. Fica uma reflexão para os que atuam no Magistério há mais tempo ou na contemporaneidade: O tão sonhado Diploma de uma tão sonhada profissão transformou-se em pesadelo? As aulas on-line no período da pandemia foram um "estágio" para que num futuro bem próximo docentes e discentes se encontrem apenas virtualmente e a sala onde acontecia a dinâmica do ensinar e do aprender, presencialmente, feche suas portas?


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*Fonte das ilustrações do texto: Pinterest.



Maria do Carmo Silva é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

"NEGRA É A COR DA BRASILIDADE", MARIA DO CARMO SILVA

Maria Do Carmo Silva, arquivo da autora

 A LITERATURA COMO FERRAMENTA ESSENCIAL DE HUMANIZAÇÃO: UM ENCONTRO DIALÉTICO ENTRE AS OBRAS RECOMENDAÇÕES POÉTICAS, DE MARIA DO CARMO SILVA, E QUARTO DE DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE JESUS[1]                                                                                                                                     Por Marta Cortezão

 

(...) a literatura é o sonho acordado das civilizações (...) é fator indispensável de humanização (...). A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.

{Antônio Cândido}

           Este artigo pretende mergulhar numa leitura sobre o poder de humanização que a literatura é capaz de exercer aos ávidos olhos leitores. Para esta viagem, embarco na leitura do livro Recomendações Poéticas (Cogito Editora, 2021), onde a autora Maria do Carmo Silva – professora, escritora, poeta de Mutuípe (BA) – a partir de sua escrita, nos descortina um caleidoscópio de importantes reflexões sobre o caótico mundo em que vivemos, mantendo sempre os olhos postos no horizonte das utopias e das esperanças necessárias para as mudanças futuras, estas que urgem ações para a agoridade do  tempo presente, e que cujo ponto de partida é a leitura. A epígrafe que abre o livro já nos aponta o caminho: “O conhecimento liberta e promove o ser humano; a ignorância escraviza e aliena, tornando-o limitado em suas próprias palavras e ações” (Pe. José Roberto da Silva Amaral). E ainda, na apresentação do livro, a autora reforça estes questionamentos sobre esta realidade que tanto a preocupa:

Em um mundo globalizado, onde os olhares e interesses estão direcionados apenas para o capitalismo, voltados para o ter, o poder e a ganância, o nosso cotidiano resume-se à correria em prol do materialismo, dedicando um tempo mínimo para a leitura, ou muitas vezes não a incluindo na nossa rotina. (p.13)

Refletindo sobre estas primeiras páginas, chego ao ensaio Direito à Literatura[2], escrito na década de 80 por Antônio Cândido, onde encontra-se a definição dos conceitos de “bens compreensíveis” (“como os cosméticos, os enfeites, roupas supérfluas”) e “bens incompreensíveis” que são “não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas que garantem a integridade espiritual”. É neste segundo conceito de bens que o autor insere a arte e a literatura, mas com ressalva, pois “só poderão ser consideradas bens incompreensíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora” (CANDIDO: 2011, p. 174). Não tenho dúvida de que a literatura é instrumento de transformação maior, sou prova disso, entretanto minha angústia é constatar o caos – o descaso e desrespeito com a educação, a literatura, a cultura, as artes, a ciência, a saúde e tudo o que sustenta um país que pretende cuidar com seriedade de seu povo – e ainda as injustiças sociopolíticas no Brasil que sucederam o fatídico golpe de 2016, revelando um Brasil onde a aliança fascista ganha força e prospera descaradamente. Contudo é preciso contemplar os “lírios dos campos”, mais que contemplá-los, potencializá-los em sua força de semente, interessar-se pela “terra que o alimenta” e entender de suas fragilidades para que eles floresçam na tão esperançada “primavera política” de 30 de outubro.

Arquivo da autora
Para esta leitura trago também o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus[3], no intuito de plasmar o diálogo interior que me esteve muito presente durante a (re)leitura simultânea das duas obras. Recomendações Poéticas está dividido em quatro partes não intituladas, mas cada uma das partes se diferencia por uma temática predominante. A Parte I, composta de 23 poemas, cuja epígrafe de abertura é um trecho de Parabolicamará, letra de Gilberto Gil , “...Antes mundo era pequeno / Porque terra era grande / Hoje mundo é muito grande / Porque terra é pequena...”, poematiza sobre os povos originários, a História pelo avesso, o Brasil multirracial, a voz negra das Afromemórias do Continente África, o capitalismo que devora humanidades, mas, principalmente, sobre dignidade humana, sonhos e esperança, porque desde o ano de 1500 sabemos que onde há subalternização, também há luta, ainda que a história presente nos livros didáticos nos tenha contado sempre a versão do colonizador:

Historicizando (pág. 26)

História evoca memórias, lutas e resistências.

É o registro de cotidianas vivências.

O tempo permite realizar os acontecimentos.

O ser humano é o sujeito-histórico a todo o momento.

O passado? Deixa suas marcas e memórias.

O presente? Revela mudanças na humana trajetória.

E o futuro? Será constituído pelo misto de histórias

que marcaram o passado, que marcam o presente,

perpetuando a vida dos mais diferentes grupos humanos,

reconhecendo e valorizando a labuta da gente.

E no longe, ouço de meu silêncio, com a voz de Gil, uma resposta cantante: “Esse tempo nunca passa / Não é de ontem nem de hoje / Mora no som da cabaça / Nem tá preso nem foge / No instante que tange o berimbau, meu camará / Volta do mundo, camará / Mundo dá volta, camará”. Venha, mundo, dê suas voltas e deixe o povo no topo da pirâmide! “Que o teu povo possa tornar-se independente, / das mazelas sociais que o desumanizam e o tornam indigente”. (poema Adversa Nação, pág. 33). E a voz do eu poético se junta ao coro no poema:

Afromemórias (pág. 36)

Emergi das profundezas do Lago Vitória.

As raízes do Baobá sustentaram a minha história.

Os meus ancestrais resgataram a minha memória.

A tribo, meu território, ressalta a minha trajetória.

Sou afrodescendente!

Dos quilombos, remanescente!

Não renego a minha gente!

Dói em minha alma a escravidão que a vida

De tantos irmãos fez deplorar!

Os senhores contemporâneos ainda querem me acorrentar!

LIBERDADE é o meu lema! Tenho que gritar!

Sou humana, sou negra! Sou filha da Mãe África!

E em seus braços, eternamente deixo-me por ela embalar!

Um poema-hino para recitá-lo em oração, um poema para profundos questionamentos. Eis que me lembro de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, do que ela escreve em seu diário, no dia 13 de maio de 1958:

 

Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.

(...) Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Eram 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual – a fome! (pág. 27)

Carolina Maria de Jesus, fonte: Pinterest
O fragmento “eu lutava contra a escravidão atual – a fome!” é navalha na carne para os que param para sentir a dor alheia, ainda que não tenham conhecido a “fome amarela” que conheceu Carolina. É a fome um quadro lamentável que escraviza nações e que só cresce no Brasil atual, onde “Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo” (DE JESUS: 1970, p. 38) do Brasil invisibilizado. Outra passagem que me parece dialogar com os versos “Sou afrodescendente! / Dos quilombos, remanescente! / (...) Sou humana, sou negra[4]! /Sou filha da Mãe África! /E em seus braços, eternamente deixo-me por ela embalar!” é a seguinte:


...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:

─ É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. (...) Se é que existe reencarnação, eu quero voltar sempre preta.(pág. 58)

Duas vozes que se confrontam num profícuo diálogo, uma do século XX, outra do século XXI. É o Brasil a passos trôpegos sendo destapado, em verso e em prosa, mostrando-se o quanto nos distanciamos do Brasil de nossos sonhos! Há um Brasil que caminha com os olhos do colonizador, presumindo de uma branquitude que não tem lugar e nem brasilidade/representatividade. Onde está nossa LIBERDADE? A entendemos como instrumento imprescindível de luta para a construção de uma sólida democracia? É urgente conhecer a História de nosso povo, é urgente “assumir nossa cor-identidade, / Libertar-nos: da discriminação histórica, / Da subalterna colonialidade. / Somos negros! / Negra é a cor da brasilidade”. (Ser negro, pág. 39). Somos indígenas, ribeirinhos, caboclos, somos pretos, quilombolas. E para além das muitas e infinitas questões, somos pessoas, somos seres humanos, somos um universo genético em que cabem todas as cores e todas as vozes ancestrais.

A Parte II de Recomendações Poéticas reúne 21 poemas. Neste capítulo são as águas que fluem, primeiramente, na voz/letra de Guilherme Arantes: ...Água que nasce da fonte serena do mundo / e que abre um profundo grotão. / Água que faz inocente riacho e deságua / na corrente do ribeirão. Água, um significante composto de apenas quatro fonemas e que é um mar harmonioso de dicotomias semânticas porque abarca uma amplidão de simbologias. Para Chevalier & Gheerbrant, no Diccionario de los Símbolos, 

Las significaciones simbólicas del agua pueden reducirse a tres temas dominantes: fuente de vida, medio de purificación y centro de regeneración. Estos tres temas se hallan en las tradiciones más antiguas y forman las combinaciones imaginarias más variadas, al mismo tiempo que las más coherentes[5]. (pág. 52)

Arquivo pessoal de Maria do Carmo
Neste capítulo do livro, a água surge como “fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração” da vida. É a matriz geradora, associada ao ciclo da vida, à mãe natureza que nutre mundo e seres vivos; é o princípio, mas também o fim. São os “espelhos naturais” destas águas que “refletem: / a face da mãe natureza / e a diversidade de faces humanas” (Reflexos, pág. 46). Na escrita de Do Carmo, a humanidade é parte da Natureza, destruí-la é também autodestruir-se; o mesmo fogo que devasta o verde da floresta, “incendeia a alma dos pantaneiros” (Devastação, pág. 52). As mesmas labaredas que lambem o solo para a ganância do plantio da soja e do pasto para o gado são as mesmas que consumem a alma humana e que deixam rastro de destruição, como revela o poema:

Descaso (pág. 53)

Labaredas consomem os biomas:

Amazônia, Cerrado, Pantanal.

Fumaça! Fogo! Paisagem desfigurada.

Habitat animal assaltado pelas chamas!

Espécies vegetais desmoronam em cinzas.

Animais jazem esturricados.

O oxigênio sucumbe em meio à poluição.

O fogo persegue os seres vivos.

A devastação interroga o coração humano.

O capitalismo, a ambição, a indiferença

Provocam e aceleram a combustão dos biomas!

A natureza geme as dores pela queima dos seres.

Planeta Terra em caos!

Planeta consumido pelas labaredas do descaso humano e social!

Fonte: Pinterest
No poema acima, se insurge uma voz contra o descaso que se arvora pelo globo terrestre aos olhos cegos de um atual (des)governo brasileiro, enquanto o “capitalismo, a ambição, a indiferença / Provocam e aceleram a combustão dos biomas!”. Na atual conjuntura, temos a natureza e a humanidade sendo envenenadas pela ganância. Em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus reflete sobre suas angústias vividas e sentidas na pele: “o que eu revolto é contra a ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja.” (pág. 41). E você, já interrogou o seu “coração humano” acerca deste ganancioso “fogo (que) persegue os seres” tão carentes de humanidade? Você, em algum momento, silenciou as vozes do mundo para escutá-lo dentro de uma leitura intimista? Parou para pensar sobre o quanto os discursos de ódio consomem o “coração humano” impedindo-o de comover-se com as dores do mundo? De quanto se pode esvaziá-lo de empatia ao não o alimentar com a frescura que o inspira a outros olhares, apesar das agruras? Será que vale a pena justificar o descaso com o próprio descaso? “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.” (DE JESUS: 1970, p.35). Mas Carolina Maria de Jesus é inspiração, nunca se dá por vencida e sabe do poder que pulsa das palavras: “Não tenho força física, mas minhas palavras ferem mais do que espada” (pág. 43). Não permita que seu humano coração se enfraqueça, alimente-o com o vermelho esperança para a Democracia pulsar viva e libertária.

Há uma natureza que busca também regenerar a sua força interior através da beleza lírica, onde a poesia transborda e escorre liquidamente pelos desvãos da alma, refrescando os momentos de tristeza em que paramos para tomar fôlego, até porque também é preciso tecer as próprias belezas para continuar (re)existindo, ainda que o mundo exterior não seja tão animador: 

Lição de pássaros (pág. 60)

A revoada de brancos pássaros sobrevoa o Vale!

Num malabarismo sincronizado, sobrevoa!

Despede-se da rotina diurna.

Proporciona alento aos corações desanimados.

Transporta a noite em suas delicadas asas.

Renova a esperança no coração de outrem.

Carolina Maria de Jesus, fonte: Pinterest
A voz lírica observa a revoada, nela se ver refletida, nela se sente renovada. A rotina diurna que envolve as vidas com seu torpor não é capaz de vencer a utopia pelo cansaço repetitivo que pesa sobre todos nós. Não é, porque a força da revoada atravessa os “corações desanimados” dando-lhes alento. Voar com a mente, com a “revoada de brancos pássaros”, é suportar o peso da “noite em suas delicadas asas”. Não é apenas a força física que sustenta a luta, são os ideais, aqueles que germinam no pensamento e nascem pelo desejo delirante das palavras que se encontram em revoada, convocando para a retomada da luta. De Quarto de Despejo, trago o seguinte fragmento que conversa com Lição de Pássaros:

...O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves passam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe.” (pág. 38)

        O trecho está carregado de poesia, a prosopopeia é a figura de linguagem predominante: “as nuvens vagueiam”, as brisas conduzem “os perfumes das flores”, o sol desperta e se recolhe pontualmente, “as estrelas cintilantes” adornam o azul do céu. E de repente, na voz lírica marginalizada, a dura realidade surge abruptamente e quebra a bela e poética sequência de imagens, ofuscando toda e qualquer beleza e nos puxando para dentro desta realidade. Em ambos os textos, as lições são provenientes das dores cotidianas e adversas, podemos senti-las e nos emocionarmos com estas realidades diferentes – mas ao mesmo tempo similares – que se entrelaçam em diálogos distantes no tempo. Cada autora, a seu modo, vai costurando infinitos na cartografia dos muitos Brasis, pois, como diz a poeta Do Carmo, “A vida é feita de contínuas andanças.” (Adaptação, pág. 64), e são nestas andanças que se vislumbra um universo literário construído, capaz de nos sacudir da cotidianidade e de nos tocar, em profundidade, o mundo das emoções, transformando-nos. Para Antônio Cândido “Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção” (pág. 177).

          A Parte III – composta por 12 poemas – se relaciona com profunda liquidez à Parte II, a Natureza como matriz geradora desaguando em sua abrangência simbólica das águas. Neste capítulo é a mulher, a mãe; é este “ser mulher” transportado pelas águas para o centro do discurso poético. É a poeta Cora Coralina que fornece a epígrafe: “...Eu sou aquela mulher / a quem o tempo muito ensinou. / ensinou a amar a vida... / ...Acreditar nos valores humanos...”. No contexto semântico da mulher genitrix, Chevalier & Gheerbrant afirmam      

que el simbolismo de la madre se relaciona con el de la mar, como también con el de la tierra, en el sentido que una y otra son otros tantos receptáculos y matrices de la vida. El mar y la tierra son símbolos del cuerpo maternal. (…) En este símbolo de la madre se encuentra la misma ambivalencia que en el del mar y la tierra: la vida y la muerte son correlativas. Nacer es salir del vientre de la madre; morir es retornar a la tierra. La madre es la seguridad del abrigo, del calor, de la ternura y el alimento;[6] (pág. 674).

Céu e mar, fonte: Pinterest
Mas neste contexto ambivalente mar/terra, a força criadora, a que fertiliza o mundo, é responsável por manter o equilíbrio do mundo quando presente no coração humano “extremamente carente de Paz! / De Paz interior, de paz no campo, de paz na cidade! / (...) O homem que ignora a Paz caminha nas trevas. / Se a humanidade rejeita a paz, a violência sobre ela impera” (Lição de Paz, pág. 69). A figura mulher-mãe-natureza inspira os melhores sentimentos humanos, como a paz espiritual e canta aos quatro ventos que “A semente do conhecimento brotará” (Crescendo e Empreendendo, pág. 73). Entretanto, a ausência de “um abrigo seguro, de calor, de ternura e alimento” adoece o mundo e os corações humanos e aproxima a humanidade de sua extinção terrestre. A voz poética clama por um despertar deste mundo cego pela ganância do capital:

Clamor da nossa gente! (pág. 77)

Gente brava! Gente brasileira!

Gente que sonha e luta por uma “Pátria Ordeira”!

A Ordem e o Progresso são mera teoria?

O clamor dos teus filhos não te angustia?

Esta gente brasileira clama por respeito e dignidade!

A desigualdade gera os excluídos da sociedade!

Gente brava! Gente brasileira!

Gente que não apenas sonha!

Gente que cotidianamente labuta!

Labuta por justiça e igualdade!

Esta brava gente

clama por Independência e chora as mazelas sociais!

Independência!

Usufruto dos Direitos que deveriam ser para todos iguais!

A Ordem e o Progresso não podem ser utopia!

A gente brava brasileira luta!

Luta por uma vida digna para todos,

não apenas para uma minoria!

Gente brava! Gente brasileira!

Gente que luta, resiste e persevera,

Na conquista da “Independência Verdadeira!”

          Nos deparamos com um queixoso clamor de uma voz lírica que protesta pela desigualdade social e que sente todas as dores deste mundo enfermiço. A voz de Carolina Maria de Jesus também se levanta contra estas mazelas sociais sempre tão presentes nos nossos Brasis, sentenciando: “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la (...) O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” (pág. 26). A fome é inegável, está no prato dos desamparados pelas políticas públicas, está nas estatísticas diárias, está em cada esquina, nas ruas, nos semáforos, sinalizando e escancarando um mundo decadente e desumano a nossos olhos. “E as lágrimas dos pobres remove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos representam em relação ao povo” (DE JESUS: 1970, p. 47).  A Literatura é esta trincheira que se abre dentro de nós, em confronto com outras realidades e que tem o poder de nos humanizar, já que a literatura “tira as palavras do nada e as dispõe como um todo articulado (...). A articulação da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. (CANDIDO: 2011, p. 177).

Arquivo da autora
A Parte IV, último capítulo de Recomendações Poéticas, composta de 30 poemas, se abre aos olhos leitores com a epígrafe “Os poemas são pássaros que chegam / Não se sabe de onde e pousam / No livro que lês. /quando fechas o livro, eles alçam voo...” (Mário Quintana). Neste capítulo, há temas que tratam de momentos vividos na pandemia, mas o que prevalece é a metapoesia. A autora usa o seu conhecimento sobre o fazer poético para falar de poesia de seus mundos, assumindo-se poeta:

Universo Poético (pág. 83)

Instante é o tempo do poeta.

A vida do poeta é a poesia.

Sou poeta!

Edifico a poesia e nela permaneço.

A poesia me tocou,

floriu o meu deserto interior.

Causou arrepio, temor, mas ao livro chegou.

Sou poeta!

Escrevo, reescrevo,

expresso em verso meus mundos:

o interior e o exterior.

Maria Carolina de Jesus, fonte: Pinterest
Para o eu lírico, a escrita e a leitura são os dois lados de uma mesma moeda. Lavrar a palavra é uma viagem pelo silêncio do “deserto interior” e pelo universo das emoções até chegar ao livro; é o trabalho paciente de escrever e reescrever seus “mundos: / o interior e o exterior”. É buscar o tempo para a construção e organização da palavra no complexo universo da literatura de caráter contraditório mas humanizador, ou naquilo que humanizador porque aprofunda-se no contraditório (CANDIDO: 2011, p.176). A força transformadora da literatura transborda em Quarto de Despejo: “Enquanto as roupas corava eu sentei na calçada para escrever” (pág. 16); ¨Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem” (pág. 18); “É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela” (pág. 20). “Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler” (pág. 23). Em ambas as autoras, a escrita e a leitura são prioritárias apesar das dificuldades diárias. Podemos dizer que para além da leitura, o ato de escrever também é uma forma de empatizar com o mundo ao redor, criando possibilidades e agindo por meio delas no mundo através de releituras intimistas. Através da escrita, Carolina pôde realizar o sonho de sair da favela do Canindé, atual Marginal Tietê de São Paulo.

          Do Carmo, no poema abaixo, chama a atenção para as muitas possibilidades de leituras de mundo. Para alcançá-las é preciso deixar corpo e mente a postos para a prática da leitura diária e de compromisso, pois ler é mais que uma ação, é uma necessidade orgânica:

Multileituras (pág. 88)

Leio com a mente.

Leio com os olhos.

Leio com o coração.

 

Leio com a razão.

Leio nas entrelinhas.

Leio com emoção.

 

Leio sob a luz do sol ou da lua.

Leio na penumbra da escuridão.

Leio refletindo sobre o cotidiano dos seres.

Leio a vida na sua diversidade e amplidão!        

Maria do Carmo Silva, arquivo pessoal
O poema Multileituras traz o desfecho destas minhas andanças pela escrita de Maria do Carmo, em Recomendações Poéticas, e de Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo, pois, nas obras destas duas autoras, eu também (re)escrevo-me e (re)leio-me e “Leio a vida na sua diversidade e amplidão”, agarrando-me à força humanizadora, presente naquilo que afirma Antônio Cândido sobre este justo e necessário “direito à literatura”:

Entendo aqui por humanização (...) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (pág. 180).

          Mas não posso ir embora sem antes louvar e agradecer a resistência e existência do povo nordestino, orgulho brasileiro, apropriando-me, para isso, do fragmento do poema Identidade Nordestina (pág. 34), da autora Maria do Carmo Silva:

O Nordeste existe, insiste e resiste!

O Nordeste é o meu quinhão!

Nordestino sou de coração!

Não aceito discriminação!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, Hanna. La Pluralidad del mundo. [libro digital]. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2019.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. [livro digital]. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.

CANDIDO, Antônio. Vários Escritos. [Organização do próprio autor]. São Paulo: Duas Cidades, 4ª edição, 2011.

CARMO, Silva do. Recomendações Poéticas. Salvador: Cogito Editora, 2021.

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Diccionario de los Símbolos. Barcelona: Editorial Helder, 1986.

DE JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. 90º Milheiro, Edição Popular, 9ª ed., 1970.

ECO, Humberto. Os limites da interpretação. Pérola de Carvalho [Trad.]. [livro digital]. São Paulo: Perspectiva, 2015.

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Milton Japiassu [Tradução e organização]. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.



[1] A primeira versão desse artigo foi publicada na Revista Literária Voo Livre, edição nº 27, Outubro de 2022.

[2] CÂNDIDO, Antônio. Vários Escritos. [Organização do próprio autor]. São Paulo: Duas Cidades, 4ª edição, 2011, p. 174.

[3] Carolina Maria de Jesus (1914-1977) nasceu em Sacramento (MG). Cursou apenas a primeira e a segunda série do antigo ginásio. Escritora brasileira que ficou conhecida após a publicação do best seller autobiográfico Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, em 1960, edição do repórter Audálio Dantas. Com o sucesso alcançado nas vendas, Carolina logra abandonar a favela e passa a residir no Alto de Santana (SP). Nos anos seguintes publica: Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada (1961), Pedaços da Fome (1963), Provérbios (1965).

[4] Deixo um link que faz uma interessante abordagem sobre os sentidos semânticos dos adjetivos “preto” e “negro” que vêm sendo bastante discutidos em nossa contemporaneidade: https://www.youtube.com/watch?v=bu4aBxrYGJU

[5] As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração. Estes três temas se encontram nas tradições mais antigas e formam as combinações imaginárias mais variadas, ao mesmo tempo que as mais coerentes.

[6] que o simbolismo da mãe se relaciona com o do mar, como também com o da terra, no sentido que uma e outra são outros tantos receptáculos e matrizes da vida. O mar e a terra são símbolos do corpo maternal. (…) Neste símbolo da mãe se encontra a mesma ambivalência que no do mar e no da terra: a vida e a morte são correlativas. Nascer é sair do ventre da madre; morrer é retornar à terra. A mãe é a segurança do abrigo, do calor, da ternura e o alimento;

segunda-feira, 26 de junho de 2023

MEMÓRIAS DO SÃO JOÃO DE OUTRORA, POR MARIA DO CARMO SILVA

 

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VIVÊNCIAS POÉTICAS|03 

MEMÓRIAS DE SÃO JOÃO DE OUTRORA

POR MARIA DO CARMO SILVA

O Nordeste do Brasil é referência na celebração dos festejos juninos. Embora tenha sido trazida pelos portugueses, a tradicional festa de São João é uma das maiores expressões da cultura popular brasileira, sendo comemorada nas comunidades rurais e urbanas com grande intensidade, congregando pessoas de todas as classes sociais. Entretanto, a forma desta celebração tem sofrido significativas mudanças, adaptando-se aos padrões culturais da modernidade.

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As minhas memórias da infância trazem à tona inesquecíveis lembranças de um período do ano marcado por cores, sabores, música, dança e alegria, o tão esperado mês de junho! O frio e a chuva típicos da época, anunciavam os festejos da tradicional e tão aguardada festa de SÃO JOÃO. E quando o mês de junho se aproximava, o povo comentava: “São João tá na porta!” Era grande a expectativa para a festa de São João! E o tão esperado 23 de junho, véspera de São João, finalmente chegava! A fogueira era o grande símbolo deste grande dia, sendo religiosamente armada em frente às casas, tendo ao seu lado um ramo erguido, um galho de árvore, ornamentado com bandeirolas, laranjas e espigas de milho. As ruas e as casas eram enfeitadas com bandeirolas de papel de seda. As meninas usavam vestidos de chita, cabelos penteados com duas tranças com laços de fita e nas maçãs do rosto pontinhos feitos com lápis preto. Os meninos usavam camisa de chita e chapéu de palha. Tudo e todos caracterizados aguardando o entardecer (boca da noite) para acender a fogueira, em suas brasas assar o milho e visitar as casas dos vizinhos onde sempre eram servidas as comidas e bebidas típicas: canjica, amendoim, milho cozido, laranja, licôr, pipoca. Após assistirem a fogueira queimar, era costume as pessoas saírem de casa em casa, visitando vizinhos, parentes e amigos, onde todos comiam, bebiam e arrastavam o pé ao som da sanfona ou da radiola que tocava o animado forró. E neste ritmo, amanheciam o dia! Reza a lenda que nesta noite não se dormia. No dia seguinte, o dia de São João, a comemoração prosseguia: juntava-se o que sobrava da fogueira e nela colocava-se fogo novamente. Ao seu redor, as famílias e vizinhos se reuniam para assar o milho e prosear. Era a festa mais linda do ano! O calor da fogueira aquecia o frio, as chamas da fogueira iluminavam as ruas, as bandeirolas tremulavam atraindo os olhares com suas cores vibrantes, as pessoas partilhavam conversas e repartiam com prazer as comidas e bebidas típicas.

Atualmente, os costumes que davam vida ao tradicional São João foram substituídos pelos hábitos da modernidade, restando apenas lembranças e saudades de uma festa genuinamente popular, comemorada com simplicidade, sem ostentação, onde o que prevalecia era a confraternização e a diversão! Na contemporaneidade, a literatura vem resgatar a vivência destes festejos para que sejam conhecidos pela posteridade.

 

FESTA BOA

 

Maio finalizava,

O povo já anunciava:

São João tá na porta!

Á meia noite do último dia de maio:

Fogos anunciavam o tão aguardado mês festivo.

Dava-se início aos preparativos:

Lenha para a fogueira armar,

Bandeirolas para casas e terreiros enfeitar,

Roupa nova para ir forrozear.

Forró pé de serra, era o estilo musical a predominar!

Tinha arrasta-pé aqui e acolá.

O destino do povão era o Arraiá!

Não faltavam o milho, a canjica, o amendoim e o licôr.

Todos forrozeavam: criança, adulto, vovó e vovô!

O braseiro da fogueira assava o milho a todo vapor.

Êta tempo bom, Sô!

Maria do Carmo Silva

Poeta, professora e escritora.

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Maria do Carmo Silva é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

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