V E R B O M U L H E R|05
P I N T O U U M C L I M A
POR HELENA TERRA
Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.
Eu
já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de
bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do
Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior
parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até
para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o
arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as
mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí,
acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma
metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande
erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,
Ou seja, a partir de certo momento, a covardia
é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não
do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam?
Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para
responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o
Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal,
ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança
não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia
vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista,
experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.
Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze
anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de
simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e
emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que
geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média,
que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que
elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades
de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao
lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de
um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito
e sob que condições nos querem.
Condição,
aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de
homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você
está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência
verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui
por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos
espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de
você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco
se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso
do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em
seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da
ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a
educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar,
gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.
Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:
1. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida?
2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.
E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.
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Parabéns, Helena!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirÉ a Rossana. Maravilha de texto!
ResponderExcluirObrigada, Rossana! 😘
ExcluirTexto profundo e verdadeiro!
ResponderExcluirObrigada, Sandra! 😘
ExcluirHelena, você é uma escritora incrível ! Amo seus textos, me identifico em muitos aspectos com seu olhar agudo sob temas tão ásperos. Obrigada pela busca , sabemos que dói, mas é necessário! Beijos!
ResponderExcluirObrigada, Rita! Você também. 😘
ExcluirUau! Pintou um clima com tua
ResponderExcluirescrita querida Helena, e te cuida que eu volto viu? rs.. Parabéns ! Você tem nos encantado com seus textos viscerais e necessários. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻😍
Obrigada, Rinelte! A escrita nos une. 😘
ExcluirQuanta riqueza e profundidade nesse texto 👏🏼
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirSangra, nos entristece, nos acompanha. A sociedade nos acusa, justifica o abuso, acalenta o agressor e nos fere repetidas vezes, perpetuando o abuso. Texto
ResponderExcluirPois basta, né, Avelina? Não podemos nos submeter e calar. Beijos
ExcluirImpressionante e pensei ao ler teu texto Helena que seguirei aprendendo a ser menos machista. Obrigado
ResponderExcluirÉ um aprendizado para todos e todas e todes!
ExcluirExcelente, necessário, impactante, brilhante! Adoro e admiro muito sua escrita Helena!
ResponderExcluirObrigada, Flávia querida! Fico muito feliz. Também admiro a tua e a ti. 😘
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