sexta-feira, 28 de outubro de 2022

VERBO MULHER: PINTOU UM CLIMA, POR HELENA TERRA

 


V E R B O   M U L H E R|05

P I N T O U   U M   C L I M A 

POR HELENA TERRA 

          

        Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.

        Eu já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí, acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,

    Ou seja, a partir de certo momento, a covardia é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam? Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista, experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.

       Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média, que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito e sob que condições nos querem.

     Condição, aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar, gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.

      Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:

1.  Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida? 

2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.

     E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt).

18 comentários:

  1. É a Rossana. Maravilha de texto!

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  2. Helena, você é uma escritora incrível ! Amo seus textos, me identifico em muitos aspectos com seu olhar agudo sob temas tão ásperos. Obrigada pela busca , sabemos que dói, mas é necessário! Beijos!

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  3. Uau! Pintou um clima com tua
    escrita querida Helena, e te cuida que eu volto viu? rs.. Parabéns ! Você tem nos encantado com seus textos viscerais e necessários. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻😍

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    1. Obrigada, Rinelte! A escrita nos une. 😘

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  4. Quanta riqueza e profundidade nesse texto 👏🏼

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  5. Sangra, nos entristece, nos acompanha. A sociedade nos acusa, justifica o abuso, acalenta o agressor e nos fere repetidas vezes, perpetuando o abuso. Texto

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    1. Pois basta, né, Avelina? Não podemos nos submeter e calar. Beijos

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  6. Impressionante e pensei ao ler teu texto Helena que seguirei aprendendo a ser menos machista. Obrigado

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    1. É um aprendizado para todos e todas e todes!

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  7. Excelente, necessário, impactante, brilhante! Adoro e admiro muito sua escrita Helena!

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    1. Obrigada, Flávia querida! Fico muito feliz. Também admiro a tua e a ti. 😘

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