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quinta-feira, 25 de maio de 2023

A PELE DA PITANGA DE JÉSSICA IANCOSKI, POR ROZANA GASTALDI COMINAL


POVO GUERREIRO, SEU CANTO OUVI!

 POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Foi a capa de A pele da pitanga que me fisgou! A textura das mãos me fez da lembrar da casca amarronzada da pitangueira, por vezes pode ser acinzentada como a do quintal de casa,  em contraste com as pitangas suculentas, saborosas à mostra sob o fundo verde com o pseudônimo Eugênia Uniflora estampado numa pontas, e, na outra, o poema curto “Uniflora”: é urgente/ sermos menos eu/ e mais eugênias.

Quando comecei a ler o livro, impossível não contextualizá-lo dentro do Acampamento Terra Livre – ATL, em Brasília, no abril indígena. São 18 anos realizando encontros com indígenas de todo o território brasileiro, experiências compartilhadas, manifestações e quebra de tabus que impulsionam candidaturas indígenas. Mulheres indígenas, mulheres biomas, mulheres ancestrais vão aldear a política, assim como alguns poucos indígenas já ocupam cargos políticos de destaque no cenário municipal, estadual e federal. 

A mente é uma via expressa em alta velocidade, por ela percorrem palavras, pensamentos, pisadas, podas, pulsos como se fosse um body jump linguístico. Essa é a reação que vou sentido a virar cada página do livro. E me vejo dentro dele, como se fosse parte do processo, pois eu gostaria de ter escrito A pele da pitanga, de Jéssica Iancoski.  Tanto a temática é relevante e necessária – as questões indígenas – quanto forma e conteúdo nas construções que usa para estruturar seus poemas, metalinguagem que fascina. Também o prefácio-nocaute de  Kaê Guajajara, de imediato,  aponta breves iscas para provar do que estou falando. Estão nos poemas  as questões dos pensamentos tutelares dos povos indígenas, apagamento histórico,  as questões de demarcação de terras e sua incorporação para a agricultura e também ocupação de espaços urbanos pelos indígenas.  Incluindo o papel da arte em tempos  de luta, como vetor de resistência para a cultura e ancestralidade. Como é vista a presença indígena na arte brasileira – imaginário e identidade. 

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No princípio foi o ADVÉRBIO, acessório que pode ser usado ou não. No entanto quando “a palavra é tinta genocida/ e desmancha facilmente o advérbio/ pororocas levantando sangue de verbo/ jorrando brasis sem modo/ com intensidade, lugar e tempo/ e demasiada negação desmatada/Macunaíma desvairada” (p.11), o ornamento fica impregnado no verso, não há como tirar a palavra “avermelhada/ talvez carnívora e pouco reflorestada” diante do curral desgarrado do desgoverno: “ao pé de mesas de paubrasília”. Torna-se parte integração da oração.

Em MÃE GENTIL “a palavra que ecoa/ e lavra a palavra/ sem decência/ da violência nacional// descendentes/ do/ estrupo — raiz da/ democracia racial (p.25). Questiona em A PÁ E A LAVRA: “e a palavra o que é?// :a abalança da justiça/ sempre pesa em vintém// sopé do monte pascal/ maré trouxe cabral/ pontapé da imposta fé/ legado do capital-café” (p. 96). BANCADA BOI BALA BÍBLIA vigora em pleno século 21: “bancada ruralista/ evangélica armamentista// num só bloco//. bando ameaça/ minorias do brasil// (p.43).

Dos poemas visuais, o primeiro  o encantamento se eleva pela variedade de árvores diversas em NOTA, mas  sabendo o resultado quando da floresta derrubada, porque  valem mais: cifrão solo lenha tora// grão/ gado papel e nota (p.52). Denúncias que não passam imunes pelo registro da foto de madeiras cortadas: DESMATAMENTO ILEGAL (p.38-39) e pelo grafite que contesta: MORTE AO AGRO na parede  com desenho de dedo “fuck you” (p. 50-51. Vale acrescentar na batalha deste conjunto o AGRO É POP que contém forte apelo contra  a indústria do agronegócio, até simula uma imagem do patrão matador com arma não ao som de pop, pop, pop. São as “cenas de apologias feudais/ herança  colonial/ dos sacanas  (p.53). O segundo momento  de mira certeira é com ARCO E FLECHA. Embora agora o alvo seja a selva de pedra, pois mora na favela, indígena é a aldeia/ na veia/, continua guerreiro de sua etnia (p.89).

Outras construções envolvem mobilidade, se assemelham à prática do parkour, a desbravar percursos, fazer saltos pelas etnias em versos. IBIAPINA  é combinação de yby: terra + apin: rapado, pelado, que significa terra pelada em tupi. Antiga terra da nação tabajara no CE. Ali há mais que palmeira: “macaba/ emburi/nidaiá” e  sabiá: “guirá/jacu macuco/maritaca/tangará”  (p.16), referência explícita à “Canção do Exílio” de Goncalves Dias, escritor do Romantismo brasileiro. Na fase nacionalista de GD, fauna e flora brasileiras são exaltadas, o jovem se encontra em exílio voluntário estudando em Coimbra. Os AUTÓCTONES estão aí: “o brasil não é o rio/ de janeiro a dezembro/ já dizima os nativos/ Kara’ivwa Oka/ cari.oca/ casa de branco” (p.17).

MAMA NA TETA DA MATA é daqueles trava-línguas imperdíveis: quem “desmata/mata não só a mata// matam a mata/ matam à bala//a boca branca bebe e/ mama na teta da mata// mata  e mama// mamam e mata/ é mamata”. Já conhecem esse refrão, não é? (p.40). Com a força da palavra falada, portanto, é batalha de slam com ritmo, entoação, modulação da voz, uma verdadeira performance com a voz, o canto, a música, o máximo da interação com linguagens múltiplas para a diversidade. Destaca as 12 principais línguas nacionais que ficaram neutralizadas pelA LÍNGUA BRASILEIRA, assim a  “política pombalina permitiu/ maior domínio sobre brasileiros// (p.57). Realmente resistência e controle ultrapassando os obstáculos.

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Resistência  como verdadeira aula de AULA DE HISTÓRIA com a voz  daqueles que sobraram para contar como  foi a invasão durante o período colonial, pois muitas tribos foram para sempre dizimadas. Ao longo dos séculos “a perda dos valores e das identidades” nos aniquilam (p.56). Não há como ficar indiferente diante  disso, manifestação em qualquer linguagem como prova da lição aprendida é o mínimo que nos resta como leitores ávidos dessa jovem escritora.

Dá para ver o quanto a intertextualidade é um dos exercícios mais criativos para a composição poética. Ao trazer a referência do ponto inicial, há que se dar conta de uma análise vasta de várias transições e surgem tantas analogias! No Romantismo brasileiro, na fase indianista idealizada, temos de um lado José de Alencar que eternizou IRACEMA como a virgem dos lábios de mel, consagrada a Tupã. A índia, filha do pajé Araquém da nação Tabajara, foi  transformada  no anagrama mais poderoso: AMÉRICA, atualmente sua extensão se agiganta. Em NINGUÉM É IRACEMA,  a imagem da indígena romantizada cai por terra: “ ninguém é Iracema/ passiva, submissa/ erotizada// a visão colonialista/ atrasa a autonomia// identidade não é acessório// (p.55). Mulheres indígenas têm suas vivências, constroem narrativas, têm necessidade de criar.

Das escritoras indígenas sobressai Eliane Potiguara com seu livro Metade cara, metade máscara, porque ela valoriza a comunidade indígena a partir de “projeto consciente de vida pessoal e também coletivo de manter vivas as tradições ancestrais, a cosmologia e a herança espiritual, aliadas ao engajamento político,  afirma Dorrico (2018). Bate no peito um senso de justiça ao ver o protagonismo de Eliane Potiguara, valorizando a representação da mulher indígena que aceita beleza e força no corpo feminino. Em seu poema BRASIL, o eterno questionamento: “Que faço com minha cara de índia?// Não sou violência/ ou estupro// Eu sou história/ Eu sou cunhã/ Barriga brasileira/ Ventre sagrado/ Povo brasileiro.// Ventre que gerou/ O povo brasileiro/ Hoje está só.../ A barriga da mãe fecunda/ e os cânticos que outrora cantavam/ Hoje são gritos de guerra/ Contra o massacre imundo”. Brota no peito um amor assim desmedido para as futuras gerações do Brasil. Aprendizado constante com a ancestralidade que envolve sentimento, memória, história, respeito pela diversidade cultural.

De outro lado, ressalto o quanto Gonçalves Dias foi primoroso na construção de “I-Juca Pirama” (que em tupi significa “o que há de ser morto”), poema longo que narra a história de um guerreiro tupi que conduz o pai cego pela floresta. Quando este lhe pede comida e bebida, o filho, à procura de alimentos, cai prisioneiro dos timbiras. Os guerreiros timbiras, num ritual antropofágico, devoravam os inimigos, desde que ele não manifestasse covardia. Dramática saga vivida pelo último descendente da tribo Tupi, no momento de sua morte:“Sou bravo, sou forte,/ Sou filho do Norte;/ Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. Embora não fosse porta-voz da cultura indígena, GD deixou vasta contribuição, dedicou ao estudo da etnografia e da linguística, além de passar um tempo na Amazônia, período em que fundamentou as obras Brasil e Oceania (1852) e Dicionário da língua tupi (1858). Especula-se que tinha origens indígenas, pois que era filho bastardo. Povo guerreiro da tribo Tupi, seu canto ouvi! ecoa até hoje em mim, em seus descendentes, e, irmanados, com eles, queremos outros 500 para contar outra versão da história. Apesar dos pesares, ainda resistem e querem existir como parte integrante do Brasil. Prevalece, portanto, o canto da vida!

Canto esse que parece se esvair quando se contrapõe aos INDÍGENAS URBANOS, que “ buscando/ raízes longe da natureza/   procurando sobreviver// pesa o pescoço// sobre o cálcio dos ossos/petrificados// municípios e edifícios/inteiros levantados/ sobre tanto tanto tanto/sangue derramado// (p.76). A ilustração que antecipa o poema exibe a novas moradias amontoadas. com “a liberdade perdida de nadar em águas cristalinas”, agora resta  vencer a força que horizonta ( p.74-75). Outro alerta nas placas de cimento de possíveis favelas: É INDÍGENA PORRA! Deslocados, os indígenas estão em todas as partes (p.80-81), prestem atenção! TUDO AQUI É TERRA INDÍGENA na parede lascada com placa branca de ALUGA-SE AMÉRICA LATINA, total descaso da “:pindé/rica”, é pilhéria, pois, antes, Pindorama soava grandiosa (p. 30-32).

Esse tipo de apagamento histórico é acentuado pela melopeia  apresentada em  O ÍNDIO DO GRINGO: “é um restingo, um restingo// um lingo-lingo, um lingo-lingo//  um pingo, um pingo/,  como se fosse “um xingo, um xingo” a um ameríndio, um ameríndio”, o que reforça a visão estereotipada que se tem do indígena em todo o continente americano por “um Ilídio, um Ilídio”,  (p. 79). Enquanto isso, em terra sem lei, corre solto o  eco  na “ terra de rei”: “ei ei ei ei ei” que se estende em  GAVETAS DE MADEIRA DE LEI: “ei ei ei ei”,  “florestas são engavetadas/pessoas são engavetadas// Ipê Tatajuba/ Cumaru Teca Jacarandá Cedro Jatobá//  com a gana de quem? “ei ralé / fazendo uma/ grana branca// (p.94).  Percebe-se, ainda, o quanto  aliterações permitem que o jogo de palavras para desqualificar o colonizador. Afinal, os  homens de bem, políticos na bancada para maracutaias, fazem “estropício estropiado” (p.11), “são bando de criminosos/ conservadores/ covardes”, aqueles da BANCADA BOI BALA BÍBLIA (p.43). Eis a “caucásia clara cândida” jogada na cara do povo servil (p.95).

Poderia ser incoerência o uso da palavra índio em sua raiz, qual delas? a tupi? a guarani? Com essas povoações mais pacíficas José de Anchieta fez a catequização e a sistematização do nheengatu, língua geral amazônica em tupi moderno. Dos séculos 16 ao 19, foi a língua mais usada no Brasil tanto pelos indígenas quanto pelos portugueses, afinal era o idioma corrente, a língua boa. Até o século 19 a língua nheengatu foi falada  no litoral do Brasil, ainda hoje é falada nas tribos da Amazônia. Isso indica o quanto a língua é viva, dinâmica. Percebo que há  sarcasmo expresso em RADICAL quando Jéssica Iancoski usa: “:tudo é índio- “// ídios- não há”// indioleto indioma// indílios/indiovidual/ indiolatria indiotipo// e na corruptela NE’ENG: “é tudo é do índio”//“-ídio -ídio -ídio”/ é idiotice. Um contra-ataque ao nhenhenhém  verborrágico dos idiotas, ao comportamento idiossincrático de quem cria estereótipos de grupos sociais (p.28-29).

Por fim, LÁPIDE é o êxtase para mim: “pedra/poema/lápide” (p.68). Epitáfio sem memórias, quem quer isso?  Todos desejamos a HERANÇA mesmo que “errança” “de legados/ levantados”  “pela/ língua/ calada// ou afiada (p.97). Tanto que já fiz a minha singela pedra tumular, logo posso morrer em paz. O poema de minha autoria “Memórias ancestrais”  que integra a coletânea I Tomo das Bruxas – do Ventre à Vida,  nasceu após a leitura do livro de JI. Quando algo mexe muito comigo, naturalmente, me expresso na linguagem poética. Isso foi no primeiro semestre de 2022, tempo em também concluí a resenha. Imagine depois como me senti ao ver  A pele da pitanga entre os 10 finalistas do prêmio Jabuti  na categoria Poesia?

Tenho cá para mim que A pele da pitanga será um daqueles tratados de vanguarda, bem pertinente  tal qual a proposta de Jéssica Iancoski em “100 anos depois: O que é a poesia?” que lança aos autores contemporâneos  temas com viés provocativos em  relação à Semana de Arte Moderna de 1922. Com base sólida em ascensão: podcast, revista e editora Toma Aí Um Poema avança sob a regência de Jessica Iancoski que tem esse caráter em sua produção poética assim como a diversidade e a experimentação estão em seu dna. O público, às vezes, aceita mais rápido as mudanças em estilos literários do que a própria crítica que ainda se apega aos parâmetros de preciosismos da linguagem. Claro que metáforas, comparações, metonímias, ironias, paralelismos são sempre bem-vindos, assim como rimas ricas, raras. Rimas pobres são clichês necessários atualmente, refletem o empobrecimento da linguagem não da autora, é óbvio, mas em relação a  tudo que está sendo apregoado como modelo de educação pelo desgoverno, um desfavor  ao ensino público de qualidade e à valorização do professor enquanto pessoa e profi$$ional bem remunerado. Sonho nosso sei bem disso. Entretanto é nisso que acredito: no ciclo da terra com seres humanos que cuidam da natureza porque, antes, cuidam, daqueles que dedicam a plantar, colher e ser: MILHO NA TERRA CRESCE CRESCE: “cereal, ceres/ seres/ vida” da mesma forma que pitanga: “o fruto nutre/ quando pinga e/ a vida sangra/ o grito vermelho/ y’piranga”. Demarcação já das terras não das lápides! Esse é o novo brado retumbante às margens de qualquer rio com água potável, em abundância, que, livremente, escorre pela nossa pele, nossa terra. 

Para a próxima edição, ficam algumas sugestões:

1.  Um descuido, talvez, na página 18 pelo elo de ligação pode dar a impressão de que falta revisão ao poemas. Parece que foi intencional por parte de Jéssica Iancoski, para  sentir juntos aos leitores e aos críticos a reação deles. Como se os erros e a desatenção fosse para com nossa atitude em se tratando das questões cruciais  da população indígena brasileira, principalmente. Legado histórico negado aos povos primitivos desta terra que em tudo se plantando dá.  Tudo é muito novo quando se trata de apropriação com respeito pelo outro, por isso rever conceitos e adequações gramaticais podem nos dar outra perspectiva e ampliar nossa escrita. 

2. Na pontuação, tiraria mais vírgulas, visual mais limpo, espaço entre as palavras são suficientes para indicar que é outra palavra, como se estivessem aprendendo um nova língua. Outros sinais gráficos incomodam? A mim não, é brincar, é desenhar, às vezes causa impacto, às vezes não. Nem tudo vai funcionar 100%, então melhor não arriscar? Arrisque e aguente o tranco!

3. O poema MODA EM P&B poderia ser dividido em 2 partes: “o pulmão brasileiro do mundo/ está sendo comprometido/ tal qual vírus maligno (...)// todos os pareceres padecem/ enquanto a flâmula/ arvorada no mastro principal/ se empalidece em cada alvorada// - parte que retrata o desmatamento em exponencial. Já a última estrofe da página 92 viria para o início da página 93 com o mesmo formato, fazendo par com a estrofe final, sendo  flâmulas desbotadas. Ou  deixar para quem ler inventar outras possiblidades.

4. Após meus apontamentos, para me certificar de que estava caminhando num exercício para reantropofagizar, ver de novo o que não foi visto, fui ler o livro Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção, organizado por Julie Dorrico e outros, disponível em https://www.editorafi.org/438indigena. Satisfação garantida comigo mesma e com a leitura proporcionada pelos poemas de Jéssica Iancoski. Porque a luta é diária, não há trégua enquanto houver genocídio, garimpo ilegal e desmatamento de florestas em terras dos povos originários. Nesse caso, literatura é denúncia, é ato político de intervenção, visto que a poesia traz técnica e experiência estética, experimentar-se para registrar seu lugar no mundo.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta e professora

Hortolândia-SP

junho de 2022

Bibliografia

DORRICO, Julie. et al (Org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. Disponível em: https://www.editorafi.org/438indigena. Acesso em: 19 junho 2022.

GONÇALVES, Dias. I Juca Pirama. Disponível em

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/jucapirama.pdf. Acesso em 19 junho 2022.

IANCOSKI, Jéssica. A pele da pitanga. Toma Aí um Poema, 2021. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1Fz7yl_c28jVq7Hi-DWSKoXEWRMMGPPtJ/view

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, 3ª ed. Grumin, 2018.

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Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).


quarta-feira, 22 de março de 2023

MOSAICO DE IDEIAS: UM TANGO PARA EULÁLIA, POR SANDRA SA'NTOS

 

[Imagem Pinterest]

MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|03

U M  T A N G O   P A R A   E U L Á L I A 

POR SANDRA  SA'NTOS


Pela música que invade nossas almas, por um sonho, pela dança, pela poesia, e principalmente pela nossa liberdade. Dancemos com Eulália.


O hotel em que estavam hospedados era antigo, chique e pretensamente “Cult”. Tão refinado quanto ultrapassado, lindo mesmo assim. Eulália estava com Jairo em Buenos Ayres para algo que ela considerava uma espécie de lua de mel.

Para ela que crescera em uma família humilde, tudo era novo e deslumbrante. A cidade era especial, as pessoas que passavam pelas ruas combinavam tanto com o cenário que pareciam colocadas ali, apenas para enriquecê-lo. Figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem. Mas, apesar da beleza do ambiente, e de toda a preparação para essa viagem, ela tinha uma terrível sensação de estar no lugar errado. 

Apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais velho, responsável pela reviravolta em sua vida. Uma paixão incontrolável os envolvera, e há pouco haviam se assumido como casal pois, até então, eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez, por isso a incômoda sensação de não merecer estar bem a inundava. Tentava bravamente afastar os pensamentos conflitantes que lhe povoavam a mente, acreditando que a aura de criminalidade, ficaria para trás. Depois de tudo o que enfrentaram para ficar juntos, seria natural sentir-se em paz na companhia dele, porém, pelo contrário a sensação de alegria insistia em se afastar.

- Talvez seja apenas uma questão de tempo. É tudo muito recente. – Pensava consigo mesma.

Jairo de todas as formas possíveis, fazia com que ela se sentisse amada. Mas, agora ali longe de casa, a única coisa que ela sentia era medo e insegurança, além de uma latente intuição lhe tirava a tranquilidade. O homem por quem se apaixonara, em alguns momentos, parecia-lhe um estranho, e Eulalia via pequenos sinais que a incomodavam em suas atitudes. Algo não estava certo.

- Será que nos precipitamos? Será que eu me precipitei? – Inconformada com a sensação, estava decidida a fazer o que fosse possível para sentir-se mais calma, afastando como podia os pensamentos para longe.

Saíra de um relacionamento regado a solidão e precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas, havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado de sua mente, já havia decretado que tudo não passava de uma grande mentira que agora, ela teria que conviver. Assim, forçava-se a ficar imune aos alertas de sua intuição.

- Como posso não me sentir feliz na companhia dele?  Agora que já estou aqui preciso relaxar e aproveitar todos os momentos – Concluiu, ensaiando uma mudança de postura.

Haviam passeado de mãos dadas pela primeira vez sem incomodarem-se com as pessoas ao redor. Agora assumidos, poderiam fazer coisas de gente normal, livres como nunca se permitiram antes. Almoçaram em um restaurante maravilhoso, foram as compras e tudo parecia perfeito. Desde que chegaram ela sentira-se extremamente bem recebida em todos os lugares que passaram, Eulália sentia-se quase uma conterrânea, na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. Mesmo assim, para ela, algo estava fora do lugar.

Naquela noite, Jairo havia prometido levá-la para conhecer a noite portenha e seus encantos, Buenos Ayres e sua famosa boemia. Eulália tinha um lado que apreciava a beleza das noites e sentia uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários de bar em bar.

Em sua ingenuidade, acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores ou músicos. Nem de longe, se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo, objetivos ou sem esperança. Para ela, Jairo meio que retratava essa fantasia, o via como um lindo boêmio, e essa noite prometia. Tango, vinho, boas risadas e muito romance.

Olhando-se no espelho ordenou a si mesma para que fosse feliz. Decida a mudar sua postura, preparou a banheira e deleitou-se com um longo banho, chegando mesmo a adormecer naquela água perfumada e cheia de espuma, enquanto Jairo participava de mais uma reunião de negócios com os produtores de uva. Precisavam encaminhar detalhes da próxima safra, e sua rotina fazia com que se dividisse entre a Argentina e outros países, incluindo o Brasil.  

Maquiou-se, e vestiu sua roupa especial, um belíssimo vestido que Jairo lhe dera especialmente para a ocasião. Um tomara que caia, em tafetá preto, que parecia ter sido feito sob medida, lindo e tão caro quanto seu salário de um mês. Já vestida, parou para admirar-se no espelho, tudo estava perfeito. Mesmo assim, sentiu-se estranha. Ela nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa.

- Talvez deva me acostumar com esse tipo de luxo. – Concluiu terminando a maquiagem e aprovando sua imagem. Estava pronta para a tão esperada noite de tango, mas ali em frente ao espelho apesar de toda a produção, o que viu foi um par de olhos tristes.

- Acho que vou colocar mais rímel, um pouco mais de blush e talvez disfarce. – Foi o que fez.

Eulalia ainda ouvia os insultos e sentia os olhares de desaprovação quando a notícia de seu divórcio se fez conhecida. Fora julgada e condenada por amigos e familiares, enfim, todos os que não se deram ao trabalho de perguntar o porquê. Preferiram fingir não saber o que é possível se viver ou morrer entre quatro paredes. Houve uma espécie de escolha e na caça às bruxas, as mulheres sempre perdem.

- Santa hipocrisia, eu me separo pra viver minha vida com mais dignidade e sou tratada como uma puta. Elas preferem manter as aparências? Então tudo bem, não sei se perdoo, mas com certeza eu supero. A escolha foi sua. Você buscou a liberdade e conseguiu. Agora, bora ser feliz dona Eulália! É uma ordem!!! - Falou em voz alta, certificando-se que a mulher de olhar triste que via refletida no espelho entenderia o recado. Deu uma última ajeitada nos cabelos, e saiu do banheiro.

Jairo já a esperava sentado confortavelmente em uma bela poltrona estilo retrô. Ao vê-la abriu seu enorme sorriso cheio de dentes, pulou em sua direção envolvendo-a nos braços. Ela, uma mulher pequena, ficava completamente escondida no enorme corpo de Jairo e aquele abraço, aquele carinho, aquela demonstração de conforto eram para ela a representação de um excelente momento pro relógio quebrar, e o tempo parar de andar. Um lapso de momento em que Eulália acalmou-se.

- Meu Deus como está linda! Me deixa ver como ficou nesse vestido, minha nossa! Eu sou muito sortudo, o homem mais sortudo de toda Buenos Ayres. - Exclamou Jairo enquanto a girava imitando um passo de dança. Findo o rodopio, olhou-a nos olhos e a beijou com a ternura e a potência que lhe eram características. Seu amor era uma bomba de sensações controversas e irresistíveis. Era um homem bonito com uma figura altiva, de gestos cautelosos e postura de leão.  Trajava um terno caro e bem cortado, que na verdade era a forma que usualmente se vestia.

- Vamos bela senhora Blanco? Senhora Eulália Blanco! Fica chic não acha? - Disse-lhe dando-lhe o braço, e empregando seu próprio sobrenome a ela.

- Senhor Jairo Blanco! Devo pressupor que isso seja um pedido de casamento? - Completou Eulália rindo.

- Vamos bela senhora, a noite nos espera. – Continuou sem responder sua pergunta. Sorrindo e rodopiando sobre si mesmo, ensaiou pequemos passos de dança enquanto atravessavam o corredor de seu quarto de hotel.

Na verdade, casamento não havia passado na cabeça de Eulália. Durante o curto período em que estavam juntos, apesar do envolvimento avassalador, se viam pouco e Eulália tinha consciência quanto a diferença de idade, e de vida entre os dois. Não haviam conversado sobre essa possibilidade, na verdade nem sequer haviam viajado juntos antes. Ela se envolvera com um homem que trabalhava muito e adorava seu trabalho, haviam se conhecido em uma convenção já que Eulália era secretária em uma empresa de eventos.

No elevador, Eulália assistiu confusa Jairo sacar o celular para checar se tudo estava encaminhado no que se referia aos convites e reservas dos convidados daquela noite.

- Convidados, que convidados? Deus do céu, quantas pessoas estarão lá? - Perguntou a si mesma indignada, pois naquele mesmo dia ele havia trabalhado. Imaginou que a noite fosse só deles. Tudo o que desejava era uma noite de romance, como ele a havia feito acreditar que seria.

Algo desabava a sua frente escancarando o que esse talvez viesse a ser a sua vida com ele, escancarando talvez o motivo de suas incertezas. Talvez nunca conseguisse ser importante o suficiente para ele, talvez não seria como agora, sequer consultada sobre algo que também a envolveria. Talvez, os negócios estivessem sempre entre os dois.

Uma nuvem de medo surgiu em seus olhos e quebrou seu espírito. Eulália não gostava de conflitos, e já apreensiva, questionava-se se deveria ou não externar sua indignação e desconforto. Preferiu calar-se, e engolindo as palavras continuou apenas observando enquanto Jairo falava, gesticulava e coordenava a tudo com desenvoltura. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela os baixou para que ele não percebesse. Mais uma vez, fez o que sempre fizera, calou-se como havia se calado a vida inteira.

- Que porra é essa? Não era um jantar romântico? Por que não conversou comigo antes? Por que não me avisou? – Bradou internamente sem nada dizer. A insegurança que ela ensaiara dar fim enquanto se arrumava, havia voltado e ele sequer percebeu. Eulália ainda não sabia, mas Jairo não conseguia ver muito além de si próprio.

O carro já havia andado alguns quilômetros quando enfim, a ligação terminou. O motorista, funcionário de confiança de Jairo, apenas a cumprimentou evitando olhar para ela durante todo o trajeto. Para Eulália isso foi um alívio, pois afastou o constrangimento de sua visível decepção. O destino era relativamente próximo do hotel, e a essa altura, seja lá quem o havia escolhido, fizera um bom trabalho. “La Noche”, um pequeno bar, no charmoso bairro de San Telmo.

Com móveis de madeira escura torneada, piso de ladrilhos brancos e pretos alternados. Lindo, tão lindo que parecia ser parte de outra época. Sentiu-se entrando em um túnel do tempo, num cenário perfeito, da música aos garçons, das pessoas aos cheiros que inundavam o ambiente que ostentava um refinamento único e genuíno.  

Estava encantada e considerou deixar-se levar pelo clima da noite portenha. Talvez não fosse assim tão difícil transformar aquela em uma noite inesquecível. Ela precisava desesperadamente sentir-se viva e havia entrado em um mundo de sonho. Estava deslumbrada.

Como pôde, sorriu e foi simpática com os convidados de Jairo, mesmo que para ela fossem apenas estranhos falando uma língua estranha, e que provavelmente só teriam assuntos que não lhe interessariam. Após algum tempo, abstraiu-se das conversas e desistiu mostrar-se presente na situação. Desistiu das delicadezas ensaiadas e da ausência de Jairo que se ocupou a agradar os presentes. Eulália distinguia sua voz ao longe, já que ele havia se sentado do outro lado da mesa para conversar. 

- Está tão animado e profícuo. Ou será prolixo? Essas conversas são sempre mais do mesmo e eu não vim aqui para trabalhar. Como ele pode fazer isso nessa noite? - Riu do próprio trocadilho.

Distraiu-se analisando tanto Jairo quanto o seu interlocutor, um senhor mais velho que prestava uma atenção sobre-humana nas palavras em suas palavras.

Acho que o homem não colocou direito a peruca. Sim, acho que ele usa peruca. - Cerrou os olhos prestando atenção aos detalhes que pudessem lhe entregar a verdade sobre o caso.

- É, eu estou certa. Aquela quantidade de cabelo sobre sua cabeça não combina nem com seu rosto, nem com os ralos cabelos nas laterais, e a cor é diferente. – Concluiu que a partir de então, seria um ótimo passatempo encontrar defeitos em todos que estavam estragando a sua noite, pelo menos assim, ficaria com uma expressão risonha o que daria a impressão de estar satisfeita.

Foi o que fez com o auxílio do garçom um tanto empolgado com a moça que parecia deslocada. O rapaz, decidira manter sua taça cheia, num bom pretexto para estar por perto numa espécie de flerte proibido. Ela por sua vez, entregou-se inteira as delícias do líquido sagrado.

A imagem de Jairo, aos poucos, desapareceu na fumaça dos cigarros, no som da música, e na leseira daquele bom vinho. Ele tornou-se apenas mais um no meio de tantas pessoas e Eulalia já não estava mais com eles. Estava sozinha como nos longos anos de seu casamento. Estava em um lugar repleto de gente, mas sozinha.

Como não entendia muito bem o idioma, decidiu colocar mentalmente uma legenda nas palavras que jorravam das bocas das pessoas fazendo com que a dificuldade de comunicação, passasse então a diverti-la. Agora a língua que eles falavam já nem era mais tão estrangeira assim.

A liberdade etílica, que captura facilmente aqueles não acostumados ao álcool, fez com que ela se sentisse à vontade consigo mesma. Deixou-se levar pela vibração do ambiente e assistiu extasiada à apresentação musical de três senhores que tocavam acordes perfeitos em instrumentos que ela nem conhecia. Teve a impressão de que o restante dos músicos talvez, estivesse escondido, como era possível, apenas três senhores, só três, inundarem todo o salão com tamanha magia? A harmonia daquelas figuras já idosas, se encaixava perfeitamente ao cenário, e Eulália divagava alternando-se entre o real e a fantasia trazida por Baco.

- Talvez tenham nascido aqui, têm a mesma idade do bar. Acho que bebi demais. - Percebendo o absurdo que pensara, decidiu que era hora de comer alguma coisa, tomar um copo de água, e andar um pouco. Precisava se recuperar antes que alguém notasse sua embriaguez. Levantou-se com calma e dirigiu-se ao banheiro.

Nem se deu ao trabalho de comunicar a Jairo. Cuidou em andar de forma leve e cautelosa para que ninguém percebesse que estava “alta”. Lavou o rosto, retocou a maquiagem, e sentindo-se melhor resolveu retornar à sua mesa. No caminho de volta, distraiu-se com os homens e mulheres bem vestidos, e com a alegria que pairava no ar, sem dúvida era o ambiente perfeito para casais apaixonados.

Voltou a passos lentos, ciente de que havia demorado mais que o normal, mas agora sentia-se bem. Constatou que Jairo que trocara de interlocutor, ainda não voltara para a cadeira ao seu lado, talvez nem tivesse dado por sua falta. Estava contrariada e decidida a não estragar ainda mais a sua noite quando o anúncio da apresentação principal lhe atraiu a atenção.

- Tango! – Exclamou batendo palmas entusiasmada. Ajustou-se rapidamente na cadeira no mesmo momento em que o prestativo garçom, lhe oferecia mais uma taça de vinho que ela mais que prontamente, aceitou. Assistiu à apresentação hipnotizada, pondo-se a calcular o nível de harmonia e entrosamento que um casal de profissionais da dança deve possuir para realizar com tamanha desenvoltura aqueles passos intricados.

- Se o sexo fosse uma música, definitivamente seria o tango. – Concluiu acompanhando com atenção cada movimento. Mentalmente bailou com eles chegando a inferir se fora do palco, também seriam um par. Invejou a dança e invejou aquela moça que rodopiava leve nos braços de seu parceiro. Gostaria de trocar de lugar com ela.

Sem que Eulália soubesse, era praxe ao fim da apresentação que os dançarinos escolhessem pessoas entre o público para dançar, como se fosse uma aula. Entusiasmada acompanhou atentamente toda a movimentação. A moça, após andar um pouco, convidou um senhor grisalho e tímido de uma mesa no lado oposto do salão. O rapaz sem nenhuma hesitação, assim que se separou da parceira, buscou por Eulália e a olhou fixamente. Caminhou em sua direção com a determinação de quem sabia muito bem o que queria. Queria Eulália. Parou em sua frente, sorriu e estendeu-lhe a mão.

Com o coração acelerado, mais que depressa ela aceitou o convite e saíram de mãos dadas rumo a pista de danças. Já no meio do salão lembrou-se de Jairo, dirigiu seu olhar a ele procurando talvez, um sinal de aprovação que não recebeu. Pelo contrário, ele a observava com um misto de surpresa e raiva. Sua reação negativa não a demoveu. Era visível que ele estava perplexo e que se pudesse dizer algo naquele momento, com certeza a impediria. Eulália olhou a sua volta, e recebeu a aprovação do bar inteiro por meio de palmas e palavras de incentivo, para ela e para o senhor tímido que agora sorria. Era isso o que todas as mulheres naquele bar queriam, e era isso o ela queria. Esqueceu-se de Jairo, e se entregou ao tango como antes se entregara ao vinho.

Nos braços daquele estranho fascinante se deixou conduzir como uma amante que flui nas mãos de seu homem. Olhavam-se fixamente e ela agiu como se dançar lhe fosse algo costumeiro, como se eles já houvessem ensaiado aquela dança muitas e muitas vezes.

Há uma aura que emana de um corpo para outro em uma fluidez simbiótica que vem com a dança. Quando corpo e alma se misturam a uma melodia tornando-se parte dela de tal maneira, que entre dois estranhos nasce uma cumplicidade que só existe no compasso da música. Eles haviam entrado nesse universo.

Naquele bar antigo nascia uma Eulália atemporal, sem medo de lançar-se ao desconhecido. Deixou que todas as sensações pulsantes do momento, invadissem sua alma. Uma Eulália que vivia aquela fantasia sem medo de ser feliz. Ela rodopiou nos braços daquele homem, nos braços do tango e da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo. Ali não havia pecado, havia apenas a euforia da liberdade.

Não havia passado. O presente era mágico. E quanto ao futuro?

Bem... Nesse ela pensaria depois. 

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Sandra Sa'ntos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, pela faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo- FMS/USP. Ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Escritora, dedica-se a poesia e aos contos. Publicou "Jardim dos Silêncios" - Editora Viseu e organiza seu primeiro livros de contos. Além de um romance a caminho. Sua temática gira em torno do universo feminino, com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina. 

sábado, 4 de março de 2023

VERBO MULHER: AS MÁGOAS DE MARÇO, POR HELENA TERRA

V E R B O M U L H E R|05

AS MÁGOAS DE MARÇO

POR HELENA TERRA

[Imagem arquivo Pinterest]

Não tenho tido tempo para escrever.  Não o tanto que eu gostaria. Depois de ler, é o que mais gosto de fazer do ponto de vista intelectual. E digo do ponto de vista intelectual porque trocaria minha estante e as inúmeras pilhas de livros que se alastram pela minha casa pela companhia das minhas amigas e amigos sem pensar duas vezes. É, eu gosto de gente. Muitíssimo. Mais até do que de bichos. E a gente sabe que a maioria é mais leal e divertida que uma boa parte de nós. Não é à toa que dizemos “fidelidade canina” quando nos referimos a alguém incapaz de nos trair. Mas vamos ao que interessa neste mês de março, o mês escolhido, com o consentimento do patriarcado, para recebermos flores, bombons e textos na Internet, alguns escritos inclusive por nós mesmas indevidamente assinados por homens, no dia 8. Oito é o número do infinito. Eu nasci em um dia oito. Meu pai nasceu em um oito também e morreu em um dia oito em uma coincidência que me perturba um pouco, mas não me magoa. Vou falar sobre o que me magoa. Não sobre tudo, é claro, que não é para este texto ser uma sessão de terapia ou um tratamento inteiro mesmo. 

        Começo então por uma das agressões que considero das mais violentas: as de uma mulher contra outra. Eu sei que somos socializadas desde o nascimento para criticarmos a aparência umas das outras, para não considerarmos as opiniões umas das outras, para competirmos por laços de afeto, namorados, maridos, para não confiarmos umas nas outras, para julgarmos umas às outras e para ficarmos ao lado dos homens quando houver um conflito. Qualquer tipo de conflito porque os homens têm razão mesmo quando não têm e porque, de um modo ou outro, nós somos as bruxas que devem praticar o auto-ódio feminino, e eles são os reis da cocada. Se eles disserem que algo foi assim, então foi. Quem somos nós para questioná-los e para apontar nossos lindos dedos de unhas vermelhas em seu nariz? E falo aqui de mulheres de todas as faixas de idade, inclusive as nascidas sob esse terceiro milênio depois de Cristo. Talvez se fosse depois de Crista as coisas fossem diferentes e não houvesse ainda mulheres tão sexistas quanto os homens, porque as mulheres podem ser sexistas e algumas de fato são apesar de suas tatuagens, cortes de cabelos e uma série de outros signos que sugerem senso crítico e ruptura.

[Imagem arquivo Pinterest]
No livro “O feminismo é para todo mundo”, meu livro favorito sobre o tema, da Bell Hooks, publicado pela primeira vez na virada do milênio, ela, uma mulher nascida no início dos anos cinquenta do século passado, diz: “para acabar com o patriarcado (outra maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos nós participamos da disseminação do sexismo, até mudarmos a consciência e o coração; até desapegarmos de pensamentos e ações sexistas e substituí-los por pensamentos e ações feministas.” Pois é. Por mais difícil que pareça temos de esquecer a antiga e dominadora cartilha de verdades dos homens, mesmo das dos que nós amamos, porque está no inconsciente coletivo, principalmente masculino, dominar. Dominar pela força física, pela econômica e pelo discurso. Discurso que a eles beneficia, discurso mantenedor de seus privilégios e de seus prazeres. 

Outro dia, só para dar um exemplo, na fila do caixa de um supermercado, ouvi uma jovem, que deve ter entre vinte e vinte e cinco anos, dizer à outra que uma tal fulana era muito “banheiro público” e as prejudicava "na noite". Sim. Banheiro público porque a sexualidade das mulheres, o erotismo das mulheres, o gozo e a liberdade das mulheres se não é um pecado, é um crime ou uma ofensa à moral e aos bons costumes, todos implacáveis na hora de julgar e punir uma mulher e benevolentes na hora de avaliar as atitudes de um homem. Como diz a Marcia Tiburi, em seu livro “Feminismo em comum, “de nada adianta dizer-se feminista sem lutar pela transformação da sociedade”. E essa transformação, quer a gente queira ou não, começa em nós mesmas e mesmos, porque você, homem que também me lê, pode e deve fazer a sua parte. Aliás, caríssimo, nos deve cada pedacinho.

[Imagem arquivo Pinterest/ Frase de Victoria Sau]

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Helena Terra é escritora, jornalista, coordenadora do grupo de leitura e escrita criativa A Palavra Tem Nome de Mulher dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier em Porto Alegre e editora no Selo Editorial Besouros Abstêmios. Autora dos romances A Condição Indestrutível de Ter Sido e Bonequinha de Lixo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

POETA OU POETISA? EIS O MOTIVO!, POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Rozana Gastaldi Cominal

POETA OU POETISA? EIS O MOTIVO![1]


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

(Fragmento do poema "Motivo", de Cecília Meireles)

Poeta ou poetisa? Também sou do clube de Cecília Meireles, sou POETA. Sou pela língua viva, orgânica que extrapola o dicionário, a nomenclatura, a gramática dos gêneros. Estou emparelhada aos movimentos sociais, língua explosiva quando negam o direito à vida. 

Encontro eco ao ler Lunna Guedes, ela mesma ou a voz de Catarina, pois sua escrita é tomar uma infusão de ervas que inebria: “Sei o verso que chega e se aconchega nos olhos e na boca, na pele”, é ouvir  Chico César ao violão dedilhar: “Chega tem hora que ri de dentro pra fora/ Não fica nem vai embora/ É o estado de poesia”. Encontros assim é oração, estado de graça, porque, continua Lunna: “Ler poesia é ler-se… em algum momento a pele goza do arrepio sagrado da primeira vez e eu terei minha porção de tudo e nada (de novo). Amém."

Oração verbal ou nominal plena de sentidos, de significados, de intenções. Assim como os versos se quebram na linha reta, contínua, a linguagem carrega em POETA todo um ritmo peculiar para captar o instante. É a celebração da palavra, sílaba a sílaba daquilo que atina os sentidos não somente em mim, mas em quem me lê, sábia Cora Coralina resume tudo isso muito bem: “POETA não é somente o que escreve. É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso”. Atrevida exibo minha
 
Flâmula


poeta sou

sigo a voz

que chama

solta

e

revolta

sigo o peito

que inflama

 

poeta sou

solto a voz

que alumia

a estrada

onde companheiras

& companheiros

me esperam com o

coração na epiderme

[Imagem Pinterest]
ESCREVER é dialogar com a mente. É trabalho hercúleo, exige conhecer-se. Eu me autorizo a escrever, a interpretar, a sonhar, a ficcionar. Ao mesmo tempo que descubro que tipo de leitor eu sou. LER é descobrir universos paralelos que revelam-se as influências literárias. Captou a composição estética e a crítica? Exige harmonia entre forma e conteúdo com humor, deboche, ironia, crítica social/política, lirismo. Não é mero amontoado de palavras em linhas quebradas quando se trata do poema. Nem parágrafos bem ajustados em linhas paralelas na prosa. Saliento que ambos têm ritmo, compasso e descompasso, mas não me peçam para explicar um poema.

Aprendi com Hilda Hilst: "É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de POETA”. Ao compreender que literatura é afetar, socar, sacudir, a/o POETA promove um esforço coletivo para salvar a vida de alguém ou talvez salvar a si própria/o.  

[Imagem Pinterest]
POETA sou e organizo o pensamento, vasculhando a memória na busca de narrativas, descrições e reflexões. Vasculho, ainda, gavetas, caixas e baús para capturar lembranças, sentimentos, sensações. Nesses cofres secretos, ficam os gatilhos para minha-sua-nossa escrita: objetos, fotos, cheiros, perfumes – estímulos para a produção literária. Os poemas ganham destaque,com jogo de palavras cravado na memória e na curiosidade de sentidos, sinestesias em efusão, metáforas, sentimentos em turbilhão. 

Desesperada, devastada, dardos do desânimo disparados, descansaremos quando? Desigualdades dilacerantes, denúncias, demandas, desgraças que nos arrasam e nos arrastam para o fundo do poço. Seja na escuridão da noite, seja na noite sertaneja enluarada, somos seres desejantes, o mundo precisa de um abraço, eu preciso de um abraço...

Catástrofe sanitária, cegueira no horizonte, colapso mundial, tudo desmoronando, estou fazendo arte? De nada adianta lutar?  Como POETA faço aquecimento, carrego kit sobrevivência, até parece que vou-vamos entregar os pontos! POETAS somos! Abaixo a corrupção, a necropolítica, os sem-noção! Quanto ainda nos falta para chegar a ser nação? Que rolem os dados... 

[Imagem Pinterest]
Não contavam com nossa astúcia: lockdown utópico que nos faz caminhar para dentro de si e depois, quem sobreviver, ocupar o cenário exterior. O adágio popular faz sentido: Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe. Contagem regressiva para os sobreviventes. Sinal dos tempos que dias melhores virão. A luta pela vida se faz diária, enquanto uns seguem delirando, alguns nem sabem do que se trata, outros, imunizados  estarão  com vacina e poesia. Em luto, em luta, poesia como antídoto.

P.S. 1

Mas ousadia mesmo é com Jéssica Iancoski que reivindica a autoria:

Também

 

devo me apossar

da palavra autor

se enfraquecido

não existe o masculino

sou poeta sou autor

sou o dono da minha vida

e acima de tudo

mantenho-me mulher


O que posso dizer? Somos os donos de nossa voz no mundo. Síntese intensa traz seus versos, lacrou total! Isso é

 

Nocaute

 

pilhados?

trocam-se três por um

adeus aos neurônios suicidas 

P.S. 2

E para fechar o ciclo, deixo uma dica que copiei nem sei quando nem de onde.

[Imagem Pinterest]
Ritual das folhas que caem

Procure no chão de jardins ou praças, sete espécies diferentes de folhas “caídas”. Coloque todas juntas numa pequena pilha e costure parte de suas bordas de maneira que pareça um pequeno livro de folhas verdes. Este é seu livro mágico da Natureza. Coloque-o dentro de um envelope e tenha-o sempre por perto. Ele é um canal para sua vida mágica, pois todo o conhecimento contido nas folhas será transmitido a você por meio da sua intuição.

P.S. 3

Poesia virou autoajuda agora? Sempre foi, palavra de POETA que vê poesia como presença de afetos, ainda mais em tempos de pandemônio social e viral, tornou-se companhia na falta do espaço coletivo presencial.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta e escritora

autora de MULHERES QUE VOAM

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Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

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