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sábado, 4 de março de 2023

VERBO MULHER: AS MÁGOAS DE MARÇO, POR HELENA TERRA

V E R B O M U L H E R|05

AS MÁGOAS DE MARÇO

POR HELENA TERRA

[Imagem arquivo Pinterest]

Não tenho tido tempo para escrever.  Não o tanto que eu gostaria. Depois de ler, é o que mais gosto de fazer do ponto de vista intelectual. E digo do ponto de vista intelectual porque trocaria minha estante e as inúmeras pilhas de livros que se alastram pela minha casa pela companhia das minhas amigas e amigos sem pensar duas vezes. É, eu gosto de gente. Muitíssimo. Mais até do que de bichos. E a gente sabe que a maioria é mais leal e divertida que uma boa parte de nós. Não é à toa que dizemos “fidelidade canina” quando nos referimos a alguém incapaz de nos trair. Mas vamos ao que interessa neste mês de março, o mês escolhido, com o consentimento do patriarcado, para recebermos flores, bombons e textos na Internet, alguns escritos inclusive por nós mesmas indevidamente assinados por homens, no dia 8. Oito é o número do infinito. Eu nasci em um dia oito. Meu pai nasceu em um oito também e morreu em um dia oito em uma coincidência que me perturba um pouco, mas não me magoa. Vou falar sobre o que me magoa. Não sobre tudo, é claro, que não é para este texto ser uma sessão de terapia ou um tratamento inteiro mesmo. 

        Começo então por uma das agressões que considero das mais violentas: as de uma mulher contra outra. Eu sei que somos socializadas desde o nascimento para criticarmos a aparência umas das outras, para não considerarmos as opiniões umas das outras, para competirmos por laços de afeto, namorados, maridos, para não confiarmos umas nas outras, para julgarmos umas às outras e para ficarmos ao lado dos homens quando houver um conflito. Qualquer tipo de conflito porque os homens têm razão mesmo quando não têm e porque, de um modo ou outro, nós somos as bruxas que devem praticar o auto-ódio feminino, e eles são os reis da cocada. Se eles disserem que algo foi assim, então foi. Quem somos nós para questioná-los e para apontar nossos lindos dedos de unhas vermelhas em seu nariz? E falo aqui de mulheres de todas as faixas de idade, inclusive as nascidas sob esse terceiro milênio depois de Cristo. Talvez se fosse depois de Crista as coisas fossem diferentes e não houvesse ainda mulheres tão sexistas quanto os homens, porque as mulheres podem ser sexistas e algumas de fato são apesar de suas tatuagens, cortes de cabelos e uma série de outros signos que sugerem senso crítico e ruptura.

[Imagem arquivo Pinterest]
No livro “O feminismo é para todo mundo”, meu livro favorito sobre o tema, da Bell Hooks, publicado pela primeira vez na virada do milênio, ela, uma mulher nascida no início dos anos cinquenta do século passado, diz: “para acabar com o patriarcado (outra maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos nós participamos da disseminação do sexismo, até mudarmos a consciência e o coração; até desapegarmos de pensamentos e ações sexistas e substituí-los por pensamentos e ações feministas.” Pois é. Por mais difícil que pareça temos de esquecer a antiga e dominadora cartilha de verdades dos homens, mesmo das dos que nós amamos, porque está no inconsciente coletivo, principalmente masculino, dominar. Dominar pela força física, pela econômica e pelo discurso. Discurso que a eles beneficia, discurso mantenedor de seus privilégios e de seus prazeres. 

Outro dia, só para dar um exemplo, na fila do caixa de um supermercado, ouvi uma jovem, que deve ter entre vinte e vinte e cinco anos, dizer à outra que uma tal fulana era muito “banheiro público” e as prejudicava "na noite". Sim. Banheiro público porque a sexualidade das mulheres, o erotismo das mulheres, o gozo e a liberdade das mulheres se não é um pecado, é um crime ou uma ofensa à moral e aos bons costumes, todos implacáveis na hora de julgar e punir uma mulher e benevolentes na hora de avaliar as atitudes de um homem. Como diz a Marcia Tiburi, em seu livro “Feminismo em comum, “de nada adianta dizer-se feminista sem lutar pela transformação da sociedade”. E essa transformação, quer a gente queira ou não, começa em nós mesmas e mesmos, porque você, homem que também me lê, pode e deve fazer a sua parte. Aliás, caríssimo, nos deve cada pedacinho.

[Imagem arquivo Pinterest/ Frase de Victoria Sau]

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Helena Terra é escritora, jornalista, coordenadora do grupo de leitura e escrita criativa A Palavra Tem Nome de Mulher dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier em Porto Alegre e editora no Selo Editorial Besouros Abstêmios. Autora dos romances A Condição Indestrutível de Ter Sido e Bonequinha de Lixo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

VERBO MULHER: PINTOU UM CLIMA, POR HELENA TERRA

 


V E R B O   M U L H E R|05

P I N T O U   U M   C L I M A 

POR HELENA TERRA 

          

        Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.

        Eu já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí, acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,

    Ou seja, a partir de certo momento, a covardia é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam? Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista, experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.

       Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média, que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito e sob que condições nos querem.

     Condição, aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar, gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.

      Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:

1.  Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida? 

2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.

     E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt).

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

VERBO MULHER: EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA, POR HELENA TERRA



V E R B O M U L H E R|04

EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA

POR HELENA TERRA 


        “Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”, Annie Ernaux diz em seu livro O Acontecimento. Annie Ernaux, para quem ainda não sabe, é a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Eu, até outro dia, falo do mês de agosto, nunca tinha lido nada dela. Eu gosto da palavra agosto. Separa o A e muda o sentido! E gosto muito do livro Luz em Agosto, do William Faulkner, aquele em que uma jovem, em um estado interessante, caminha descalça por uma estrada, usando um vestido comprado por reembolso postal.

        Eu gosto da palavra estado e do verbo Estar. Quando a gente começa a estudar inglês, começa com o verbo To Be. Eu comecei aos seis anos e, na época, achei estranho um verbo representar dois da nossa língua. Como pode ser Ser e Estar ao mesmo tempo, eu me perguntava.  Até hoje há muitas coisas que eu me pergunto e acho estranhas, incompreensíveis mesmo, sendo uma delas a maternidade, e eu sou mãe. Mãe duas vezes embora eu tenha um único filho. O primeiro se tornou uma espécie de segredo do meu corpo. Então, sendo segredo, o melhor a fazer é falar sobre o livro O Acontecimento.

       E de que ele trata? Também de maternidade. No caso, da gravidez indesejada de uma jovem em busca de alguém que a ajude a abortar. Sim, ela não quer ser mãe. Aliás, muitas mulheres não querem. Muitas mulheres geraram e pariram filhos por obrigação. Muitas mulheres inclusive morreram dando à luz ou a evitando. Dar à luz é uma expressão que me intriga ou, talvez, incomode. É, me incomoda. E penso que não é pelo contraponto de uma outra vida estar no que chamam de escuridão de um útero. Me incomoda porque ela parte da premissa de que nós, as mulheres, temos de dar. Dar o tempo todo. De tudo. De sermos a doação em pessoa, custe o que custar, mesmo quando a vida não está correndo conforme o planejado ou, vai, está. A vida, às vezes, por incrível que pareça, corre bem. Durante as minhas duas gestações, eu vivi em um mundo cheio de estrelinhas. E por quê? Por uma série de fatores, sendo o mais significativo a atuação impecável do pai dos meus bebês.

       Pois é. O pai do meu filho, nesse quesito, merece um parágrafo. O pai do meu filho, desde o instante em que soube que a nossa família iria aumentar, moveu mundos e fundos para que eu me sentisse feliz, zelando pelo meu bem-estar físico e emocional como se ele próprio tivesse adentrado minha natureza, como se fossemos, naqueles meses, a mesma pessoa. E, de certa forma, fomos. Os batimentos cardíacos dele e o meu se uniram em um intenso estado de desejo, nos conduzindo a uma forma de paixão e gozo que desconhecíamos. Grávida, mais do que em qualquer outra fase, fui desejada. Grávida, o pai do meu filho e eu nos tornamos, verdadeiramente, um homem e uma mulher. 

         Um dos meus filmes favoritos é o Um Homem e Uma Mulher, do Claude Lelouch. Não é fácil ser um homem e uma mulher, viver a parceria de um homem e uma mulher. Quem viu o filme sabe do que estou falando. E não é simples, para um casal, manter-se um homem e uma mulher durante a gestação de um filho. Na verdade, é um desafio. Alguns homens falham diante da exuberância de uma barriga. Os piores homens. Que tipo de homem trai a mulher que traz o seu filho no corpo?

        Uma mulher grávida, se a gente parar para pensar, é como um teste de caráter e de honra. A gravidez de uma mulher revela, em alta escala, o caráter de quem a engravidou e a presença ou a falta de empatia com as transformações do corpo feminino.  Por detrás de traições, sabemos, existem sempre argumentos, mas, por detrás das desse tipo, o que há é a indiferença e, por que não dizer, a crueldade de homens invejosos e egocêntricos. Poucos. De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Ashley Madison, o maior site de relacionamentos extraconjugais desse planeta redondo, no momento da gestação de um filho, a maior parte dos homens gostam de estar com suas mulheres. Estar é mesmo um verbo interessante.


Ana Carolina - Força Estranha - Elas Cantam Roberto Carlos

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O AMOR, POR HELENA TERRA


 

V E R B O M U L H E R|03

HELENA TROUXE O AMOR

POR HELENA TERRA 


        Outro dia morreu a rainha da Inglaterra. E, nas minhas redes sociais, uma boa parte dos posts e comentários foram dentro do padrão afetivo que rege o Brasil de uns anos para cá, ou seja, dentro do discurso de ódio atribuído apenas à Direita do país. “A armadilha do ódio é que ele nos prende muito intimamente ao adversário”, escreveu o Milan Kundera. Portanto, o ódio não é uma boa ideia. Eu, por sorte, não tenho uma natureza convergente com hostilidades e grosserias. Apesar de vir de uma família, usando um eufemismo, barulhenta, não fui socializada por pais que queriam a cabeça de A ou o coração de B e “que tudo o mais vá para o inferno”. Queriam paz e respeito entre nós, os filhos, entre si e com a sociedade em que vivíamos, o que, de modo algum, significava cegueira, alienação ou conivência com a época. Eu nasci, fui criança durante o período militar numa cidade pequena em que havia um batalhão, e os meus pais, diferentemente de muitos outros, abrigaram em nossa casa todos os jovens chamados, pelo sistema, de subversivos que puderam. Assunto importantíssimo, mas que agora não vem ao caso, porque esse texto é para falar sobre o amor. 

      Sim, o amor, esse sentimento, patrimônio emocional, sonho tão almejado mundo afora. Não que eu o conheça e domine e não que eu não o conheça e domine. Estou, aludindo ao título da obra do Marcel Proust, ainda em busca do amor não perdido. E digo não perdido porque a ideia de tê-lo encontrado e tê-lo deixado ir me é insuportável. O amor, dizem, quando recíproco e verdadeiro, se enraíza. Não sei. Sou solteira. Não. Sou divorciada.  Vinte anos passei casada. E não foi fácil dar por encerrado esse tempo e vínculo. Mas enfim consegui. Conseguimos, mesmo que às vezes nos oferecendo um copo de cólera.

       Um Copo de Cólera foi o primeiro livro que eu li do Raduan Nassar. Para quem não o leu, fazendo breve sinopse, ele gira em torno de uma briga depois de uma trepada fenomenal. Serei eu censurada por escolher essa palavra? Julgada por trepada não soar elegante na boca de uma mulher? Não que eu não tenha sido julgada antes, mas, desde que o senhor que está ainda na presidência dessa república recebeu sua faixa, sem sombra de dúvida, os julgamentos sobre o que falo, escrevo, visto, canto, faço etc. aumentaram, duplicaram, multiplicaram-se. E esses julgamentos vieram de todos os lados, inclusive dos homens da Esquerda, os homens pelos quais nutro mais simpatia. Ou nutria. Eu já não sou a mesma. Nunca fui a mesma. Sempre vivi dentro do Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa, ou melhor, do Bernardo Soares, apesar da minha natureza pacienciosa e estável. 

       Mas voltemos ao livro do Raduan Nassar. Ela, a protagonista, é, segundo o homem que a ama, uma “jornalistinha de merda”; e ele, segundo ele mesmo, não passa de um “biscateiro graduado”. Autodefinição que não o constrange. “Confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa”, ele, lá pelas tantas, diz. E então aqui me pergunto se o amor aceita também raiva, humilhação, violência? E mais, como eu sei que amo alguém? Hoje de manhã, o Marcelo Branco, um amigo, aqui do Sul, "legado da não miséria" de um relacionamento que vivi, me enviou um vídeo em que a psicanalista Maria Homem fala sobre esse tema.

      Diz a Maria Homem: “se você faz essa pergunta é porque a resposta é não, você não está amando ... Por quê? Porque quando você começa a se interrogar, começa a racionalizar, começa a medir os prós e contras, os defeitos, mas também as qualidade, veja bem, não gosto muito, mas, bom, minha vida é confortável ... quando você entra nessa posição que, em última instância, é absolutamente moderna, utilitarista, que vai fazer a mensuração do maior bem possível para o menor mal possível, é que aí você já está na equação utilitária sobre as relações e os pactos sociais.” 

       E o que eu penso sobre isso? Marcelo me fez essa pergunta. De fato, estabelecer uma união pautada em benefícios causa estranheza. Sua presença me faz bem, não faz bem, faz bem, gosto disso e daquilo, não gosto, esse bem-me-quer-mal-me-quer do cérebro e do ego me incomodam e tocam um alarme. Pode ser falso, é claro. No livro O Amor Nos Tempos Do Cólera, do Gabriel Garcia Marquez, Florentino Ariza esperou pelo amor de Fermina Daza durante cinquenta e nove anos, dois meses e quatro dias depois de ter sido dispensado por ela que não o amava ou amava e não sabia. Pois é. E haja paciência! O bom é que ele não esperou sentado. Tampouco ela. Fermina, na cama do marido que não a amava, mas a queria bem. O que é esse tal de querer bem?

      “Ele tinha consciência de que não a amava. Casara-se porque gostava da sua altivez, sua seriedade, sua força e também por um tipo de vaidade, mas enquanto ela o beijava pela primeira vez teve a certeza de que não haveria nenhum obstáculo para inventar um bom amor”, o narrador revela a respeito do homem a quem ela, usando um clichê, entregou o coração. Florentino, por sua vez, esperou solteiro, conhecendo outras mulheres. Dezenas, ou terá sido centenas? Faz diferença a quantidade? Sexo não é amor embora o favoreça. E favorecer também não é o suficiente. Se não me engano, Florentino anotava em uma caderneta as tentativas de substituir Fermina, ciente de que não era possível substituí-la mesmo quando ele se entregava a pequenas paixões. Substituir. Talvez o amor desconheça esse verbo, seja exatamente essa impossibilidade. Não sei. Carlos Drummond de Andrade disse que "amar se aprende amando".

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

 

 

 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA SOLTE SUAS FERAS, POR HELENA TERRA

 


V E R B O M U L H E R|02

HELENA SOLTE SUAS FERAS

POR HELENA TERRA 


        “Escute as feras” é o nome do livro da antropóloga francesa Nastassja Martin, que teve o rosto desfigurado por um urso. Um urso de verdade, quadrúpede, animal irracional vivendo em seu ambiente e território. Agressivo sob o nosso ponto de vista humano. Um urso como qualquer outro se o pensarmos de acordo com a sua programação genética. Talvez até passivo dentro de sua própria espécie. Mas um exemplo de violência dentro da nossa. Um urso parecido com as centenas de milhares de homens, milhões na verdade, que diariamente atacam nossas mentes e corpos e que tentam nos eliminar ou a nossos planos e ambições como se fossemos insetos. Falo de nós, as mulheres. E falo de mim. Como Tolstoi, que disse que falando de sua aldeia estaria falando do mundo, acredito que falando sobre a minha existência falarei sobre a de todas as outras mulheres, mesmo daquelas que discordam em gênero, grau e número comigo e votam no senhor que ocupa a presidência do país como um monarca a um trono nos tempos do Brasil colônia.

        O Brasil, apesar de estarmos no ano de 2022, em um certo sentido, segue colonial, oprimindo a si mesmo e preso a seu próprio provincianismo e ao seu patriarcado de terceiro mundo. Sim, o patriarcado, embora uma estrutura homogênea, apresenta diferentes camadas de ação. Aqui, nessa terra quase sem Pau-Brasil e com uma grande diversidade de bichos, nós, as mulheres estamos mais para Gregor Sansa que para Madame Bovary, personagem, diga-se de passagem, também pouco aspirável. Pois é, eu me identifico com o Gregor Sansa. Kafka não sabe, mas ele falava de uma mulher.  “A Metamorfose”, as metamorfoses somos nós, muitas vezes cumprindo três turnos de jornada, recebendo menos por nosso trabalho e ainda tendo de ouvir críticas maldosas a respeito de nossas aparências, gostos e opiniões. E quando falo em críticas maldosas estou sendo, como muitos homens gostam de dizer, boazinha, porque uma boa parte dos homens gosta de verdade de nos ofender e de diminuir a nossa autoestima. Mais de um tentou me fazer sua vítima:

Helena, você está muito magra!

Helena, e esse fio de cabelo branco?

Helena, não entendi essa sua roupa!

Helena, não quero dizer que você não é inteligente, mas você não sabe o que está dizendo.

Helena, você é louca!

             E por aí vai.

        E por aí também se foram os que não conseguiram controlar o seu machismo e misoginia. Não servem para mim. Não gosto de gente rude. Não servem para ninguém, sabemos, como também sabemos que uma parte considerável de pessoas ainda ignora o importante ditado que diz “quem avisa, amigo é”. Fazer o quê? Ler. Conversar com as outras mulheres. Terapia. Se possível, análise mesmo. Graças a minha, tenho conseguido me manter distante dos homens com complexo de inseticida ou de chinelo de borracha que, por inveja, pensam em me esmagar. Essa é uma das minhas descobertas mais recentes: há uma quantidade expressiva de homens invejosos ao redor. Eles são o som ao redor, e não é fácil abafar suas vozes. De tão inseridas na dinâmica patriarcal, acabamos naturalizando à toxicidade e à agressividade como se elas fossem partes legítimas e positivas das relações. E de tão desamparadas pela sociedade, e mesmo por nossas famílias, acabamos por esconder as agressões que sofremos e, de certa forma, também por pôr em dúvida o nosso discernimento. Levante a mão quem nunca foi chamada de louca, maluca, pirada, despirocada, histérica, doida, raivosa etc. Se tem uma forma de violência enraizada no inconsciente coletivo masculino é essa de tentar nos tirar a razão e de nos jogar no mundo irracional das feras. Falemos então de feras. Conheço muitas de calças, camisas e barbas sobre as faces vivendo fora dos zoológicos e mostrando sorrisos antes de mostrar as garras.  Os índices de violência, em suas mais diversas formas, contra as mulheres estão altíssimos mundo afora. Mas vou falar desse mundo adentro em que vivo e, como o Cazuza, vou cantar “Brasil, mostra a tua cara”. Mostra, Brasil, a cara dos seus homens.

        Conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, trinta mulheres sofreram agressão física por hora; uma mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos; três mulheres foram assassinadas por dia e uma travesti ou mulher trans foi assassinada a cada dois. Ou seja, 2020 foi o circo romano e a matança das baleias. Aliás levante a mão também quem nunca foi chamada de baleia ou teve uma amiga que tenha sido. Em 2020, morremos. E em 2021 também. Eu morri em 2021, 2020, 19, 18. Morro desde que nasci. E de nada adianta cantar que neste ano não morrerei porque eu sou uma mulher que morre com as outras. Não tenho vocação para ilha. Os outros torrões, como escreveu John Donne, no “Meditações”, me interessam. Eu sou uma pessoa continente. E sou uma mulher cheia de vida e de sobrevida por persistência, como uma das minhas alunas no presídio em que trabalho fala. Persistir é um dos meus verbos preferidos. Os meus verbos, apesar de toda a oposição que me cerca, são construtivos, leais e amigos. Amigos como poucos homens conseguem ser de uma mulher. Os meus amigos conto nos dedos da mão esquerda embora eu seja destra. E falo em esquerda porque posso. “Ser de esquerda é ter uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Frase do Pepe Mujica. Não me falta senso de solidariedade. Minha consciência e ação social não são só da boca para fora. Não vivo só em causa própria. Não exploro as outras pessoas. Não tiro proveito de seus bens, personalidades, capacidades produtivas e sentimentos. Trabalho e convivo com as pessoas por elas, por mim e por nós todos como se fossemos um único corpo, uma grande placenta.

          Placenta. Pensando agora, talvez pareça estranho eu recorrer a essa palavra. Não é porque podemos produzir uma que temos de produzi-la. Não é porque uma mulher pode ser mãe que ela tem de ser. Quem insiste com essa ideia, por incrível que pareça, são justo aqueles que dizem ter tirado Eva de suas costelas.  E isso também é estranho porque soa religioso, cristão, do reino de Deus. “O que realmente duvido é do amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuíno de um ser que é cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não! Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora era mais fácil de acreditar.”, uma das narradoras do “A filha primitiva”, da Vanessa passo, diz. Pois é. Eu também tenho dificuldade de dialogar com esse senhor que fez apenas metade da população do planeta à sua imagem e semelhança. Eu não me pareço com ele. Ele não se parece comigo, ignora uma menstruação, não gera crianças, tampouco as perde ou ganha em um parto. Deus não sente o que se passa debaixo da minha pele e ainda me orienta a ser compreensiva e piedosa com aqueles que “não sabem o que fazem”. Vem cá, desde quando os homens não sabem o que fazem? Os homens não são cheios de saberes, opiniões e verdades?  

Disse Santo Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão.”

Disse São João Crisóstomo: “em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher.”

Disse São Paulo, esse que dá o nome a maior cidade da América Latina: “o homem não foi tirado da mulher, e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher, e sim esta para o homem”.  

        Santos! Todos santos, a nata da religião que sustenta o pensamento ocidental. Mentores desses que costumam dizer “não sou santo” para justificar seus erros. Imagina se fossem.  

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Helena Terra
[arquivo pessoal]
@helenaterracamargo

Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O TROMBONE, POR HELENA TERRA

     


V E R B O   M U L H E R|01

HELENA TROUXE O TROMBONE

Por Helena Terra

          “Para diminuir a febre de sentir” é o nome de um livro da Dalva Maria Soares. Comprei e estou ansiosa, embora eu não seja ansiosa, para ler. O Tonio Caetano, um escritor aqui do Sul, escreveu que o livro dela é sobre a coragem de dizer o que se sente. Lembrei na hora do poema, da Adélia Prado, que diz que “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Eu acho que até falo sobre o que sinto em alguma medida. E é esse em alguma medida o problema, o espinho que me incomoda. Mais que isso: me fere, pois me silencia. E de silêncio, de viver em uma sociedade permeada pela ausência de diálogo, com homens dizendo sobre o que, quando, até que ponto e de que forma devo existir e falar estou farta. Estou farta em causa própria e, também, das outras mulheres. O silenciamento é geral, faz parte do jogo de dominação e busca pelo poder estabelecido pelo rançoso e malsucedido patriarcado, porque, cá entre nós, o patriarcado é uma máquina primitiva e feroz de criar desigualdades e intimidações. Vou dar um exemplo: 

        Não faz muito tempo, um namorado me disse em tom de ameaça: Helena, não me incomoda! E por que disse? Não faço ideia. Não havia acontecido nada, não estávamos em conflito. Pelo menos, eu não estava. Na verdade, deitada no sofá de sua casa, eu, quieta e satisfeita, lia um romance. Se algo desagradável estava acontecendo, esse algo acontecia, cem por cento, na cabeça dele com as questões dele. Questões que eu nunca soube direito quais eram por diversas razões, sendo a principal a de que ele não aceitava falar sobre suas dificuldades e equívocos de qualquer ordem comigo. Não sei se com alguém. O que sei é que elas alteravam o seu humor e o autorizavam a agir no campo das hostilidades. Eu não tenho uma natureza hostil e sou bem-educada. Recebi e introjetei a perigosa boa educação dada às mulheres, e falo perigosa, porque ela, volta e meia, serve à perpetuação da verticalidade das relações entre casais heterossexuais. Cabe à mulher ser compreensiva e gentil. Cabe à mulher ser generosa com o seu homem. Cabe a ela se calar e digerir, como se fosse natural, a agressividade masculina.

           Nos últimos anos, tenho cruzado com homens mais agressivos do que eu costumava. O discurso sexista propagado pelo senhor que está à frente do país, não tenho dúvida, resgatou e reforçou, mesmo entre os homens já mais civilizados e democráticos, comportamentos e falas discriminatórias e opressoras. De certa forma, houve uma recaída em direção aos ancestrais que animalizavam suas companheiras. De certa forma, o botão do protagonismo masculino foi acionado como se vivêssemos na época do Brasil colônia, aquele culturalmente dividido entre mulheres brancas e negras, sinhazinhas e escravas, todas igualmente ultrajadas embora de diferentes formas, sendo as mulheres negras em uma escala ainda maior e mais destrutiva de violência. As mulheres negras são mais agredidas e inclusive estupradas até hoje. “Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente”, Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ressalta. Eu sou uma mulher branca. Nessa nossa pirâmide de opressão e ofensas, recebo uma cota um pouco menor de dor. Mas recebo também. Ou recebia. Bati o meu martelo e inaugurei a minha era Bye Bye Autoritário enquanto não chega a de Aquário.

          O último homem que me disse, sim, voltei a ouvir a frase Helena, não me incomoda, caiu da própria altura em tempo recorde. Meu detector de toxicidade disparou na mesma hora. Não há mais espaço na minha vida para abusos de qualquer natureza. Como também não há mais cegueira. Vejo a violência psicológica com clareza por mais que ela seja imaterial. Se eu estivesse dentro do livro “Ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago, me candidataria ao papel de guia e não de cega.  A violência psicológica contra as mulheres, assim como o racismo, também é estrutural, vai além da misoginia, sendo que por ser invisível, acaba se tornando não denunciável e não sendo denunciável, também não se torna punível. Mas, de qualquer forma, je t’accuse! Sim, a ti e a qualquer um em que sirva a carapuça, porque a carapuça serve a muitos. Serve também àqueles que se omitem e desculpam os seus amigos quando os veem sendo prepotentes, injustos, desonestos e cruéis com uma mulher.

         Me disse um amigo, escritor a quem admiro, que isso, essa boa vontade entre iguais, se deve à brotheragem, o sentimento gratuito de simpatia de um homem para com outro homem. Sentimento gratuito mesmo porque ser simpático a alguém violento não é justificável. Já uma amiga, escritora a quem também admiro, chama isso de “passar pano”. “Os homens passam pano para os homens”, ela diz. Mas eu não sou homem, portanto vou torcer o pano até não restar mais uma gota de água, sujeira ou mágoa. Violência gera mágoas. Eu guardo algumas, principalmente, por não me expressar e não ter enfrentado os agressores com que me deparei, alguns com alta competência para a destruição.  No livro “Pandemonium”, do Zeca Fonseca, o livro que mais gosto de ler depois do “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar, Lemok, o protagonista, conta que, na tentativa de minimizar as frustrações e dores que sentia, acabava por fazer as coisas de um jeito que o fazia sofrer ainda mais. Ou seja, enlameando a vida de um modo autodestrutivo. Eu, sinceramente, acho o direito de autodestruição super legítimo. O problema é que existe o autodestrutivo da espécie terrorista.

          Espécie terrorista? Explico: o autodestrutivo terrorista é aquele homem que explode bombas em vez de tomar um silencioso copo de cicuta e depois, diante dos estilhaços, corpos e sentimentos atingidos de quem estava perto, normalmente a mulher que o estima, ainda se vitimiza quando ela se recusa a virar cinzas junto com ele e vai embora. Aí, em vez de pensar sobre si mesmo, o que fez, se desculpar e tentar uma reparação, o terrorista se enche de raiva como se se enchesse de dignidade e fala grosserias: sua opinião sobre mim não me interessa. É claro que não interessa. Todo mundo sabe o quanto Narciso acha feio o que não é espelho e o quanto não conhece remorso. Narciso, o do mito, até onde sei, via em seu reflexo algo encantador. O que não é o caso da maioria. A maioria dos narcisos contemporâneos vê a sua própria brutalidade e os seus próprios fracassos. E, para lidar com eles, é óbvio, que coragem e humildade são itens necessários. Quem não se vê, não se transforma. Segue viciado em si mesmo. Não conheço pior adição do que essa. Ela está por detrás de todas as outras. O viciado sempre encontra uma justificativa para o que faz e diz qualquer coisa para manter-se drogado. Até rouba.

          No último verão, uma mulher, em estado de estresse, me procurou em uma rede social. Tinha sido roubada por um homem com quem convivi anos atrás e estava muito confusa. Segundo ela, um dos fatores que tinham contado a favor de seu interesse por ele era o dele ter tido um relacionamento comigo. Julguei ele por ti, Helena, me disse, comecei a sair com ele pensando que ele fosse bacana como você. Eu sabia que ele não era. Roubou também a mim. Mas como advertir as outras mulheres sobre os homens que conhecemos?  Nesse ponto também vivemos um silenciamento e um aprendizado. Falo por mim. Já entendi que mesmo que andemos em pares, seguimos sendo cada um cada um. Não é porque a ex de um fulano é uma mulher incrível que ele também é. E já entendi que devo soltar o verbo, dizer o que sinto, como escreveu o Tonio Caetano a respeito do livro da Dalva Maria Soares. E o que sinto é que devo, doa a quem doer, tocar o trombone de Asdrúbal. Fazer barulho. Reagir. Incomodar. E por falar em Asdrúbal, esse era o nome do meu avô paterno. Não foi um homem legal. Depois de quarenta e três anos tratando minha avó como uma serviçal, a abandonou. Perguntei a ela o porquê. Respondeu: por um só menos, netinha. Acho que não. Meu pai foi vê-lo em seu derradeiro momento, e pensou em dizer te amo, velho. Não conseguiu. Não era verdade. E sem a verdade é tudo de mentira.

@helenaterracamargo


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