'TRAVESSIA', DE ANA LIA ALMEIDA
POR CRIS LIRA
Hoje é dia de falar do Volume III
da Coleção III do Mulherio das Letras, a novela Travessia, da autora Ana Lia Almeida. Começo dizendo que este livro me fez rir muitas vezes, também me fez
chorar, e eu o li devagar, apesar de ser um livro de bolsa, porque cada um dos
textos que juntos contam essa viagem, para pensar na ideia primeira do termo
travessia, pressionou meus botõezinhos – para não confessar que estou pensando
em inglês – em diferentes lugares.
[foto arquivo pessoal Cris Lira] |
Desde menina, diante de uma certa
profecia, eu decidi que não seria mãe. Há alguns meses, quando um pai de santo
me disse, na Bahia, que minha orixá era Yemanjá, a primeira coisa que saiu da
minha boca foi “mas eu nem sou mãe”. Ao que ele respondeu, “há muitas formas de
se maternar”. Eu simpatizo com essa fala dele, mas, sei, também, que a
travessia tão astutamente contada por Ana Lia Almeida é uma que eu nunca fiz e
nunca farei, portanto, como eu a agradeço por ter me dado a mão, por meio do
seu texto, para que eu me aproximasse um pouco do segredo.
Dividido em três partes Quedas,
Tropeços e Passagem, o livro nos atravessa, como o próprio trem de ferro,
mencionado por Adélia Prado, que aparece como a epígrafe motriz do livro. Nos
primeiros textos vamos acompanhando os acontecimentos à medida que a própria
personagem vai vivenciando as experiências ao mesmo tempo que temos acesso à
mente ansiosa, os cenários díspares que vão se formando, cada um mais caótico,
tosco ou engraçado, e isso traz uma leveza ao texto ao mesmo tempo que não
deixa de emprestar um pouco de ironia. Num deles, a personagem cai e pensa logo
nas pessoas que podem vê-la ali, “toda suja nessa beira de calçada” (21).
Dentre tantas, a maior ansiedade é que seja a sua médica, “[p]ois a médica mãe
de dois filhos vai parar o carro bem aqui ao meu lado e vai me ordenar:
“Levante já daí! Todas nós ficamos grávidas, não tem nada de mais” (21). Eu ri.
A protagonista queria que eu risse. O jeito como conta me leva a pensar isso.
Mas as perguntas que se seguem, o medo de não encontrar “o meio do caminho
entre a mãe total e a desnaturada” (23) vão me chamando a escuta. Há uma mãe em
construção aqui. Há um serzinho se formando e com ele há mil dúvidas e medos.
Há também uma pessoa que se sente perdida de si, desencontrando-se de si mesma,
“seria possível terminar o mestrado?” e que vai encontrando nos outros –
especialmente nas outras mulheres – apoio e também julgamento. Apoiada neste
livro, eu poderia falar muito sobre socialização feminina (a vizinha, a amiga
Isadora, a mãe), o mito da beleza, solidão materna, entre outros tópicos. Nada
do que eu pudesse fazer, porém, chegaria perto do trabalho feito por Ana Lia
Almeida ao nos entregar essa sua travessia, ao criar as pontes para nos
aproximarmos um pouco dessa experiência que, de certa forma, une as mães e, ao
mesmo tempo, é sempre única e, tantas vezes, pouco revelada.
[foto arquivo pessoal Ana Lia Almeida] |
Como diz uma amiga que estou sempre
a citar pelas leituras que faço quando me deparo com sua voz a partir do que me
traz os livros, a vida é uma contradição. Não há situações ideais, tudo está
sempre em constante mudança. Permanecer enquanto se faz a travessia desses
espaços turbulentos e contraditórios é o que tonaliza a vida. Por isso, deixo
com vocês uma das partes do livro de que gostei mais:
Leite
“Meu peito esquerdo estava quase sangrando quando resolvi
dar uma mamadeira de leite em pó a Nina. Não bastasse eu me sentir uma
fracassada por isso, ainda tive de lidar com o julgamento dos outros. Minha
mãe, quando descobriu, só faltou me xingar. Isadora (*amiga – grifo meu) também
não gostou. A pediatra, muito menos. Por ironia do destino, só quem me apoiou
naquele momento foi D. Edna (* a vizinha).
(...)
Enquanto D. Edna preparava o crime na cozinha, eu
sofria por ser tão horrível a ponto de dar leite em pó para a minha filha.
Estava certa de jamais me perdoar por aquilo. Que tipo de mãe eu era, com
aqueles peitos sangrando, cheios um leite que minha filha não conseguia mamar?
(...)
Tive de aguentar o julgamento da minha mãe, de Isadora
e da pediatra, o que me fez voltar atrás e insistir novamente na luta de
amamentar.
(...)
Quanto mais Nina mamava, mais eu doava leite.
(...)
Quanto mais se dá, mais se tem: amor, vida, leite. Uma
lição a cada mamada. Toda vez que me sentia alegre, meu peito começava a vazar.
O amor jorrando em líquido, uma explosão de vida no meu corpo” (63-66)
Aprendamos a escutar as mães. Uma
escuta verdadeiramente empática e tranquila, sem julgamentos. Deixo aqui o
convite para que conheçam essa mãe se construindo na e pela palavra de Ana Lia
Almeida. Espero que riam junto comigo.
Até o próximo volume!
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Ana Lia Almeida é natural de Recife/PE e mora em João
Pessoa/PB, onde leciona para o curso de Direito da Universidade Federal da
Paraíba. Ainda nas primeiras incursões pelo mundo literário, é autora de “Curtinhas
da Quarentena”, livro de mini-crônicas publicado também pela Ed. Venas
Abiertas, e da série de contos “Rita na Luta”, publicada quinzenalmente em seu
blog Salto de Palavras. analiavalmeida@gmail.com @ana.lia.almeida