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quarta-feira, 22 de novembro de 2023

NA TRILHA DO FEMININO: LARGADA DOMÉSTICA, DE RILNETE MELO

N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|08

LARGADA DOMÉSTICA

Era uma segunda-feira, dessas do tal calorão de 39° que quase fritava meus miolos e  fritava também ovo no asfalto,  dessas em que o dia branco, na verdade foi cinza; Do  bombril  impregnado nas unhas,  pó de casa varrida no pé e massa cinzenta pensando debaixo do chuveiro: Tenho que fazer isso, depois isso, amanhã  aquilo... E eternamente isso! 

Exausta, depois de me virar nos 30,  marido já  dormindo, ponho um cafezinho na xícara, destravo o celular para escrever alguma coisa, embora com o corpo pedindo arrego, a mente  ainda escrevive!  Passeio  pelo Instagram  e vejo, enfeitando o feed  viralizado, o tema da redação do Enem 2023: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

E de repente foi o assunto mais comentado na semana  e  alvo de debates polêmicos nas redes sociais. Dos memes às charges,  o que mais me impressionou foram os comentários machistas do tipo: “Trabalho? Que trabalho?”, “E a invisibilidade de quem paga as contas, o Inep não vai comentar?”. Circulou até um vídeo de um  deputado  falando que daria punição à filha se ela tirasse boa nota nessa redação! (Santa imaculada do feminino sofrido, que nos proteja desse patriarcado!!)

Mas o comentário que me desafiou a escrever essa  crônica foi lançado para mim em um post recente, quando ainda nem tinha ideia do tema da redação e já  abordava exatamente sobre a invisibilidade do papel da mulher desde os tempos mais remotos até os dias atuais, que é cuidar, amar, cuidar... E no profícuo ofício de cuidar, mendigar amor! E o famigerado machista, agora  já deletado  do meu perfil e denunciado, de pronto comentou: “Se você conseguir descarregar caminhão, trocar pneu de jamanta e emboçar parede, pra senhorita eu dou “A  taça cacete", (me diz aí quem não soltaria as cachorras??).

Saiba muito bem, pai da Santa  ignorância e do olho cego, que  se  tivesse olimpíadas para o trabalho doméstico, não haveria taças  para tantas vencedoras! Dada a largada, a categoria “Excesso de cuidados" subiria ao pódio ao som de uma “Ave Maria", pois, no silêncio rotineiro da mulher, o cuidado  doméstico soa como uma música piedosa que é (in)visível,  embalando  as protagonistas  nos bastidores do cotidiano.

Na sociedade capitalista, a relação de poder do homem em detrimento da mulher, ouço dizer que se “dá(va) “?? pelo fato do homem ser responsável pela renda familiar, mas o mercado de trabalho foi aberto  para as mulheres e a conta ainda não fechou, pois agora é dobradinha:

 “Trabalho e cuidados".

A verdade é que, em pleno século XXI, a mulher ainda é o “anjo do lar”, e que anjo!!   Carrega nas asas o peso do trabalho dobrado, dentro e fora de casa, no sonho de  alçar voo rumo à igualdade de gênero e à equidade.

“Desde que me lembro de ser gente, lá em casa, quem dobrava os lençóis da cama era eu, minhas irmãs ou mamãe", porque isso era serviço de mulher!  Isso tem mais de meio século e os lençóis ainda não chegaram nas mãos dos homens, pois eles não sabem dobrar as pontas iguais, afinal, de igualdade o universo masculino  nada quer saber, né? E se sabe, ainda pergunta onde fica.

Lembro que minha avó costurava, fazia crochê, consertava guarda-chuvas, fazia a comida, varria a casa, passava a roupa no ferro de brasa, e fazia e fazia, e ainda  ajudava meu avô a plantar e colher, botava a comida dele na mesa e, no final do dia, ele pedia o lençol para dormir, pois não sabia onde estava... Será que lembrava de agradecer?. Fala sério, mudou alguma coisa? Um tantinho? Nada? Coisa nenhuma?

Conquistamos  sim, quebramos alguns tabus e estereótipos, como o direito ao voto e ao trabalho desigualmente remunerado, mas há um trabalho (cuidado) eterno  que  continua  invisível, o status quo “gestão do lar”, sempre na manutenção das condições observadas.... Casa varrida, roupa lavada, fralda trocada, mamadeira pronta, comida no prato,  cama arrumada... Na verdade é uma verdadeira “Largada doméstica” apenas com ponto de partida. 

E aqui eu deixo um poema de minha autoria para que possamos refletir sobre nossa saúde mental,  sobre  o excesso de cuidados para com o outro e das situações estressantes às quais nós mulheres estamos mais propensas e sem reconhecimentos. 


LARGADA DOMÉSTICA 


Lambeu o chão,

esticou a língua 

ao sal

e correu para a panela,

como sempre correu contra o

tempo.

Cozinhou os sonhos,

o prazer,

a vida.

- Do menu servido

no prato cotidiano -

a carne parida,

o amor ofertado,

e o reconhecimento

ao molho. 

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora de cinco cordéis e dos livros solo Construindo Versos e O máximo de mim e outros mínimos poemas.

quarta-feira, 15 de março de 2023

NA TRILHA DO FEMININO: MINHA IDADE NÃO ME DEFINE, POR RILNETE MELO

N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|07

MINHA IDADE NÃO ME DEFINE

Dá uma coceira no meu cérebro quando vejo circulando na mídia assuntos que ferem a figura feminina. "ETARISMO", "IDADISMO", "AGEÍSMO", nada além de denominações  para um preconceito patriarcal antigo. Sim! Um preconceito que coloca no "congelador social" exclusivamente as mulheres, pois eu senti na pele esse bullying nefasto ao entrar na faculdade depois dos 40 anos, enquanto havia, na mesma sala, homens de 50,  com os ouvidos virgens  eu ouvia: "Nossa! Você dessa idade fazendo faculdade!" ou "Você já tem mais de 40, mas nem parece!"... Esses comentários, embora disfarçados de "boas intenções", vinham carregados de preconceitos, pois eu era excluída dos grupos das "novinhas"  nas apresentações acadêmicas, entre outros eventos, ficando nos grupos dos que se aproximavam da minha idade. 


Quem nunca ouviu: "menina, você já está na idade de casar!", (Eu casei aos 27 anos) ou "você foi mãe muito tarde!" (Fui mãe aos 28 e aos 31)... Tempo limite imposto por uma sociedade machista! Está  arraigado na memória da sociedade, mas é tempo de dar um basta nessa intolerância que supervaloriza a juventude de uma mulher. Homem coroa é um charme,  se casar com novinha é elogiado por sua virilidade, mas se mulher coroa casa com novinho é uma ridícula, assanhada e por aí vai...  É hora de combater esses estereótipos e mostrar ao mundo que envelhecer faz parte do ciclo natural da vida e não amputa a nossa capacidade de criar,  de ser, de viver, de lutar por nossos objetivos e fazer o que a gente quiser!  

Há alguns dias postei uma "geladinha" na mesa de um bar e não me faltaram comentários: "Você ainda bebendo?", cuidado! Hein?"

Que é isso? Homem com 60 pode, né? Calma!! Eu não estou passada, o viço não morre, as vontades não cessam e quando meu corpo  sinalizar o alerta, serei suficientemente madura para canalizar meus limites. Acredito que meu espírito só envelhece se eu permitir,   não vou aceitar o desrespeito,  o desprezo, os estigmas e as humilhações que minhas rugas possam  vir lhe causar.  As minhas limitações serão autoimpostas por  minha necessidade de controle.

Na obra "A velhice " , Simone de Beauvoir propõe que uma pessoa não deve se aproximar do fim da sua vida de mãos vazias e solitárias ,  mas que para isso é necessário refazer completamente a humanidade... É sobre ressignificar esse pensamento deturpado da sociedade, de que ficamos ultrapassadas com a idade,  que  devemos lutar para desafiar o sistema e fazer acontecer. 

Liguem o alerta, queridas companheiras! Vamos mostrar a essa sociedade patriarcal que estamos lutando contra essa força maldita e não vamos nos calar! Já CONQUISTAMOS muito, mas precisamos “desenhar” o percurso para que possamos chegar ao topo.  

Será difícil atingirmos uma sociedade igualitária,  pois   vivemos em uma distopia marcada pelo preconceito, violência e opressão de gênero,  porém se unirmos forças e plasmarmos novos conceitos poderemos esvaziar muitos estereótipos e discriminações.

Foram infelizes as "novinhas"  que hostilizaram a universitária Patrícia Linares, pois creio que elas não sabem que  mulheres de 40 são "AS LOBAS", as que  sexualmente são bem resolvidas, têm no rosto as marcas das emoções sentidas e vividas, e  experiência suficiente para saber onde querem chegar, sem menosprezar as fases já passadas e as que irão passar com maturidade.

Pois é! Já passei dos 50, lancei meu  primeiro livro solo em 2022 e acredito que foi cedo,  pois sonhos  não tem idade. Quanto ao meu corpo, as pedras que encontrei pelo caminho moldaram-o a cada tempo vivido, acumulei com perfeição as experiências e vesti minha pele de elegância espiritual, trago as marcas das emoções sentidas e domino a arte de seduzir através da poesia, meus cabelos têm a cor da minha alma, deixei e continuo deixando pegadas por onde passo, pisando forte  no solo que plantei horizontes eu vou em busca dos meus objetivos, até enquanto sentir o sopro da vida, pois  MINHA IDADE NÃO ME DEFINE.

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro "Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

sábado, 7 de janeiro de 2023

MULHERES INDÍGENAS EM DESTAQUE, POR EUNICE TOMÉ

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POR EUNICE TOMÉ

Começamos o ano ganhando um Ministério no novo governo, o dos Povos Indígenas, sendo empossada Sônia Guajajara, líder e ativista indígena, reconhecida por sua influência no movimento pelos direitos de seu povo no Brasil. Ela é do Maranhão, que habita as matas da Terra Arariboia. Com voz muito influente, faz parte do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e já levou denúncias às Conferências Mundiais do Clima (COP) e ao Parlamento Europeu. Membro do PSOL, em 03 de outubro passado, ela se torna a primeira indígena a ser eleita deputada federal pelo estado de São Paulo, com 156.966 votos, agora deixando essa função para presidir o ministério.

Além de seu ativismo político, Sônia Guajajara tem formação acadêmica - estudou Letras e Enfermagem e pós-graduação em Educação Especial.

Sônia é uma das referências para os povos indígenas, em especial para as mulheres, e a sua ascendência já vem de longe. No ano passado, 2022, ela foi convidada a compor o Álbum Biográfico “Guerreiras da Ancestralidade”, do Mulherio das Letras Indígenas, como uma das inspiradoras às 63 escritoras indígenas, que fazem parte dessa antologia. Uma obra de 200 páginas, onde cada qual apresenta sua vivência e um texto poético de suas autorias. A apresentação do Álbum foi feita pela premiada escritora santista Maria Valéria Rezende, uma das fundadoras do coletivo Mulherio das Letras.

Sônia Guajajara

O lançamento da obra foi no mês de novembro/22, na cidade João Pessoa, durante o V Encontro Nacional do Mulherio das Letras, com a presença de muitas representantes. Para mim, além de ter tido contato pessoal com essa nova safra de escritoras, foi surpreendente conhecer suas histórias de vida, antes mesmo do lançamento, uma vez que tive o privilégio de fazer a revisão geral do livro.

Esse mesmo Álbum será lançado aqui em Santos, em fevereiro, com a presença de algumas autoras, provavelmente na Estação Cidadania. Quem sabe, a ministra Guajajara possa vir prestigiar, mais uma vez, as guerreiras combatentes da sua ancestralidade e nos brindar com o brilho de seus ideais e de sua trajetória em prol do seu povo e do meio ambiente.

Lançamento no V Encontro Mulherio Nacional/Nov/2022


Eva Potiguara é indígena do contexto urbano, Doutora em Educação, professora de Artes do curso de Pedagogia, escritora e poeta, contadora de histórias, artista visual e audiovisual (clips), ilustradora, produtora cultural da EP PRODUÇÕES. É membro de várias academias de Letras no Brasil e na Europa. Articuladora do Mulherio das Letras Indígenas e do coletivo indígenas do contexto urbano no RN / INDURN. Livros publicados: “Do casulo à borboleta”, “Gatos diversos” e Abyayala Membyra Nenhe'gara,"Cânticos de uma filha da Terra" (2022).



Vanessa Ratton é jornalista, poeta, autora infanto juvenil, professora de teatro, Especialista em Teatro Brasileiro e Psicopedagogia e Mestre em Comunicação e Semiótica. Integra o Movimento Mulherio das Letras, tendo organizado a I e II Coletâneas poéticas Mulherio das Letras e a Coletânea internacional Mulherio pela Paz, em parceria com Alexandra Magalhães Zeiner, da Associação de Mulheres pela Paz Fraun für Frieden. Com o pseudônimo Tatá Bloom, é autora de Um ratinho que não gostava de queijo (Editora Multifoco), Um vizinho muito especial (e-book Kindle), Uma menina detetive e a máfia italiana (Editora Trejuli). Fonte: Ruído Manifesto.

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Eunice Tomé é santista, jornalista, mestre em Comunicação pela USP, escritora, poeta, haicaísta e promotora cultural. Possui oito livros publicados, incluindo contos, artigos, crônicas, poesias e haicais. No ano de 2020, apesar e até devido à pandemia, desenvolveu um projeto denominado Sarau em Casa com Pratas da Casa, onde divulgou 80 poetas locais da Baixada Santista, declamando suas poesias e resumindo um histórico. 



sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: UM AMOR DE VÉSPERA, POR RILNETE MELO



N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|06

UM AMOR DE VÉSPERA

                                                                                                                  POR RILNETE MELO


Era véspera de Natal. Ela entrara na igreja com o pé direito e o lado esquerdo do cérebro pedindo que orasse para esquecer aquela paixão fulminante, que quase conseguiu abrir a armadura que ela usava desde o término do seu casamento. Ainda não havia deletado as últimas mensagens do WhatsApp e logo que sentou-se, abriu a pequena bolsa nude e retirou o celular para mais uma vez certificar-se da sua decepção.

Ali estavam as últimas palavras de Raí e o soco no estômago que Nely tomara naquela tarde em que tomava café, na cozinha do hospital, com os amigos de trabalho.

— Sabe Nely, nunca existiu... Você é maravilhosa, mas...

Naquele dia Nely saiu da mesa, deixando a fatia de bolo de abacaxi no prato (seu bolo preferido) e os sonhos de um novo relacionamento jogados no espaço. Correu para o quarto de repouso do hospital e abraçada ao travesseiro chorou, enxugou as lagrimas e falou baixinho pra si mesma que as lágrimas de hoje regariam o futuro de amanhã. Havia lido o livro “O segredo” de Rhonda Byrne e acreditava no poder do universo, costumava usar mantras e apostou no “Tenho tudo ao meu redor, se não foi com esse será com um melhor”.

Já havia se passado dois meses, acreditava que aquele momento na igreja iria lhe fazer bem, então deletou todas as mensagens e ajoelhou-se em oração. A igreja estava cheia, lá fora o céu estava carregado de nuvens cinzentas, mas fazia calor lá dentro e ela mudou para um banco próximo ao ventilador. Havia um clima de Natal por ali, luzes coloridas cintilavam no altar, adolescentes com gorros de papai Noel entoavam “Noite Feliz” regidas por um maestro que acenava a batuta em gestos mágicos, dando o ar da graça aos coristas. Crianças fantasiadas de duendes e outros personagens natalinos se agrupavam esperando a hora da apresentação no palco.

A igreja apresentava na sua arquitetura elementos decorativos de estilo neoclássico, tal como Nely que buscava superar o passado. A sensação era a de que algum espírito natalino, ou mesmo papai Noel poderia aportar por ali, pois tudo era mágico como nos cenários de filmes infantis.

Talvez tudo aquilo conseguiria apagar o acontecimento dos últimos dias, então resolveu entregar-se aquela magia e deixar a frustração para trás. Acomodou-se no banco e sorriu com entusiasmo para uma garotinha de cabelos cacheados e pele morena, que vestia um vestido vermelho de saia plissada, o que lhe fez lembrar de um episódio triste da infância, onde trajava uma roupa semelhante àquela, logo expulsou aqueles pensamentos, que lhe causara trauma e deu uma olhada no folheto da liturgia.

Nely observava o movimento dos fiéis na igreja e os casais que entravam de mãos dadas e por um instante pensou em Raí. Distraiu -se com um senhor vestido de papai Noel distribuindo presentes para as crianças que faziam a maior festa, logo despertou com a presença de um homem ao lado que lhe observava há bastante tempo. Ele cumprimentou-a, era simpático e educado e aparentava ter alguns tempos de vida a mais que ela, parecia ser solitário, pois durante o sermão do padre comentou que não gostava do Natal, uma vez que sempre comemorava sozinho. Nely ficou comovida, mas manteve-se calada.

O padre celebrou a missa, houve uma pequena peça teatral e a bênção final. Nely dirigia-se para a porta de saída quando o homem tocou em seu ombro e pediu o número do seu telefone. Ela hesitou, mas tomada por empatia e comoção cedeu. Já estava a caminho de casa quando espantou-se com a buzina de um carro, e aquele cavalheiro da igreja com toda gentileza lhe oferecendo carona. Estranhamente, mesmo sem conhecê-lo aceitou. Não se incomodou com os prováveis mexericos ou mesmo o receio do estranho. Abandonou-se ao carisma que emanava daquele sorriso fácil e foi. Ao entrar no carro, ele se apresentou, chamava-se Peter, era divorciado, economista aposentado e, como ela, era devotado de fé. Estava uma noite linda e a lua cheia, enamorando o firmamento, dava o ar da graça. No vidro do carro refletiam os pisca-piscas das lojas e residências, e o azul dos olhos de Peter refletia no retrovisor, roubando por vezes o olhar distante de Nely. Durante o percurso trocaram algumas palavras, e ela gostou do jeito culto, respeitoso e cheio de sabedoria com que ele dirigia o diálogo.

Saíram para um passeio na praia.

Nely era divorciada, casou-se jovem, criou os filhos sozinha, carregava consigo um certo ar de independência e resistência ao machismo e aos estereótipos impostos pela sociedade, porém percebia que a solidão não era sua boa companheira.

Gostou da companhia de Peter.

A orla marítima era bem distante do mar, mas dava para ouvir o barulho das ondas. A calçada colorida era harmônica com o azul do mar, havia uns quiosques rústicos e convidativos para um drink a dois. Caminharam por muito tempo e optaram por um boteco com cobertura de sapê, acabamentos coloniais e música ao vivo. Era pequeno e aconchegante, escolheram uma mesa de frente para o mar, havia pouca luz, apenas arandelas artesanais nas colunas e samambaias penduradas. A brisa tocava em Nely, como se acariciasse sua alma e sussurrasse em seu ouvido que para sentir é necessário fazer sentido.

A mão masculina tocou a sua e ela sentiu que o calor humano era bem melhor que o frio da solidão, embora gostasse da sua liberdade. Peter entregou o coquetel Sex on the beach em suas mãos e com a outra mão acariciou a nuca de Nely que sentiu um calor percorrer todo o seu corpo, dando-lhe a certeza que já estava enamorada. Ao som de How deep is your love de Bee Gees, os dois saíram para a pista de dança e os corpos colados encontraram os lábios, que sem entenderem que o céu é o limite, abandonaram as línguas no céu da boca.

Saíram os dois em direção ao mar. O sol já soltava seus primeiros raios. Vento e areia misturavam-se nos corpos abandonados, liberando endorfina. Ele apertou sua mão implorando que ficasse para sempre, ela respondeu baixinho: Nunca mais estarás sozinho, Feliz Natal!

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

AVE, CRÔNICA: VIBRA BRASIL, POR EUNICE TOMÉ

 


AVE, CRÔNICA|06

V I B R A   B R A S I L

POR EUNICE TOMÉ

Hoje estarei indo para a cidade de João Pessoa, na Paraíba, para o V Encontro Nacional do Mulherio de Letras, um movimento de escritoras, editoras, ilustradoras e promotoras da literatura, e que foi gestado em tempos atrás lá e aqui em Santos também. 


A Capital da Paraíba é o ponto mais oriental das Américas, por estar situada na Ponta do Seixas, no extremo do Nordeste, conhecida também como “porta do sol”, por ser onde o sol nasce primeiro no continente americano, além de ser a segunda capital mais verde do mundo.

Praia do Jacaré - Foto do Jornal da Paraíba-11/2022

De 25 a 27 de novembro, a presença feminina estará recebendo essas energias e, ao mesmo tempo, resplandecendo o calor do sol entre tantas mulheres de todo o nosso país, na busca de engrandecer os feitos da escrita nas falas de brancas, indígenas, pretas, em total miscigenação. Para celebrar, uma Coletânea será lançada, com textos em prosa e versos de suas participantes. 



Assistirei ao jogo do Brasil, em sua estreia na Copa, direto de lá. Será uma experiência nova, mas acredito que interessante por mesclar as torcidas de diferentes lugares, em torno da mesma paixão. E isso me faz ampliar a ideia de que uma disputa mundial, como essa, onde estão presentes tantas nações, de várias raças, cores e costumes, pode dar a dimensão de que devemos estar unidos em torno de buscar resultados e na defesa do país.

Em tempos muito ruins de polaridade política, estivemos lutando contra princípios e valores nefastos. O pavilhão nacional sendo apropriado como uma sigla partidária, e agora, fazendo parte de janelas e tremulando nos prédios como símbolo de todos, na torcida pelo melhor desemprenho no futebol.

Bem a calhar essa Copa, e já temos visto aqui na região bairros inteiros sendo coloridos e enfeitados para o grito de gol de todas as gargantas, não importa de onde venha. Na minha memória de adolescente, a Copa do México, em 1970, foi comemorada com muito entusiasmo e a influência foi tamanha, que a partir daí foi criada a comunidade na periferia de São Vicente, como o nome de México 70.

Vamos fazer o mesmo coro e torcer que consigamos nessa edição de 2022, a mesma vitória e sejamos campeões, mas além do melhor desempenho nas quatro linhas do campo, o que mais desejamos é ver unificado o país e todos buscando o melhor resultado na economia, nas áreas sociais, na educação, saúde, meio ambiente e nos esportes.

Esse será o melhor gol e com mais uma estrela brilhando a nosso favor.

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Eunice Tomé é santista, jornalista, mestre em Comunicação pela USP, escritora, poeta, haicaísta e promotora cultural. Possui oito livros publicados, incluindo contos, artigos, crônicas, poesias e haicais. No ano de 2020, apesar e até devido à pandemia, desenvolveu um projeto denominado Sarau em Casa com Pratas da Casa, onde divulgou 80 poetas locais da Baixada Santista, declamando suas poesias e resumindo um histórico. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

AVE, CRÔNICA: CLARICE E EU, POR TAINÁ VIEIRA



AVE, CRÔNICA|05

C L A R I C E   E   E U

POR TAINÁ VIEIRA


Clarice e eu é o nome desta crônica porque se trata de um texto bem intimista, na verdade, nem era para ser compartilhado, mas preciso mostrar o quanto tempo eu perdi, menosprezando uma autora que mudaria a minha medíocre existência.  Sei, estou agindo como uma colegial, porém, eu não me importo. Clarice Lispector exerce um poder intenso sobre mim, a forma complexa e sutil de narrar, me motiva, influencia e inspira muito.  Definitivamente, Clarice é a minha autora favorita para sempre!

 Quando eu estava no curso de Letras – Língua Portuguesa, e mesmo antes do curso, eu lia muito, sempre digo que a minha jornada na literatura se deu primeiro com a leitura, isso é óbvio, não poderia ter sido diferente.  Todavia, jamais me interessei pela literatura de Clarice, por dois motivos: o primeiro era porque sempre ouvira falar que a sua escrita era difícil de se entender, muito complexa e cansativa, e o segundo motivo; era por pura preguiça de me esforçar para entender.

Eu queria algo mais leve e fácil, eu queria mesmo era sombra e água fresca, nada de olhar para as profundezas das emoções das personagens, como no romance de estreia de Clarice, Perto do Coração Selvagem. Esse romance mudou a minha vida de verdade, e isso não é um clichê. Vira e mexe, estou pensando em Joana, ó minha triste e doce Joana, quão feliz eu fui adentrando a tua infeliz história. Por várias vezes, vi-me ali, por muitos instantes tu, Joana, eras eu, vivi contigo muitas agruras e tive também quase os mesmos pensamentos teus.

Formei-me, especializei-me, o tempo passou e Clarice sempre ficou para trás na minha vida. Sentia uma raiva tão intensa quando alguém perguntava sobre algum livro de Clarice, e eu respondia que não conhecia e a pessoa se assustava, como assim não conhece nada de Clarice? Eu, retrucava, quem é Clarice na fila do pão? É mesmo essencial ler Clarice?

Comecei lendo as suas crônicas, uma coletânea, Todas as crônicas, são mais de 600. O destino armou direitinho essa cilada boa, me pegou com as crônicas, e eu conheci uma autora totalmente oposta daquela que ouvia falar, e senti um ódio tão grande de mim por me deixar levar “no ouvir dizer.”  As crônicas de Clarice são inspiradoras, nota-se a paixão pela escrita, pela Língua Portuguesa, e pelo país que ela tanto amou. Em seguida fui para os romances, me esforcei muito para gostar da Macabéa (já havia lido na época da faculdade, mas foi por obrigação) prefiro a Joana, contudo, a minha favorita é a G.H. G.H fala aos meus ouvidos, na verdade, estou ali naquele quartinho acompanhando cada cena que sua mente produz.  Vivo àquela condição humana tão banal e tão necessária, e deixo-me levar por aquele turbilhão de emoção que percorre a narrativa.

Quando estou com tempo sobrando, assisto a entrevista de Clarice concedida quase um ano antes de ela morrer.  Já fiz isso várias vezes e mais vezes farei. Tenho um álbum na minha galeria de fotos só dela. Quando penso em Clarice, lembro também de uma professora da época da faculdade que faleceu há um ano, ela amava e nos falava com paixão da obra de Clarice e dizia-me que eu precisava ler Clarice, que Clarice era fundamental. A minha professora estava coberta de razão.

Passei pelas crônicas e por alguns romances e estou finalizando os contos, os contos que quanto mais complexos, melhores são. E eu tenho certeza, jamais encerrarei as leituras, Clarice sempre estará ao meu alcance, tanto que A paixão Segundo G.H, me chama, nunca vi isso, um livro chamar por mim.

Antes de ler integralmente a Paixão segundo G.H, eu já havia iniciado umas duas vezes, e parava, não porque não entendia, mas sempre acontecia algo que fazia com que eu deixasse a leitura de lado, só que um belo dia, eu decidi, vou terminar esse livro, recomecei e em dois dias, eu estava triste porque tinha terminado, eu queria mais, queria que a leitura durasse mil e uma noites. Algo estranhamente tem acontecido, sinto uma necessidade de relê-lo.  Estou quieta, e subitamente vem uma vontade de começar a ler tudo de novo, é como se esse livro chamasse por mim.

Essa é a literatura de Clarice, poderosa, inspirável, avassaladora e dominante, quem a conhece, a compreende, não escapa mais e fica literalmente à mercê, como se dela, um leitor, necessitasse para sobreviver. A obra de Clarice é o melhor enigma para que se possa desvendar (ou tentar) antes de começar a escrever. Clarice é essencial sim.

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Tainá Vieira é poeta, cronista e contista. Radicada em Manaus desde 2001. Autora de Prosa & panela e outras crônicas, publicado em 2019 pela editora online Polaris. Tem contos e poemas em outras antologias. É a primeira autora publicada da sua cidade natal, Juruti.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: O ARCO-ÍRIS

  


N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|05

O ARCO-ÍRIS 


“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa” (Carl Gustavo Jung).

A fala do psiquiatra Jung,   remete-nos a criança que mora em cada um de  nós e tudo que evidencia-se ao longo da nossa existência em decorrência da infância.  É dos eventos que vivenciamos nessa fase  da vida, que carregamos grande parte da nossa personalidade.

Quem não suspira ao lembrar do seu tempo de criança? Seja das alegrias,  dos momentos de fantasias, ou das tristezas e represálias...

Como disse “Casimiro de Abreu"  Oh! Que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha Infância querida que os anos não trazem mais...

Ah! O pé  no chão, as escaladas de árvores, os cordéis  lidos por minha avó , o cheirinho dos pratos deliciosos da minha mãe, os doces de pitanga,  o algodão doce no parque, as cantigas de rodas ao ar livre, as comidinhas de terra  e folhinha no quintal de casa, as minhas bonecas/filhas, os joelhos ralados,   os banhos de chuvas e nos igarapés, as pipas,  o peão rodopiando, o carrinho... A liberdade de ser menina/criança, de ter pureza, de ter um mundo de paz... A lembrança que carrego comigo é que era tudo mágico!

A magia existia, mas foi lá na infância que começou a se delinear os estereótipos, a separar cores, brinquedos, espaços... Eis então a contaminação da ideologia patriarcal.

E não é só por ai... A tecnologia chegou e a mídia e a publicidade infantil estão encurtando a infância feminina, através da erotização precoce e da adultização. Todavia, eu ainda cultivo minhas lembranças de uma infância de ingenuidade, feliz e romantizada, bem, como  por vezes, me vejo tendo comportamentos infantis. Como disse Clarice Lispector: “Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais”. 

E pegando carona nesse dia das crianças trago para vocês um texto da minha autoria:

O ARCO-ÍRIS

Quando eu era criança eu tinha as minhas crendices e fantasias; acreditava que havia um tesouro na extremidade do Arco-íris. Morava em um lugarejo, desses que não tem água encanada e nem  luz elétrica, mas a paz reinava por lá, onde eu era feliz à luz do luar e tomando banho com água de poço. Era lá que eu sonhava em um dia encontrar o meu tesouro!

- Certo dia, debruçada na minha janela, eis que surge no céu um Arco-íris.

- É hoje! É hoje! Vou alcançar o meu tesouro!

-Ah! O arco-íris, ele tem forma de escorregador (Eu pensei...). E se tivesse uma escada bem longa e eu subisse e escorregasse até a extremidade?... Mas, onde encontrar essa escada?

Desalentada, desisti da ideia e de repente meus olhinhos brilharam de alegria... Eu vi que a extremidade estava exatamente ali onde eu costumava brincar de cirandas com as amiguinhas, onde eu brincava de bonecas e jogava pedrinhas. Naquela calçada alta, onde eu ficava ouvindo a velha Iaiá contar suas estórias a luz do luar. Lá na calçada do Sr. Ribamar! Era alta! eu ia alcançar!

Corri cheia de esperanças pra pegar o meu tesouro, mas quanto mais eu palmilhava e esticava  meus passinhos mais o arco-íris se distanciava e as cores iam perdendo o seu fulgor... o arco-íris ia desaparecendo e com ele o meu sonho, o meu tesouro!

Meus olhos fotografavam aquele local, onde vi a extremidade do arco-íris. Aquele cenário explêndido, cheio de cores, não me saia do pensamento... Se o arco-íris estava ali tão próximo, porque não consegui alcançar o meu tesouro?

Quando cresci consegui entender que o arco celeste era apenas uma ilusão de ótica, mas  as cores, o fulgor e os sonhos, estavam realmente naquele local, alí onde eu brincava, onde eu ouvia as estórias da velha iaiá, onde eu cantava as cantigas de roda e acalentava bonecas, onde eu era criança... Ali onde estava a minha infância. O meu tesouro!

"A Infância é como o arco-íris, quanto mais palmilhamos, ela vai se distanciando e as cores e o fulgor vão desaparecendo.” (Rilnete Melo)

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 


AVE, CRÔNICA: VERDE QUE TE QUERO VERDE, POR TERESA BENDINI


AVE, CRÔNICA|04

VERDE QUE TE QUERO VERDE

POR TERESA BENDINI


“Verde que te quero verde”, esse é o emblemático verso, do poema "Romance Sonâmbulo", composto por Lorca, na verdade, Federico Garcia Lorca, poeta espanhol, assassinado covardemente pelo fascismo franquista em 1936.   Esse famoso verso se repete ao longo do poema, exaltando o verde e toda natureza.  Talvez por isso, o dia do seu nascimento, (5 de junho), seja também o DIA MUNDIAL DO MEIO AMBIENTE. Data definida durante a Conferência de Estocolmo (1972).

Sim, na sua época, a utopia também estava comprometida, e a bandeira que a representa, nas mãos de militares, como aqui.  É aí, que entro, no título dessa crônica.  "VERDE QUE TE QUERO VERDE". Esse belo poema, belíssimo, conta da tragédia que foi, se render ao ideário fascista. O verde de Lorca, é o verde da nossa bandeira real.  De todos os seres aqui viventes, pois seu significado, se estende a todos. Humanos e não humanos, portanto, rios, flora, fauna etc.

É o verde da utopia, do vigor, do renascimento de uma outra aurora.

Deixa eu te contar um segredo mágico? "Não é a gente que realiza o SONHO... É sempre o SONHO que realiza a gente!" (Teresa Bendini)

Lorca grita: “Verde que te quero verde!!!”.  Mantenha o frescor, mantenha intacto seu ímpeto de liberdade. Sua certeza numa sociedade justa.

Lute por ela, como a semente jogada na terra, luta por sua árvore.

Em 1936, por ordem de um deputado católico ele foi preso.  Disse o homem, que o poeta era mais perigoso com a caneta, do que ele seria, com o revólver. Outra vez o conservadorismo, outra vez a truculência, impedindo o sonho, que é sobretudo o da transformação da realidade. O devir comprometido, paralisado, dessa vez na Espanha.  

“Verde que te quero verde”. Imagino Lorca gritando a frase, olhando para a nossa bandeira hoje. Mas aí, junto dele, estariam todos os nascidos nesse território, os de variadas procedências. Os que acordam de manhã acreditando no sonho. Mas no sonho que é de todos e para todos.

"Quando chovia, um sol dentro de mim, tomava banho." (Teresa Bendini)

A frase do poema, que aliás não é o título dele, ordena ao verde da bandeira, que ele permaneça sendo representativo desse ideal, o da liberdade.  Seria então, realmente verde, sua tonalidade, se a esperança está sendo atacada?

Nossa bandeira em mãos erradas perdeu sentido e a sua tonalidade já é outra.  Não tremula mais o verdejante ímpeto. Não reconheço nela o libertário ideal.  O nobre significado, foi usurpado da bandeira. Tornou-se truculência o que se estende nas paredes e janelas.  Tornou-se o verde oliva da antidemocracia, do antipovo e o que se vê é só um pano estendido, avisando: "Cuidado, se você pensa diferente de mim, não entre aqui", o famoso, “Ame-o ou deixe-o”, representativo apenas de uma classe temerosa de perder seus privilégios.  

Mas a frase do poema ainda ordena ao verde, que ele permaneça fiel ao tom da liberdade.  Ainda que eu não reconheça, (nessa outra), as necessidades gritantes do nosso povo; ainda que nela não esteja a luta que se deve empenhar por nossas matas e rios, montanhas e biomas; ainda que eu não veja em seu tecido, as variadas faces do povo miscigenado, é verde o fio que tece a liberdade, é verde o fio que tece a transformação, o devir é verde.  É verde o fio que tece a utopia. Mas hoje, o que vejo é a bandeira, no fio da navalha.

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Leia o poema "Romance Sonâmbulo", de Federico García Lorca, clicando AQUI.

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Teresa Bendini é poeta, nascida em Taubaté, SP. Escreveu oito Livros Infantis e um de Poemas. Seu último Livro: "Krenak, o menino dos braços compridos", escrito durante a pandemia, faz alusão ao urgentíssimo texto: "Ideias para adiar o fim do mundo", do ambientalista e pensador indígena, Ailton Krenak.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

AVE, CRÔNICA: O TRISTE VERDE DAS BANDEIRAS, POR TERESA BENDINI

 


AVE, CRÔNICA|03

O TRISTE VERDE DAS BANDEIRAS

POR TERESA BENDINI

Frustrada com o resultado das eleições, ou mesmo desolada, procurei fazer coisas agradáveis, que me levassem a ter bons sentimentos. Andar de bicicleta me agrada muito, visto que resido numa região entre serras. Paisagem linda. Depois de pedalar mais de 40 km, tive vontade de comer alguma coisa e me surpreendi. Não demonstrei desejo algum de parar em locais sofisticados, mesmo que fosse só para tomar uma água. A estrada é cheia desses cafés requintados. Percebi que não me sinto bem em locais feitos para uma determinada classe, aquela endinheirada. Percebi que essa estrutura há tempos não me diz respeito. Não sou mais a pessoa que se encaixa nessa faixa. Preciso de um Brasil outro, mais humano e integrado. Sentei com o garapeiro, naquele fim de estrada. Homem tranquilo e doce, como o líquido esverdeado da cana espremida. Repleto de história do Brasil, escorria o caldo, enchendo meu copo. Junto com outros, senti o quanto seria bom uma sociedade menos estratificada.  A boa conversa, o fazer simples, o convívio harmônico, foi o que eu senti naquela breve parada.

Lembrei do belo texto da amiga Marta Cortezão, na revista Voo Livre, edição nº 27, desse mês, que liga Arte a humanidades. Acho que entendi o que ela disse e concordo. Patrimônio Imaterial, chamado por Antônio Cândido, (não por acaso), de Patrimônio Incompreensível, é por excelência, a alma do ser, é simplesmente a sua subjetividade. Sempre rica, diversa, instigante, por vezes gritante, onde sagrado e profano se entrelaçam, essa essência humana, ela mesma, cheia de nuances, é o que podemos chamar de subjetividade, portanto alma humana. Faço-a já sinônimo de Patrimônio Imaterial, onde tudo se faz dialeticamente. E é essa a riqueza que deve ser incentivada.  Uma riqueza, hoje, ameaçada pelo sistema que começou lá atrás, com o caldo da cana moída, pela máquina moedora de gente. 

Clique na imagem e acesse a Voo Livre Revista Literária

Hoje o sistema esmaga nossa subjetividade, de tal forma, que pensar, comer, morar, fazer arte, fazer política, se relacionar, tudo isso é como cana moída, esmagada, até as últimas consequências. O verde da cana, o bagaço dela, somos nós. Com nossa subjetividade já massificada e destruída.  E hoje, posso dizer que é isso que vejo, tremular na bandeira que se estende verde, como a cana, nas paredes e janelas.

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Teresa Bendini é poeta, nascida em Taubaté, SP. Escreveu oito Livros Infantis e um de Poemas. Seu último Livro: "Krenak, o menino dos braços compridos", escrito durante a pandemia, faz alusão ao urgentíssimo texto: "Ideias para adiar o fim do mundo", do ambientalista e pensador indígena, Ailton Krenak.

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