quarta-feira, 23 de março de 2022

TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


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TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


 Por Margarida Montejano

Patricia Cacau

Agora vamos para trilogia.

Virgem (Se Essa Lua Fosse Nossa)

Mulher na fertilidade (Ciranda de Deusas)

Mulher na sabedoria (I Tomo das Bruxas)

A mulher nas 3 fases da sua existência.

Formando o tripé*

 

Se essa Lua fosse Nossa

 

É manhã… muito cedo ainda…

Me ponho a olhar. Fixo os meus olhos e, a retina enfeitiçada vê a menina faceira, virgem, cheirando a alecrim e à flor de laranjeira.

 

Maria, Isabel, Marta, Teresa… Quanta energia, quanta beleza!

 

Leve e solta, canta com o sol e o vento.

Corre feliz entre os campos e, de espírito livre com flores se enfeita, na relva se deita!

Oh criatura divina que a lua do céu ilumina! 

Que da boca escorre mel! Que ofusca as estrelas do céu!

 

Fátima, Conceição, Imaculada,

Margarida e Rosário…Fiam a noite, tecem o dia, experimentam a vida!

 

Vejo  outra menina igualmente bela,

preta, branca, vermelha, amarela,

a desfilar sua singularidade entre carros e arranha céus!

Seja no campo ou na cidade ou, de qualquer ponto do universo,

as meninas encantadas, perfumam as noites estreladas 

e  à lua, declaram em prosa e verso o seu amor no papel.

Numa aquarela, seduzem, inspiram… ah se essa lua fosse nossa!

Enternecidas, cantam o amor próprio e viajam para a lua, a Consolação, a Rita de Cássia, a Glória e a Aparecida!

 

Uma Ciranda de Deusas

Afastem de mim a sua Filosofia!

Joguem fora estas Poesias de Amor!

Tessalonicenses 4:16-18

 

É tarde, mas… cedo ainda para ela. Para elas!

Pego-me a admirar a formosa mulher que de botão, flor se fez. Faz de conta que o tempo não passa e a bela corajosa, canta espantando os males e as tardes ensolaradas, encanta.

 

Da Penha, Ana, Das Dores, Gorete e Catarina, aos olhos da mãe em noite de lua, são elas ainda meninas

 

Com a alma lavada nas noites enluaradas, escreve receitas, rabisca poesias, aprende com os erros, acalma o vento e, do tempo, os temores.

Ensina o amor e inventa a esperança.

O tempo e as agruras da vida, enfrenta.

Seguem Ana, Madalena, Clara e Remédios, o caminho das pedras, no enfrentamento das dores.

 

Luta na labuta do dia e sonha na candura da noite.

Destemida, cuida da casa, da roça e das crias.

Tão fértil é ela que gesta em seu ventre a luz

e, o dia é pouco para o tanto que faz!

Ela, somente ela é capaz de, ao mesmo tempo, três verbos conjugar - amar-perdoar-seguir. 

 

Rosa, Edwirges, Luzia, Patrícia  e Helena…

tão sensíveis, tão combativas e, ao mesmo tempo,  tão serenas…

 

De versos, coragem, abraços e afetos faz rimas.

Da o colo, o ombro, faz serestas, cantigas e poemas às amigas!

Poderosa faz ela o que bem quiser e,

numa ciranda de deusas, dança e dança a madura mulher.

Chora a dor do mundo, enfrenta o ódio gratuito, o machismo, o desemprego, a fome. Sangra, teme, enfrenta os dilemas, as tempestades e não desanima. O corpo endireita, se veste de sol, põe estrelas no cabelo e a terra germina. É ela a menina, a deusa, a mulher!

 

 

I Tomo das bruxas

 

Há quem passe pelo bosque

e só veja lenha para a fogueira.

Há quem veja VIDA. 

Jéssica Freires

 

Lá vem a noite e, para ela, para elas… é cedo ainda!

Ouço atentamente. A bela senhora conta histórias com sabedoria e, sua voz reverbera no ontem, transita no hoje e se põe a sonhar o amanhã.

As histórias que compôs, que viveu, que contou e que ainda estão guardadas em seu íntimo, inspira e ilumina as mulheres, jovens e meninas, durante o luau…

 

Ela, com o sol sobre os pés, revestidas da prata da lua, viaja no tempo e busca, nas origens das origens, o grão de terra que a constitui e, ao invocar o chão ancestral, encontra as ervas para todas as curas, as palavras certas para todas as situações e a reza devida, para o livramento dos males.

 

A mulher madura, na altura da idade que carrega, respeita a hora de falar, pois aprendeu com os anos, com o peso da lenha nas costas, a lata cheia d'água na cabeça e os tombos do tempo, a arte da escuta. Os olhos delas são parceiros dos ouvidos e os lábios, quando se abrem, trazem a palavra sabedoria.

 

Para além da filosofia, não é à toa que as mãos, sabedoras das medidas exatas preparam os chás, caldos e quitutes mais sofisticados do mundo e, com docilidade essas mãos, quando tocam a parte que dói nos corpos doentes, são capazes de curar. Com reza, alecrim e guiné, fazem poesia.

 

Não é à toa que essas incríveis criaturas são tão temidas! Pois, se são capazes de suportar a dor com resiliência, de enfrentar o machismo secular e de defender com unhas e dentes a causa a que acreditam, o que mais elas podem fazer? Ah! Elas podem muito, desafiam a ciência as tais feiticeiras! Elas podem, quando de mãos dadas, mudarem o mundo!

 

Na dúvida, melhor silenciá-las!

 

Assim tem se revelado as duras estatísticas do feminicídio.

Ato que substitui a fogueira e demonstra a covardia daqueles que se acham mais fortes.

Covardes eles são!

Malditos! Estes não são dignos de desatar as sandálias dessas maravilhosas bruxas do nosso tempo!

 

À  todas as mulheres que viveram, lutaram e se foram antes de nós! À Joana D’arc, a Carolina de Jesus; Irmã Dulce, Dorothy Stang; Zilda Arms, Márcia, Joene, Marielles, Elzas e a todas as Marias do mundo! O nosso respeito, admiração e reverência!

 

Estamos aqui por elas, por nós e pelas que ainda virão. Continuaremos a marcha por uma e por todas. A luta que a força bruta não estanca. O amor e o poder feminino que a tirania não vence! Seguiremos confiantes de que, na mistura perfeita da semente humana e divina, o ventre da terra haverá de gestar um mundo em que todos tenham um lugar.

Um lugar para viver dignamente e sem preconceitos, amar!






terça-feira, 22 de março de 2022

A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES, POR ISA CORGOSINHO



FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|04

A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES

Isa Corgosinho

 

O livro que desenha os cursos das amazonidades nos indica, logo no título, uma das possíveis chaves interpretativas: seguir as gestas das águas. Seguindo os fluxos dos braços dos rios que deslizam sob a linguagem poética, adentramos um mundo que em nada refrata o modelo como a ciência moderna percebia o homem e seu ecossistema. O relógio, metáfora da forma mecânica de descrição deste mundo, é incapaz de marcar a complexidade da união sistêmica dos afluentes gestados nos capítulos, unidades unas e potentes, que formam um todo. O eu lírico, que se desdobra nas experiências vivenciadas no e pelos rios, não é um mero observador do curso e concurso das águas. Se vê refratado e refrata para o leitor as relações intricadas da objetividade dos rios e a subjetividade do poeta: os elementos constituintes da realidade desse ecossistema vivem nas alteridades complexas do sistema.

Edgar Morin (2006), ao discorrer sobre o paradigma cartesiano, faz uso do termo "simplificador". Assim, a simplicidade põe ordem no universo, expulsa dele a desordem e a ordem se reduz a uma lei, a um princípio. Segundo o filósofo, este paradigma simplificador vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução). Em resposta a esse paradigma, Morin apresenta o Paradigma da Complexidade, cujo postulado está na relação entre a parte e o todo: não é apenas a parte que está no todo, mas o todo que está igualmente na parte.

O conhecimento adquirido com as vivências nos rios, que no livro de Cortezão é o todo, volta-se sobre a parte população ribeirinha, formando um ecossistema múltiplo da floresta e região. As amazonidades nos convidam a uma visão das dimensões holísticas da região pelos rios Negro e Solimões que atravessam as vidas dos ribeirinhos do norte do país.  Os perfis humanos, herdeiros dos povos originários, são seres-em-relação e o EU lírico se define sempre diante de um Tu, esse TU significativo e caudaloso, que é o rio.   

Para girar a chave e abrir a compreensão que nos permite uma melhor interpretação do livro de Cortezão, a afirmação de Luhmann (1987) nos é muito bem-vinda. Para ele, o desenvolvimento do pensamento sistêmico percorreu três distintas fases históricas: na primeira, os sistemas eram arquitetados como totalidades fechadas; na segunda,  aconteceu uma mudança radical em comparação à primeira, e os estudiosos passaram a conceber os sistemas como abertos, em outras palavras como sistemas que realizam trocas com o seu meio; e terceira, também chamada a fase dos sistemas autorreferenciados ou autopoiéticos, é defendida principalmente por Maturana e Varella (1995).       

A fase sistêmica que pulsa nas trovas das Amazonidades forma sistemas autopoiéticos, que se definem como configurações vivas que se constituem e mantêm a si mesmas. Seus componentes interagem num processo circular, produzindo mais componentes necessários para a autopreservação e constituindo-se em uma unidade delimitada que necessariamente é um ser vivo. Esse sistema nos parece apropriado para compreender a arquitetônica dos cinco rios que gestam em suas águas a pluralidade regional, cultural de sua gente.

O Rio I – DOS ACESUMES são trovas que entoam o vasto campo semântico da dupla chama amor e erotismo, sob a cumplicidade do rio, na ribeira do Negro o lamento do amigo que partiu caboclas águas: é o rio da presença e da ausência, nos incertos destinos heracletianos do rio como um devir a ser do homem.  A água e o fogo são as matérias compostas das temperaturas que sobem do rio e penetram o corpo desejante, exaltam a dupla chama: o rio é fálico, é o amante que penetra suas águas no cio sob a saia:   

Quando caniçava as águas,

e me remava de rios,

sacava-me o vento a saia

           na fértil relva de cios.        

Mas a amante deseja a chama do amor perene, e propõe acordo com o amado, encarnado no rio. Oferece os bens necessários terra, fogo, alimento e um interminável sentimento:

           Dou uma roça de meia

           três latas de querosene

           e o que tiver no paneiro

           por um rio de amor perene.

O Rio II – DAS COMILANÇAS. Aracu, Jaraqui, Pequiá e uma série de alimentos que provêm direta ou indiretamente dos rios: os peixes; a mandioca que produz a farinha; as frutas do café, do açaí, do maracujá são alguns dos ricos e variados alimentos que fazem a festança da cunhatã. A mãe natureza provedora e seu filho rio com sua fauna e flora abastecem, nutrem os povos originários, as famílias ribeirinhas. Os rios são amantes e são também provedores. O modelo sistêmico autopoiético aqui também comparece evidenciando uma de suas características que é produzir por si mesmos o que necessitam para a sua organização, acolhem tudo que é necessário para sua subsistência e autorreprodução.  

O Rio III – DAS LESEIRAS. O afluente das leseiras é rico nas caracterizações do rio e do clima quente e úmido, que invocam os fluidos, temperamentos, as malícias, as espertezas dos caboclos. A leseira não é apenas um modo macunaímico de ser, está presente na língua afiada dos abelhudos, pissiqueiros, tagarelas. Tudo cabe na sintaxe metafórica dos ditos populares: o humor afiado estampa a ambivalência do riso, presente nas relações brejeiras dos ribeirinhos.

 

Vai a canoa à deriva

florindo-se em doce brisa

devaneios na peneira...

Eita, mormaço leseira!

  

Amizade de invejoso

e ferrada de mutuca!

Eu num quero é nem com nojo:

Sorve a alma e o sangue suga!


Considero o Rio III um dos mais instigantes. No meio das leseiras, uma trova entrava o riso: é o curumim que sobe a ladeira com o bucho pinhado de lombriga. O descaso com a saúde dos povos originários e seus descendentes mostra que o projeto de extinção desses povos segue seu curso, jamais interrompido. A morte lenta, gradual por doenças, fome, matanças.  

Outro aspecto que o torna marcante, talvez nuclear entre os rios, é a deliciosa, sensual e brincante reflexão autoconsciente que Cortezão faz sobre o ritmo da trova, como o mais adequado para musicalizar as amazonidades, gestantes das águas. Reafirma uma poesia que ultrapassa a cor local e se coloca em plena segurança sobre o jogo de enunciações que rementem à comunicação metapoética.

Caniçar verso é custoso:

se o verbo-isca do arrebol

não flertar vivo, viçoso,

os versos fogem do anzol.

 

Pesquei um  verso porrudo,

desses de esticar caniço,

separei-o em pés miúdos

só pra fornicar com isso! 

 

Fornicando com o verso,

descobri pelo cansaço

da vulva, que o ritmo ereto

não desabrocha cabaço.

 

Rio IV – DAS CABOQUICES. Em ritmo que beira o melancólico, as trovas insinuam a dança da despedida, a saudade antecipada das relações profundas como o chão inalcançável dos rios. O lugar do eu lírico é o entre: não partiu ainda, mas já não está mais aqui, onde sua identidade compunha as alteridades complementares. A cabocla vai partir e pressente a falta do todo sistêmico do qual era parte viva e pulsante. A poesia é o lugar do resgate, da memória e das reminiscências do vivido, por isso a trova se faz mais vigorosa, estende sua quadra e forma o novo chão a caminhar.

 

Das barrancas do meu Norte,

trago todas as bonanças.

Quando o peito aperta forte,

abro o pote das lembranças.        

 

Tomar o melhor atalho

é poupar braços e forças

para as difíceis remadas.

De mãos dadas, quilha e proa.

 

Construí canoa alada

que não tem quilha nem popa.

Mas para que águas passadas,

se o destino vai à proa?   

 

Ela costurou palavras,

remendos e poesia;

caiu na rede dos sonhos,

no embalo da nostalgia.

 

As caboquices estão misturadas nas lembranças, formando um sentimento ambivalente onde as alegrias da vida, gestadas nas águas, são assaltadas pelo sentimento de perda, distanciamento, despertencimento. O ritmo das trovas faz a cabocla chorar, sentimento de exílio. As águas doces dos rios estão temperadas com o sal da saudade. Os temas mais ligados a “Peneirar horas escuras” impedem que As amazonidades tropecem na visão ufanista, radiosa da cor local, alheia às adversidades, às sombras, às dores que também movem os cursos dos rios.      

 

RIO V – DOS ENCANTADOS. Para expulsar a melancolia, tomemos o curso do Rio V, parte constituinte da cultura da região norte, os ricos e dialógicos personagens lendários não poderiam ficar de fora das gestas das amazonidades. Dialógicos porque se encontram com os mitos e figuras lendárias de outras culturas, inclusive, a clássica. Os mitos e lendas perpassam todas as culturas humanas, por isso são universais, são lendas, histórias fundantes da origem dos tempos, da vida cíclica da natureza e dos homens, da qual fazem parte. As trovas que encerram as gestas dos rios ratificam a relação sistêmica dos encantados com a natureza. Representam os elementos fundamentais e estão em relação simbiótica com o fogo, o ar, a terra e a água.               

                   

Iara, se ouvisse Orfeu

doce e ledo canto teu,

a lira te brindaria;

de ti vassalo seria.

 

Oh, Pandora Macuxi,

por que abriste tal cumbuca?

Agora o meu quiriri

carrega o peso do mundo.

 

As relações entre mitos e personagens lendários da região norte não são absolutamente castas, são versos revestidos de carnalidade sensual, erótica. Há uma declarada antropofagia das figuras do folclore brasileiro em carnavalizada devoração dos mitos clássicos e modernos.

 

Olhos de fogo rasgando

carnosa pele do verso;

boitatá me devorando

entranhas e estro (po)ético.

 

Japu, gatuno do fogo!

Ave, Prometeu Tapuio

fez-se pássaro e seu logro

grande façanha do mundo!     

 

Um sexo seco e mirrado

devorou Macunaíma,

fruto mulher excitado

cuspiu o herói rindo, rindo...

 

Fechando a gestas das águas, resta-nos afirmar aqui um último princípio do pensamento complexo de Morin: a poesia opera a reintrodução do sujeito cognoscente. Ao poetizar o seu chão de águas da infância, da adolescência e da vida adulta, a poeta é resgatada no processo de conhecimento como autora de sua história e, consequentemente, como coautora de construções coletivas junto aos ribeirinhos de sua terra. Reafirma-se: o sujeito e o meio onde ele está inserido tornam-se codependentes, ressaltando que este meio não é entendido como algo predeterminado, mas sempre uma construção em dialógica interação com o sujeito. O caminhar sobre As amazonidades só acontece quando existe a interação entre os passos deslizantes da poeta e as gestas das águas. Privilegiados somos nós, seus leitores, que bebemos nos igarapés, nos braços e fontes dos rios que não cessam de nos maravilhar, ensinar sobre o potencial criativo de suas águas.

 

 

Bibliografia

GRZYBOWSKI, Carlos Tadeu. Por uma teoria integradora para a compreensão da realidade. In.: Revista Psicologia em Estudo. Maringá, v. 15, n. 2, p. 373-379, abr./jun. 2010.

LUHMANN, N. Soziale systeme, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1987.

MATURANA, H. & Varela, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.

MORIN, E. Epistemologia da complexidade. In.: D. E. Schnitman (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artmed, 1996.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Trad. E. Lisboa. Porto Alegre: Meridional/Sulina, 2006.

MORIN, E. Complexidade e a ética da solidariedade. Trad. E. Lisboa. In.:  Ensaios de Complexidade.  Porto Alegre: Meridional Sulina, 2006

 


domingo, 20 de março de 2022

POESIA NA REDE: A GUERRA E AS MULHERES, POR FLAVIA FERRARI




POESIA NA REDE|05


A GUERRA E AS MULHERES

                                                                                                 Por Flavia Ferrari


Neste mês, no dia 8 de março, as redes ficaram divididas entre celebrar o “dia das mulheres” e questionar a tal data, dado que a condição da mulher no Brasil e mundo afora não encontra motivo para comemoração. 

As falas repugnantes de um tal deputado a respeito das mulheres em condição de guerra provocaram uma reação de repúdio por parte de todos aqueles que têm alguma sensibilidade. Provavelmente (e lamentavelmente) ele seguirá com o seu mandato, pois o machismo estrutural tem a consistência maciça de chumbo em algumas estruturas, como na política por exemplo. 

Eu me deparei nas redes com o compartilhamento de um poema da polonesa Wislawa Szymborska que, para mim, é um poema que conta a história de mulheres, mães, crianças, famílias, de um país inteiro.

As guerras são muitas e estão sempre em andamento, mesmo que não tenhamos notícias de várias delas no jornal da tarde.

Este século talvez não testemunhe o fim das guerras e das desigualdades. O poema de Szymborska poderia ser reescrito todos os dias, em diferentes locais. O desamparo escancarado pelo poema é um estado de alma cuja dor é aguda e insuportavelmente durável.

Vietnã - Wislawa Szymborska

Mulher, como você se chama? - Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde quando está está aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que lado você está? - Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses são teus filhos? - São.

*_*    *_*   *_*    *_*


Referência: Szymborska, Wislawa. Poemas; seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.




sábado, 19 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|06


CLAUDINE, CLAUDETTE, COLETTE: DA CRIAÇÃO À CRIADORA


Por Carollina Costa


Nesse mês de março celebramos o Dia Internacional das Mulheres no dia 8 e esse marco da nossa constante busca por voz e direitos não poderia ser esquecido por aqui. Para celebrar a data e tudo que ela simboliza, trago aqui uma breve resenha do filme Colette, baseado na vida da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette.

Nascida no interior da França no século 19, Colette foi uma romancista casada com o editor Henry Willy que fez dela uma das escritoras fantasmas que ele possuía em sua editora. Colette sempre foi criativa e a frente do seu tempo, e foi baseada em suas memórias de adolescência que criou as histórias da série Claudine (1900), obras que por muito tempo Willy assinou como se fossem apenas dele, a ponto de vender os direitos para uma editora sem consultar Colette sobre o assunto. No fim, Colette consegue resgatar os direitos de suas obras e passa a escrever com seu próprio nome, continuando sua carreira de escritora, agora também atriz de teatro encenando, inclusive, livros seus que viraram peças teatrais.

Embora fosse mais liberal do que muitos maridos de sua época, Willy usou sua vaidade como forma de ter controle sobre a esposa. No filme, há cenas em que Willy tranca Colette em casa ou no quarto e só a deixa sair após ela escrever determinada quantidade de páginas de alguma história que ele aprove. Ele tinha seu time de homens escritores fantasmas, mas nenhum deles lhe deu tanta fama e sucesso quanto as histórias escritas por Colette, uma mulher e sua esposa.
Através de Willy, Colette foi apresentada ao meio dos artistas e literatos e, aos poucos, aprendeu a tirar proveito dessa influência para si mesma. Conheceu mais mulheres também artistas, envolvendo-se romanticamente com algumas e criando laços de amizade e cumplicidade com outras. Por fim, largou o marido enfurecido e foi seguir seu próprio caminho nos palcos e nas letras, sendo reconhecida e aclamada ainda em vida.

Ao menos hoje em dia podemos escrever usando nossos próprios nomes sem grandes problemas. Não precisamos mais que um homem de um pequeno círculo de intelectuais nos autorize a escrever ou publicar. Embora ainda tenhamos muito o que conquistar, é gratificante enxergar o progresso que já fizemos.

Em diálogo com o filme, fiz esse curto poema intitulado Claudette que fala sobre a liberdade da mulher na arte e sua conquista sobre si mesma.


Claudette

Tal qual menina perdida
Você me encontrou atraída
Por tua pose
Terno e fita
Do filme que encenava
Sempre que me via

Casei tendo liberdade
Para fazer tuas vontades
Fingindo que eram minhas

Para que subisses
Eu descia
Para que brilhasses
Eu desaparecia
Como singelo apetrecho
Acompanhava o desfecho
Das histórias que querias

De terno e gravata
A verdade veio me visitar
Dizendo que era hora
Ou Claudine
Ou Colette
Guiaria o resto de minha história

Claudine est mort

Refeita
Vagando
La Vagabonde de Paris est libre
Livre para os palcos
Pelas letras
Livre de ti







sábado, 5 de março de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|05


PACARRETE: ARTE E SENSIBILIDADE


Por Carollina Costa



Vez ou outra me pego pensando na velhice. Sei que é um assunto que muita gente evita em qualquer idade, mas quando vejo tanta gente fugir de alguma coisa, fico querendo saber o porquê.

Há algum tempo assisti ao filme brasileiro Pacarrete, baseado na vida da pianista e bailarina clássica cearense Maria Araújo Lima (1912-2004). O filme mostra a vida da artista já como professora de dança aposentada que tinha o sonho de voltar aos palcos, porém a idade impunha seus limites físicos e sociais, visto que além de seu corpo não se sustentar mais na ponta dos pés como outrora, os habitantes da pequena cidade onde morava limitavam ou excluíam a participação de Pacarrete dos eventos de dança.  Misturando comédia e drama de forma bela e sensível, o filme narra a incessante trajetória da protagonista em busca de manter viva sua arte, não importa as limitações em seu caminho.

Esse filme me fez pensar sobre o quão comum é deixarmos uma paixão sumir no tempo, normalizando quando as reviravoltas da vida nos afastam de nossos sonhos ou de uma realidade que amamos. Pacarrete insiste em não deixar seu amor pela dança morrer, nem que isso signifique dançar sozinha em casa ou na rua, sendo incompreendida por aqueles que não "ouvem a mesma música" que ela.

A dor, sensibilidade e esperança apresentadas no filme Pacarrete me inspiraram o poema autoral a seguir, que apesar de estar bem ligado à narrativa do filme, pode ser interpretado pela leitora da melhor forma que lhe couber.


Velhice

Bailarina na meninice
Aplausos sempre gostei de ter
Mas depois de um certo tempo
A saudade do não vivido
Prevaleceu como um machucado exaurido
Ao som de Tina Turner
Despertei para o corpo de minha irmã falecido
Me lembrando da morte que rondava meu abrigo
À sombra de tudo que eu não poderia viver
Eu morri
Eu morri e esqueci de me avisar
Fui pra rede me encasular
Até a Maria ir me tirar pra dançar
E eu dancei
Dancei
Depois de tanto relutar
Fazendo do meu palco a calçada
Dançando como um cisne numa noite enluarada
No palco central
Mesmo que sem plateia
Me realizo ao final




Feminário Conexões, o blog que conecta você!

EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

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