quinta-feira, 25 de maio de 2023

A PELE DA PITANGA DE JÉSSICA IANCOSKI, POR ROZANA GASTALDI COMINAL


POVO GUERREIRO, SEU CANTO OUVI!

 POR ROZANA GASTALDI COMINAL

Foi a capa de A pele da pitanga que me fisgou! A textura das mãos me fez da lembrar da casca amarronzada da pitangueira, por vezes pode ser acinzentada como a do quintal de casa,  em contraste com as pitangas suculentas, saborosas à mostra sob o fundo verde com o pseudônimo Eugênia Uniflora estampado numa pontas, e, na outra, o poema curto “Uniflora”: é urgente/ sermos menos eu/ e mais eugênias.

Quando comecei a ler o livro, impossível não contextualizá-lo dentro do Acampamento Terra Livre – ATL, em Brasília, no abril indígena. São 18 anos realizando encontros com indígenas de todo o território brasileiro, experiências compartilhadas, manifestações e quebra de tabus que impulsionam candidaturas indígenas. Mulheres indígenas, mulheres biomas, mulheres ancestrais vão aldear a política, assim como alguns poucos indígenas já ocupam cargos políticos de destaque no cenário municipal, estadual e federal. 

A mente é uma via expressa em alta velocidade, por ela percorrem palavras, pensamentos, pisadas, podas, pulsos como se fosse um body jump linguístico. Essa é a reação que vou sentido a virar cada página do livro. E me vejo dentro dele, como se fosse parte do processo, pois eu gostaria de ter escrito A pele da pitanga, de Jéssica Iancoski.  Tanto a temática é relevante e necessária – as questões indígenas – quanto forma e conteúdo nas construções que usa para estruturar seus poemas, metalinguagem que fascina. Também o prefácio-nocaute de  Kaê Guajajara, de imediato,  aponta breves iscas para provar do que estou falando. Estão nos poemas  as questões dos pensamentos tutelares dos povos indígenas, apagamento histórico,  as questões de demarcação de terras e sua incorporação para a agricultura e também ocupação de espaços urbanos pelos indígenas.  Incluindo o papel da arte em tempos  de luta, como vetor de resistência para a cultura e ancestralidade. Como é vista a presença indígena na arte brasileira – imaginário e identidade. 

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No princípio foi o ADVÉRBIO, acessório que pode ser usado ou não. No entanto quando “a palavra é tinta genocida/ e desmancha facilmente o advérbio/ pororocas levantando sangue de verbo/ jorrando brasis sem modo/ com intensidade, lugar e tempo/ e demasiada negação desmatada/Macunaíma desvairada” (p.11), o ornamento fica impregnado no verso, não há como tirar a palavra “avermelhada/ talvez carnívora e pouco reflorestada” diante do curral desgarrado do desgoverno: “ao pé de mesas de paubrasília”. Torna-se parte integração da oração.

Em MÃE GENTIL “a palavra que ecoa/ e lavra a palavra/ sem decência/ da violência nacional// descendentes/ do/ estrupo — raiz da/ democracia racial (p.25). Questiona em A PÁ E A LAVRA: “e a palavra o que é?// :a abalança da justiça/ sempre pesa em vintém// sopé do monte pascal/ maré trouxe cabral/ pontapé da imposta fé/ legado do capital-café” (p. 96). BANCADA BOI BALA BÍBLIA vigora em pleno século 21: “bancada ruralista/ evangélica armamentista// num só bloco//. bando ameaça/ minorias do brasil// (p.43).

Dos poemas visuais, o primeiro  o encantamento se eleva pela variedade de árvores diversas em NOTA, mas  sabendo o resultado quando da floresta derrubada, porque  valem mais: cifrão solo lenha tora// grão/ gado papel e nota (p.52). Denúncias que não passam imunes pelo registro da foto de madeiras cortadas: DESMATAMENTO ILEGAL (p.38-39) e pelo grafite que contesta: MORTE AO AGRO na parede  com desenho de dedo “fuck you” (p. 50-51. Vale acrescentar na batalha deste conjunto o AGRO É POP que contém forte apelo contra  a indústria do agronegócio, até simula uma imagem do patrão matador com arma não ao som de pop, pop, pop. São as “cenas de apologias feudais/ herança  colonial/ dos sacanas  (p.53). O segundo momento  de mira certeira é com ARCO E FLECHA. Embora agora o alvo seja a selva de pedra, pois mora na favela, indígena é a aldeia/ na veia/, continua guerreiro de sua etnia (p.89).

Outras construções envolvem mobilidade, se assemelham à prática do parkour, a desbravar percursos, fazer saltos pelas etnias em versos. IBIAPINA  é combinação de yby: terra + apin: rapado, pelado, que significa terra pelada em tupi. Antiga terra da nação tabajara no CE. Ali há mais que palmeira: “macaba/ emburi/nidaiá” e  sabiá: “guirá/jacu macuco/maritaca/tangará”  (p.16), referência explícita à “Canção do Exílio” de Goncalves Dias, escritor do Romantismo brasileiro. Na fase nacionalista de GD, fauna e flora brasileiras são exaltadas, o jovem se encontra em exílio voluntário estudando em Coimbra. Os AUTÓCTONES estão aí: “o brasil não é o rio/ de janeiro a dezembro/ já dizima os nativos/ Kara’ivwa Oka/ cari.oca/ casa de branco” (p.17).

MAMA NA TETA DA MATA é daqueles trava-línguas imperdíveis: quem “desmata/mata não só a mata// matam a mata/ matam à bala//a boca branca bebe e/ mama na teta da mata// mata  e mama// mamam e mata/ é mamata”. Já conhecem esse refrão, não é? (p.40). Com a força da palavra falada, portanto, é batalha de slam com ritmo, entoação, modulação da voz, uma verdadeira performance com a voz, o canto, a música, o máximo da interação com linguagens múltiplas para a diversidade. Destaca as 12 principais línguas nacionais que ficaram neutralizadas pelA LÍNGUA BRASILEIRA, assim a  “política pombalina permitiu/ maior domínio sobre brasileiros// (p.57). Realmente resistência e controle ultrapassando os obstáculos.

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Resistência  como verdadeira aula de AULA DE HISTÓRIA com a voz  daqueles que sobraram para contar como  foi a invasão durante o período colonial, pois muitas tribos foram para sempre dizimadas. Ao longo dos séculos “a perda dos valores e das identidades” nos aniquilam (p.56). Não há como ficar indiferente diante  disso, manifestação em qualquer linguagem como prova da lição aprendida é o mínimo que nos resta como leitores ávidos dessa jovem escritora.

Dá para ver o quanto a intertextualidade é um dos exercícios mais criativos para a composição poética. Ao trazer a referência do ponto inicial, há que se dar conta de uma análise vasta de várias transições e surgem tantas analogias! No Romantismo brasileiro, na fase indianista idealizada, temos de um lado José de Alencar que eternizou IRACEMA como a virgem dos lábios de mel, consagrada a Tupã. A índia, filha do pajé Araquém da nação Tabajara, foi  transformada  no anagrama mais poderoso: AMÉRICA, atualmente sua extensão se agiganta. Em NINGUÉM É IRACEMA,  a imagem da indígena romantizada cai por terra: “ ninguém é Iracema/ passiva, submissa/ erotizada// a visão colonialista/ atrasa a autonomia// identidade não é acessório// (p.55). Mulheres indígenas têm suas vivências, constroem narrativas, têm necessidade de criar.

Das escritoras indígenas sobressai Eliane Potiguara com seu livro Metade cara, metade máscara, porque ela valoriza a comunidade indígena a partir de “projeto consciente de vida pessoal e também coletivo de manter vivas as tradições ancestrais, a cosmologia e a herança espiritual, aliadas ao engajamento político,  afirma Dorrico (2018). Bate no peito um senso de justiça ao ver o protagonismo de Eliane Potiguara, valorizando a representação da mulher indígena que aceita beleza e força no corpo feminino. Em seu poema BRASIL, o eterno questionamento: “Que faço com minha cara de índia?// Não sou violência/ ou estupro// Eu sou história/ Eu sou cunhã/ Barriga brasileira/ Ventre sagrado/ Povo brasileiro.// Ventre que gerou/ O povo brasileiro/ Hoje está só.../ A barriga da mãe fecunda/ e os cânticos que outrora cantavam/ Hoje são gritos de guerra/ Contra o massacre imundo”. Brota no peito um amor assim desmedido para as futuras gerações do Brasil. Aprendizado constante com a ancestralidade que envolve sentimento, memória, história, respeito pela diversidade cultural.

De outro lado, ressalto o quanto Gonçalves Dias foi primoroso na construção de “I-Juca Pirama” (que em tupi significa “o que há de ser morto”), poema longo que narra a história de um guerreiro tupi que conduz o pai cego pela floresta. Quando este lhe pede comida e bebida, o filho, à procura de alimentos, cai prisioneiro dos timbiras. Os guerreiros timbiras, num ritual antropofágico, devoravam os inimigos, desde que ele não manifestasse covardia. Dramática saga vivida pelo último descendente da tribo Tupi, no momento de sua morte:“Sou bravo, sou forte,/ Sou filho do Norte;/ Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. Embora não fosse porta-voz da cultura indígena, GD deixou vasta contribuição, dedicou ao estudo da etnografia e da linguística, além de passar um tempo na Amazônia, período em que fundamentou as obras Brasil e Oceania (1852) e Dicionário da língua tupi (1858). Especula-se que tinha origens indígenas, pois que era filho bastardo. Povo guerreiro da tribo Tupi, seu canto ouvi! ecoa até hoje em mim, em seus descendentes, e, irmanados, com eles, queremos outros 500 para contar outra versão da história. Apesar dos pesares, ainda resistem e querem existir como parte integrante do Brasil. Prevalece, portanto, o canto da vida!

Canto esse que parece se esvair quando se contrapõe aos INDÍGENAS URBANOS, que “ buscando/ raízes longe da natureza/   procurando sobreviver// pesa o pescoço// sobre o cálcio dos ossos/petrificados// municípios e edifícios/inteiros levantados/ sobre tanto tanto tanto/sangue derramado// (p.76). A ilustração que antecipa o poema exibe a novas moradias amontoadas. com “a liberdade perdida de nadar em águas cristalinas”, agora resta  vencer a força que horizonta ( p.74-75). Outro alerta nas placas de cimento de possíveis favelas: É INDÍGENA PORRA! Deslocados, os indígenas estão em todas as partes (p.80-81), prestem atenção! TUDO AQUI É TERRA INDÍGENA na parede lascada com placa branca de ALUGA-SE AMÉRICA LATINA, total descaso da “:pindé/rica”, é pilhéria, pois, antes, Pindorama soava grandiosa (p. 30-32).

Esse tipo de apagamento histórico é acentuado pela melopeia  apresentada em  O ÍNDIO DO GRINGO: “é um restingo, um restingo// um lingo-lingo, um lingo-lingo//  um pingo, um pingo/,  como se fosse “um xingo, um xingo” a um ameríndio, um ameríndio”, o que reforça a visão estereotipada que se tem do indígena em todo o continente americano por “um Ilídio, um Ilídio”,  (p. 79). Enquanto isso, em terra sem lei, corre solto o  eco  na “ terra de rei”: “ei ei ei ei ei” que se estende em  GAVETAS DE MADEIRA DE LEI: “ei ei ei ei”,  “florestas são engavetadas/pessoas são engavetadas// Ipê Tatajuba/ Cumaru Teca Jacarandá Cedro Jatobá//  com a gana de quem? “ei ralé / fazendo uma/ grana branca// (p.94).  Percebe-se, ainda, o quanto  aliterações permitem que o jogo de palavras para desqualificar o colonizador. Afinal, os  homens de bem, políticos na bancada para maracutaias, fazem “estropício estropiado” (p.11), “são bando de criminosos/ conservadores/ covardes”, aqueles da BANCADA BOI BALA BÍBLIA (p.43). Eis a “caucásia clara cândida” jogada na cara do povo servil (p.95).

Poderia ser incoerência o uso da palavra índio em sua raiz, qual delas? a tupi? a guarani? Com essas povoações mais pacíficas José de Anchieta fez a catequização e a sistematização do nheengatu, língua geral amazônica em tupi moderno. Dos séculos 16 ao 19, foi a língua mais usada no Brasil tanto pelos indígenas quanto pelos portugueses, afinal era o idioma corrente, a língua boa. Até o século 19 a língua nheengatu foi falada  no litoral do Brasil, ainda hoje é falada nas tribos da Amazônia. Isso indica o quanto a língua é viva, dinâmica. Percebo que há  sarcasmo expresso em RADICAL quando Jéssica Iancoski usa: “:tudo é índio- “// ídios- não há”// indioleto indioma// indílios/indiovidual/ indiolatria indiotipo// e na corruptela NE’ENG: “é tudo é do índio”//“-ídio -ídio -ídio”/ é idiotice. Um contra-ataque ao nhenhenhém  verborrágico dos idiotas, ao comportamento idiossincrático de quem cria estereótipos de grupos sociais (p.28-29).

Por fim, LÁPIDE é o êxtase para mim: “pedra/poema/lápide” (p.68). Epitáfio sem memórias, quem quer isso?  Todos desejamos a HERANÇA mesmo que “errança” “de legados/ levantados”  “pela/ língua/ calada// ou afiada (p.97). Tanto que já fiz a minha singela pedra tumular, logo posso morrer em paz. O poema de minha autoria “Memórias ancestrais”  que integra a coletânea I Tomo das Bruxas – do Ventre à Vida,  nasceu após a leitura do livro de JI. Quando algo mexe muito comigo, naturalmente, me expresso na linguagem poética. Isso foi no primeiro semestre de 2022, tempo em também concluí a resenha. Imagine depois como me senti ao ver  A pele da pitanga entre os 10 finalistas do prêmio Jabuti  na categoria Poesia?

Tenho cá para mim que A pele da pitanga será um daqueles tratados de vanguarda, bem pertinente  tal qual a proposta de Jéssica Iancoski em “100 anos depois: O que é a poesia?” que lança aos autores contemporâneos  temas com viés provocativos em  relação à Semana de Arte Moderna de 1922. Com base sólida em ascensão: podcast, revista e editora Toma Aí Um Poema avança sob a regência de Jessica Iancoski que tem esse caráter em sua produção poética assim como a diversidade e a experimentação estão em seu dna. O público, às vezes, aceita mais rápido as mudanças em estilos literários do que a própria crítica que ainda se apega aos parâmetros de preciosismos da linguagem. Claro que metáforas, comparações, metonímias, ironias, paralelismos são sempre bem-vindos, assim como rimas ricas, raras. Rimas pobres são clichês necessários atualmente, refletem o empobrecimento da linguagem não da autora, é óbvio, mas em relação a  tudo que está sendo apregoado como modelo de educação pelo desgoverno, um desfavor  ao ensino público de qualidade e à valorização do professor enquanto pessoa e profi$$ional bem remunerado. Sonho nosso sei bem disso. Entretanto é nisso que acredito: no ciclo da terra com seres humanos que cuidam da natureza porque, antes, cuidam, daqueles que dedicam a plantar, colher e ser: MILHO NA TERRA CRESCE CRESCE: “cereal, ceres/ seres/ vida” da mesma forma que pitanga: “o fruto nutre/ quando pinga e/ a vida sangra/ o grito vermelho/ y’piranga”. Demarcação já das terras não das lápides! Esse é o novo brado retumbante às margens de qualquer rio com água potável, em abundância, que, livremente, escorre pela nossa pele, nossa terra. 

Para a próxima edição, ficam algumas sugestões:

1.  Um descuido, talvez, na página 18 pelo elo de ligação pode dar a impressão de que falta revisão ao poemas. Parece que foi intencional por parte de Jéssica Iancoski, para  sentir juntos aos leitores e aos críticos a reação deles. Como se os erros e a desatenção fosse para com nossa atitude em se tratando das questões cruciais  da população indígena brasileira, principalmente. Legado histórico negado aos povos primitivos desta terra que em tudo se plantando dá.  Tudo é muito novo quando se trata de apropriação com respeito pelo outro, por isso rever conceitos e adequações gramaticais podem nos dar outra perspectiva e ampliar nossa escrita. 

2. Na pontuação, tiraria mais vírgulas, visual mais limpo, espaço entre as palavras são suficientes para indicar que é outra palavra, como se estivessem aprendendo um nova língua. Outros sinais gráficos incomodam? A mim não, é brincar, é desenhar, às vezes causa impacto, às vezes não. Nem tudo vai funcionar 100%, então melhor não arriscar? Arrisque e aguente o tranco!

3. O poema MODA EM P&B poderia ser dividido em 2 partes: “o pulmão brasileiro do mundo/ está sendo comprometido/ tal qual vírus maligno (...)// todos os pareceres padecem/ enquanto a flâmula/ arvorada no mastro principal/ se empalidece em cada alvorada// - parte que retrata o desmatamento em exponencial. Já a última estrofe da página 92 viria para o início da página 93 com o mesmo formato, fazendo par com a estrofe final, sendo  flâmulas desbotadas. Ou  deixar para quem ler inventar outras possiblidades.

4. Após meus apontamentos, para me certificar de que estava caminhando num exercício para reantropofagizar, ver de novo o que não foi visto, fui ler o livro Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção, organizado por Julie Dorrico e outros, disponível em https://www.editorafi.org/438indigena. Satisfação garantida comigo mesma e com a leitura proporcionada pelos poemas de Jéssica Iancoski. Porque a luta é diária, não há trégua enquanto houver genocídio, garimpo ilegal e desmatamento de florestas em terras dos povos originários. Nesse caso, literatura é denúncia, é ato político de intervenção, visto que a poesia traz técnica e experiência estética, experimentar-se para registrar seu lugar no mundo.

Rozana Gastaldi Cominal

Poeta e professora

Hortolândia-SP

junho de 2022

Bibliografia

DORRICO, Julie. et al (Org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. Disponível em: https://www.editorafi.org/438indigena. Acesso em: 19 junho 2022.

GONÇALVES, Dias. I Juca Pirama. Disponível em

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/jucapirama.pdf. Acesso em 19 junho 2022.

IANCOSKI, Jéssica. A pele da pitanga. Toma Aí um Poema, 2021. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1Fz7yl_c28jVq7Hi-DWSKoXEWRMMGPPtJ/view

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro, 3ª ed. Grumin, 2018.

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Rozana Gastaldi Cominal, de Hortolândia/SP. Poeta e professora. Formada em Letras, faz revisão de textos. Acredita na força dos coletivos e com eles faz voz com a poesia na ordem do dia. Publicação de poemas em redes sociais, revistas literárias digitais, e-books e livros impressos. Livro solo Mulheres que voam (2022, Editora Scenarium).


domingo, 21 de maio de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A MAIOR AVENTURA TERRESTRE - Por Rita Alencar Clark


LIÇÕES DE SILÊNCIO
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A MAIOR AVENTURA TERRESTRE 

A primeira vez que fui mãe, um misto de alegria suprema, medo, insegurança e pânico tomou conta de mim. Apesar da incontrolável vontade de ter um filho, por duas vezes, esse sonho escapou-me às mãos…mas na terceira vez, eu me agarrei a esse sonho como quem agarra o invisível fio de prata que nos liga à própria vida. Não soltei. Aconteceu de ser envolvida por magia e beleza, meu corpo se abriu e germinou, a alquimia materna refez minhas células e a primeira filha nasceu! Victoria, um ser diminuto de olhos intensos num rosto de anjo…tive medo! Depressão pós-parto. As rezadeiras foram chamadas… "como posso ter medo de um sonho tão sonhado?!" O leite empedrou, o desespero bateu, nem rezas, nem médicos, nem emplastos reduziam a dor. Uma noite nos enfrentamos, o peito lanhado, rachado, sendo sugado com a força da fome e do amor. Lágrimas minhas se misturavam à láctea seiva vital, lágrimas de ambas se misturaram ao som do lamento murmurado, disfarçado de canção. Assim nos encontramos, minha filha, assim nos misturamos, para sempre. 

Da segunda vez que fui mãe, já quase entrando nos quarenta, já nem sonhava tanto, porém o desejo se mantinha latente, veio Miguel, meu príncipe celeste, descido do Éden pra me encontrar nesse mundo confuso. Dessa vez já não tinha tanto medo… não, minto, tinha sim, mas com experiência. A mágica se fez novamente, e inflei como um balão colorido e feliz, era festa na minha alma. Ele chegou, tão bonito, tão plácido...como minha mãe bem definiu: "olha filha, ele é todo afiladinho"…traços finos, braços, pernas compridas e fome de um pequeno leão. Não lhe faltou alimento, meu leite jorrava como cachoeiras amazônicas! Um dia, após extremo cansaço, dormi enquanto o amamentava, acordei com a chegada da babá em pânico: "Meu Deus, o pobrezinho está empanzinado!" Tratando, então, de fazer movimentos pélvicos e pequenas pedaladas com as perninhas…eu em estado de exaustão plena, só atendia a comandos: água morna, toalhas, compressas…só sonhava com uma noite inteira de sono. Mas foi lindo! Vê-lo dormindo em paz, satisfeito e limpinho era tudo o que uma mãe como eu desejava pra ser feliz! 

At last but not least…a terceira vez, quarentona inaugurante, veio Duda, a flor de setembro, sacudindo todas as certezas, raiando como um sol na minha vida. O médico, que operou minha coluna (L5 e L6) dois meses antes de engravidar, deu-me um sermão de irresponsabilidade, uma vez que rompi com o trato feito de não engravidar, pelo menos, nos próximos 12 meses. Ouvi, calada e resignada, o veredito, só vai poder engordar nove quilos! Vai fazer exercícios todos os dias, inclusive aos domingos, hidroginástica, não pode pegar peso, nem movimentos bruscos. Miguel queria colo, chorávamos os dois pela impossibilidade. Afinal, ele ainda tinha 1 ano quando fiquei grávida da Maria Eduarda…"mamã tila esse boão de você!" O "boão" era a minha barriga. Ele queria colo. Fomos em frente! Aos cinco meses consegui engordar apenas 2 quilos e meio. Cheguei ao final cravando os nove. Resultado, Duda nasceu com uma fome de loba, coitadinha! Eu, já na prorrogação do tempo regulamentar, estafada e desnutrida, pra não sobrecarregar a coluna, cumpri o prometido. 

Na primeira semana, o leite não dava conta da fome da minha filha…eu me senti incompetente, ansiosa, preocupada e não dormia. Veio a salvação, o pediatra receitou o complemento, Nan, bendito seja! Pude dormir 12 horas seguidas, finalmente. Tudo isso passou tão rápido, foi tudo tão intenso e breve, que hoje, prestes a completar 60 voltas ao redor do Sol, com todos seguindo suas vidas e saudáveis, penso que faria tudo exatamente igual novamente, assim, bem clichê! Então, que fique registrado: Maternidade é a minha maior e mais bela aventura terrestre.
Está feito!

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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista,
cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

sexta-feira, 19 de maio de 2023

UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES: ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO, POR GABRIELA LAGES VELOSO

    


UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |06

ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO

Por Gabriela Lages Veloso

Conforme a ativista Malala Yousafzai, "quando o mundo todo está silencioso, até uma voz se torna poderosa”. Diante disso, a literatura é uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber Ana Elisa Ribeiro, uma importante escritora para a literatura brasileira atual, ganhadora do Prêmio Jabuti (2022).

ENTREVISTA COM ANA ELISA RIBEIRO:

Arquivo pessoal da autora

Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. É bacharel e licenciada em Letras pela UFMG, com mestrado e doutorado em Estudos Linguísticos. É professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, o CEFET-MG, onde atua na formação no nível médio, em Letras e nos estudos de Edição há vários anos. É autora de livros de poesia, conto, crônica, infantis, juvenis e técnicos. Em 2022, celebrou os 25 anos de suas publicações em livros. Começou em 1997 com a coletânea de poemas Poesinha, publicada em uma coleção, isto é, os coletivos editores e publicadores sempre fizeram parte de sua vida. Em seguida, publicou Perversa, em 2002, pela editora Ciência do Acidente, uma das primeiras “independentes” brasileiras, em São Paulo. Daí em diante não parou mais. Foram nove livros de poesia, três de crônicas, um de contos breves, três infantis e três juvenis. Em alguns casos, as obras foram premiadas, como o poemário Álbum, de 2018, pela editora mineira Relicário, que antes obteve o prêmio nacional Manaus; o Dicionário de Imprecisões, de 2019, pela Impressões de Minas, finalista do Prêmio Jabuti em 2020. O infantil Pulga atrás da orelha foi duas vezes distribuído pelo Clube Leiturinha, além de estar em kits de prefeituras e no PNLD. Seu juvenil Romieta e Julieu (RHJ, 2021) ganhou o Prêmio Jabuti de 2022. A autora tem textos publicados em outras línguas, em revistas e coletâneas internacionais, impressas e eletrônicas. As publicações mais recentes são séries de poemas nas revistas Toró e Desvario. A produção infantojuvenil de Ana Elisa Ribeiro segue no PNLD e é reconhecida pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Enquanto isso, ela também é editora, dirigindo coleções de poesia e prosa. Na editora paulistana Peirópolis, por exemplo, ela ajuda a pôr de pé a Biblioteca Madrinha Lua, só com mulheres brasileiras contemporâneas. No selo Autêntica Contemporânea, ajuda a compor um catálogo de romances nacionais e traduzidos, de autoras e autores de várias partes do mundo. Seu título mais recente é o poemário Menos ainda, pela Impressões de Minas, lançado no final de 2022. Em 2023, sairão alguns livros para públicos diversos. Ana Elisa coordena, com duas colegas, o grupo de estudos Mulheres na Edição e é membro do GT A Mulher na Literatura, da ANPOLL. 

Como você começou a escrever?

Comecei nas últimas folhas dos cadernos da escola. É nelas que me lembro de ensaiar uns poemas, umas rimas ruins, escrever recados para jamais serem lidos, desabafar, imitar autores admirados, copiar trechos de textos que eu admirava, escrever pequenas narrativas, depois arrancar, rasgar, jogar fora. Sentir uma vergonha, mas também um impulso de escrever mais. Não mostrava a ninguém, mas pode ser que, acidentalmente, na virada do ano letivo, alguém tenha lido alguma coisa desses cadernos velhos. Depois passei a escrever em folhas soltas, numa máquina de datilografar que peguei emprestada do meu pai. Aí já era uma vontade de ver os textos impressos, mudou a chave. Escrever passou a ter um vetor: publicar. Da máquina dele passei a outra, e dela ao computador. Acho que também usei agendas para escrever, como se fossem diários, ou quase.

Em 2022, você celebrou os seus 25 anos de publicações em livros. Qual é o significado desse marco para sua carreira literária?

Até hoje tenho dúvidas se tenho uma carreira. É que a autoexigência faz aparecerem umas frustrações, os tamanhos das coisas ainda são frouxos dentro dos moldes dos planos e dos sonhos. Mas às vezes eu caio em mim e acho que, sim, é uma carreira, inclusive persistente. São 25 anos. O problema é confrontar o que a gente quer e o que realmente acontece. Quando me dei conta dos 25 anos de publicações em livros (1997-2022), achei que devia dizer algo, fazer um livro, pensar nisso. É bom, mas também é para se refletir. Perguntas duras como: o que eu fiz da minha vida até aqui? Insisto muito, me defronto com muitas coisas incontroláveis e incontornáveis. Não tem a ver com esforço, tempo de estrada, quantidade de livros, nada. Isso era ilusão de 25 anos atrás. E muito do que nunca aconteceu não é atestado de incompetência. Tem relação com outras tantas coisas que independem da minha escrita. Talvez dependam mais das relações sociais que não tenho, da marcação geográfica de tudo, da má distribuição de recursos e valores etc. O que celebrei foi a existência dos meus livros e a minha coragem ainda vigorosa. O livro que lancei por isso, o Menos ainda, é a celebração de uma carreira literária oclusa, mas com uma ironia elegante. 

Por que você escreve?

Porque eu gosto. Acho gostoso e me dá certa sensação de alívio.

Quais escritoras(es) te inspiram?

Já mencionei escritores que fizeram parte da minha formação e volto a falar neles, porque foi isso que aconteceu mesmo: Paulo Leminski, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa. Lamento que sejam só homens, até aí, mas só fui tomar consciência disso recentemente, quando a discussão sobre o ler mulheres gritou mais alto. Não sei quem me influencia hoje. Leio muita coisa, mas me sinto mais refratária na hora de escrever. De certo modo, levei anos, mas encontrei minha voz literária. Não sei mais com que ela se parece. Ou se é preciso se parecer com algo. Minha prosa é que vem sendo mais testada, nos últimos anos. Quando leio algo bom, ou melhor, algo que me agrada, sei dizer que aquilo é algo que me impressiona, me agrada, me admira, mas não chego a pensar que seja uma influência. Hoje, na poesia, por exemplo, me revolvo de delícia quando leio a portuguesa Adília Lopes. E queria que ela me jogasse umas luzes.

Conte-nos sobre o seu livro Álbum (2018), que obteve o prêmio nacional Manaus. Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo? 

O Álbum nasceu de uma ideia mais projetada. Os livros de poemas anteriores eram coletâneas de textos escritos meio aleatoriamente. O Álbum nasceu da ideia fechada de responder ao álbum de fotografias que minha mãe faz para cada um dos quatro filhos. Então escrevi os poemas com um norte nítido. Nesse sentido, é meu primeiro livro-projeto, tinha uma espécie de planta baixa. De certo modo, isso dá uma coerência ao conjunto e os júris gostam. Não sou só eu que já notei esse aspecto. No Álbum as fotografias de família são o eixo. O resto vem a reboque: memória, afeto, ancestrais, morte, aborto, gravidez, amor, desamor. O livro está ativo no catálogo da excelente Relicário Edições, fácil pela web e também em algumas livrarias. 

Comente sobre Dicionário de Imprecisões (2019), que foi finalista do Prêmio Jabuti (2020). Explique o título e suas implicações no sentido/proposta da obra, e onde podemos adquiri-la. 

O Dicionário também tem essa característica do projeto. Meu filho me disse uma frase e eu tive o clique de pensar em um dicionário que imprecisasse as palavras. Um dicionário poético, sem compromisso com a verdade, declaradamente (porque nenhum tem mesmo). Não sou a primeira a ter essa ideia, mas num livro inteiro isso parece ter agradado a algumas pessoas. Em 2020, o júri de poesia do Jabuti indicou o livro entre os finalistas. Foi uma alegria compartilhada com a editora Impressões de Minas, com a qual tenho feito meus trabalhos poéticos mais recentes. Também é um livro ativo no catálogo da editora, pela web e em algumas livrarias.

E quanto ao seu livro Romieta e Julieu (2021), que ganhou o Prêmio Jabuti (2022)? Qual é o mote desse livro? Onde podemos adquiri-lo? 

Engraçado que os livros juvenis geralmente são textos que pensei por muito tempo e demorei a executar. Eles vêm num ambiente de diversão. Rio enquanto escrevo. Geralmente são jatos, porque estavam sendo gestados há tempos. A editora é que me dá um empurrão: você tem algo aí na manga? E eu sempre tenho. O mote é a história clássica e muito popular de Romeu e Julieta, só que atravessada pelas tecnologias de hoje. O Jabuti em 2022 foi também uma alegria que compartilhei com a RHJ, que me edita há mais de uma década e sempre aposta nas minhas aventuras. Gosto muito do jeito como as coisas saem lá. O livro está ativo no site da editora, na web e em algumas livrarias também. Depois do prêmio, mais lugares se interessaram em ter a obra. E vem mais por aí.

Fale sobre as suas participações em concursos e prêmios literários, como, por exemplo, o Prêmio Jabuti (2022). 

Não fui uma pessoa que entrou em muitos prêmios. Às vezes é trabalhoso e frustrante. Mas de vez em quando me animei e fui. No caso do Manaus, é um prêmio para inéditos, isto é, você precisa guardar absoluto segredo. É como outras premiações: Sesc, Paraná, Cepe etc. Já o Jabuti é um prêmio para obras publicadas. As editoras é que inscrevem os livros, ou você, se for autopublicado ou independente. É o caso também do Oceanos e de outros. Como jurada, estive em alguns prêmios, em prefeituras, no estado de Minas Gerais, no Sesc e mesmo no conselho do Jabuti, em ano anterior. É bom saber como isso funciona por dentro e ampliar a confiança na seriedade das coisas. 

Mais do que escrever, é necessário fazer ecoar nossas vozes. Qual é a importância do ato de publicar, para você? 

Publicar foi secundário na minha vida, mas já na adolescência eu comecei a pensar em pôr meus textos para circular. Nosso ambiente comunicacional e tecnológico era completamente outro. Até que fiz muito, num mundo analógico em que as pessoas pareciam muito mais distantes. Para se publicar é imprescindível conhecer gente. A Internet tornou todo mundo mais próximo, mas também criou um ambiente de burburinho muito maior. É mais difícil hoje, nesse sentido. Publicar é importante para que eu torne minha escrita algo profissional, intencionado. Não escrevo mais apenas para desabafar, como fazia na adolescência. Escrevo porque entendo que essa atividade seja parte da minha vida profissional. Tenho mais clareza de que quero ser lida e de que mereço alguns retornos pelos livros que conseguem circular. 

Como convidada da nossa coluna Uma cartografia da escrita de mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?

Há muitas escritoras da minha geração que começaram a escrever agora. Há escritoras de gerações anteriores que estão na luta há muito mais tempo; há pessoas nesse esforço, como eu e algumas pessoas da minha faixa etária. Há jovens e recentes escritoras que atuam no mesmo espaço simbólico. É difícil dizer sobre gerações no sentido etário. As escritoras que estão no mundo comigo, tenham a idade que for, sentem coisas parecidas com o que eu sinto. Elas têm dúvidas, desejos, pretensões, ambições, frustrações etc. Hoje o mar está para sereias. Muitas mulheres escrevendo e publicando. Mais: tornando-se mais visíveis na paisagem literária. O que penso que pode ser interessante é evitar o deslumbramento, o alumbramento, até se esquecendo das colegas; para equilibrar isso, muitas são bastante conscientes do significado dessa tomada de posse do espaço – discursivo, mas também físico nas vitrines. Não sei bem o que dizer às minhas colegas. Elas raramente me perguntam algo, então só observo mesmo. O que eu penso é que precisamos arranjar um jeito nosso de fazer bem as coisas. 


Contatos da escritora:

Instagram: @anadigital

E-mail: anadigital@gmail.com

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Gabriela Lages Veloso é escritora, poeta, crítica literária, e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente, é colunista do Feminário Conexões. Além disso, colabora com coletâneas e revistas, no Brasil e no exterior. Em 2023, organizou a Antologia Poéticas Contemporâneas: uma cartografia da escrita de mulheres, juntamente com a Editora Brecci Books.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO | 17, POR CAROLLINA COSTA

 


LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|17

MEMÓRIA DOS OUTROS

Por: Carollina Costa


Tenho escrito pouco. O tempo escorre por entre meus dedos como areia ou água quando tentamos segurá-las. Mas é incrível como certas memórias resistem ao tempo.
Há alguns anos atrás ouvi uma história encapsulada em curtas frases dentro da universidade em que me graduei. Nunca fui capaz de esquecer, tampouco podia fazer algo com ela — o que alguém pode fazer com frases que ouvimos por alto? Escrever, talvez. Não tinha coragem. Me sentia — e ainda sinto — como uma invasora das histórias de um desconhecido, ou melhor, desconhecida. Porém, é na minha perspectiva de mulher que decidi desenterrar essa memória. Não sei se estou fazendo a melhor escolha, mas os tempos são bons para a reflexão que ela traz. Sigamos.

No meio da minha graduação, talvez 2018, estava no ônibus universitário sentada na frente de quatro rapazes tão jovens quanto eu que comentavam sobre a última Calourada (festa universitária de recepção aos calouros). Apesar de jovens, não pareciam calouros. Eu não estava dando grande atenção aos comentários até que certas frases ditas pelo rapaz sentado atrás de mim silenciaram meus pensamentos:


— Eu nem acredito que peguei aquela gostosa. Eu metendo fundo e ela vomitando. Ela nem sabia o que estava acontecendo! Foi ótimo!

A broderagem dos outros três amigos do rapaz trouxeram um silêncio que abriu espaço para as gargalhadas do dito cujo.

Fiquei em silêncio por dentro e por fora. Não podia acreditar no que eu tinha ouvido e onde eu tinha ouvido.

Quando o ônibus parou e senti que eles iam descer, eu tive que olhar para trás. Eu tinha que saber quem ele era. Quem eles eram.

Quatro rapazes de camisa polo impecável, jeans novinho, sem um pelo de barba ou cicatriz de gilete no rosto — carinha de neném —, cabelo bem cortado, alinhado. Você, e nem eu, jamais apontaria para um rapaz daqueles e diria "estuprador", porém um deles o fora, e os outros que sabiam, calaram.

Provavelmente essa garota até hoje não sabe o que aconteceu com ela. Provavelmente esse rapaz não se considera estuprador e nem é visto assim por seus pares. Deve ser um cidadão de bem.

Eu escrevo, falo e luto, mas nunca vivi nenhum tipo de violência física — psicológica acho que todas vivemos só porque nascemos. A dor do outro, da outra, me basta para escrever sobre, pensar sobre, lutar por.

Dar voz a essa memória anos depois não diminui o nó da garganta, e sei que é só mais uma história entre tantas outras. Infelizmente ainda tantas… Infelizmente em um ambiente que deveria ser seguro, já que levianamente associamos violência à uma simples ignorância… Mas como disse Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas".

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EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

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