ELES LEEM ELAS|08
Flor de Linz , de Danielli Cavalcanti
CRÔNICA DE UMA MIGRANTE BRASILEIRA NA EUROPA
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
“Flor
de Linz”, da escritora brasileira Danielli Cavalcanti, é livro que deveria ser
lido e relido por aqueles que sonham com paraísos europeus onde tudo ‘floresce’
e a vida humana é plena de realizações e prosperidade. Tendo como palco o
fictício café “Flor de Linz” existente na cidade austríaca de Linz e que se
afigura como um ponto de apoio e encontro de imigrantes, uma voz narrativa (que
traduz as experiências da própria autora que de fato ali residiu por anos),
expõe o cotidiano dos migrantes, sobretudo brasileiros, que, por um motivo ou
outro, acabaram indo dar com os costados naquelas paragens às margens do rio
Danúbio.
Positivamente
vivemos época em que a distinção entre “migrantes” e “refugiados” é cada vez
mais tênue. De fato, vem ocorrendo no mundo uma forte mutabilidade e variedade
dos fluxos migratórios, porque impulsionados por mudanças mais densas,
imbricadas e complexas do que em épocas anteriores. São múltiplas as
confluências e semelhanças entre ambos os conceitos e indiferenciadas muitas
das causas e consequências desses fluxos. Difícil, muito mesmo, diferenciar
movimentos “voluntários” dos “forçados” por guerras e/ou perseguições
políticas, tal a natureza híbrida dos mesmos. Muitos dos migrantes
“voluntários” – por vezes designados como migrantes econômicos – são na
realidade “forçados” a deixar suas regiões de origem, devido a situações de
grande privação (absoluta ou relativa), como parece ser caso da maioria dos
migrantes brasileiros que optam por tal alternativa ante um quadro social
extremamente instável, de avanços e recuos cada vez maiores no país.
A
velha questão de ausência de perspectiva de melhoria de vida, aliada à um
quadro de instabilidade, violência crescente, corrupção e crise constante, tem
empurrado muitos às aventuras em terras europeias.Decorre de tal situação, que
a vivência e convivência em tal ambiência é sempre marcada também por muito
sofrimento físico e psíquico (pois o tal homo sapiens ainda acredita piamente
que não existe paraíso sem serpente, e as vezes trabalha com afinco para que
assim continue). As narrativas da senhora Danielli Cavalcanti, embora adornadas
por uma tonalidade poética e por certo carinho pela cidade de Linz e alguns de
seus habitantes mais cordiais, não esconde a brutalidade do racismo, o
preconceito, e a imposição de uma mentalidade europeia que se pensa superior ao
resto do mundo.
Há
casos que beiram o cômico como é o caso de Açucena (os personagens femininos
têm sempre nomes de flores) que se envolve em um triângulo amoroso que quase
acaba em morte, ou o caso de Oleandro que precisou que uma pessoa austríaca
falasse por ele – o simples sotaque estrangeiro por vezes é uma porta enorme
bem trancada -, para fechar um contrato de locação de um imóvel. Interessante
notar que, nesse caso específico, havia um amor em jogo, mais havia também
outros interesses urgentes, e imagine-se o que é viver em tal condição:
“Para
ela [a noiva], foi a forma de fazer diferença na vida de alguém. Para Oleandro
foi a possibilidade de legalizar sua estadia e, finalmente, conseguir permissão
para trabalhar e ter seguridade social. Sua emoção não cabia no coração. O
Danúbio é testemunha das muitas vezes que Oleandro tremeu de tanto chorar as
dores de anos trabalhando no submundo da construção civil. Durante todo o seu
tempo de trabalhador indocumentado, teve sonhos destruídos e outros muitos
adaptados.”O que pensar disto?
“Os
ânimos a todo vapor me renderam duas visitas dos faróis azuis. Na primeira,
controlaram minha permissão de estadia na Áustria e o alvará do café. Na
segunda visita, as botinas pretas insaciáveis começaram a controlar as pessoas
convidadas.”
Ainda
pior: “Antes de abrir o café, eu tive um horário marcado no departamento para
assuntos de imigração, para renovar meu título de residência permanente. Dessa
vez, foi exigido também uma declaração de uma associação, que eu nunca ouvira
falar, constando que eu não solicitara nenhum empréstimo bancário. E lá se
foram 20 euros, para um papel comprovar que falei a verdade.”
Assombrosa
a história de uma certa moça chamada Tulipa (brasileira), casada com um tal
Hibisco (austríaco), que foi convidada para um jantar local. Observe-se uma a
realidade que subjaz envolvendo mulheres migrantes. Primeiro a pergunta de uma
‘dama’ austríaca:“— Hibisco te escolheu de um catálogo, não foi?”, ante a
estranheza que uma tal pergunta causou, veio a resposta:“— Sim, catálogo! Há
muitos homens que não encontram mulheres aqui e as buscam de catálogos de
outros países. Principalmente as mulheres do Sul são requisitadas pela sua
submissão cultural.”
Há
ainda outras observações que transmitem bem como é o dia a dia para os
imigrantes:Na crônica “Florescimento contínuo” a tradução do que muitos
europeus pensam sobre os migrantes: “Parece que, ao carimbarmos o passaporte
num país estrangeiro, recebemos de cortesia o carimbo da menos valia, da
incompetência. Por mais que nos esforcemos, nunca somos, suficientemente,
bons.” Porque: “Nossas habilidades estão sempre sendo questionadas, quando não
menosprezadas. Nossas capacidades subestimadas, ao ponto de sermos
infantilizadas.”
Entretanto
o livro, não trata somente de tristezas e desencantos, há espaço também para
belos momentos de solidariedade a ajuda mútua, onde grandes amizades se
constroem. Assim mesmo, cala forte nossas consciências quando lemos a crônica
“Uma flor de jaçanã”, que narra toda aquela tragédia ocorrida bem na Áustria em
2015 (quem se lembra?), quando no final de agosto daquele ano, “um caminhão com
71 corpos foi encontrado numa autovia, e a Áustria sentiu o peso da presença
daquelas vidas ausentes. Eram pessoas vindas na maioria, da Síria. Morreram
asfixiadas, dentro de um caminhão, tentando atravessar a Áustria para chegarem
à Alemanha.” Fica mesmo a terrível mácula, que o tempo não apaga, e que o texto
refere com muita propriedade:
“E
se tem que suportar o peso de suas almas gritando na consciência, e seus corpos
expondo as crueldades de uma política de exploração e de extermínio. Chegam
pelas águas como algas, estão em todos os lugares para nos lembrar do nosso
fracasso como humanos.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Agradecemos seu contato. Em breve lhe responderemos. Obrigada.