Por Marta Cortezão
![]() |
Compre AQUI! |
─ Já’a jaguatá, vamos caminhar!
Assim que ouve o
comando, Chico vem correndo, senta do meu lado e empina o focinho para eu
colocar o peitoral,
─ Muito bem, jaguá-i! ─ elogio.
Eu queria mesmo era ter aprendido
tupi, mas o curso era aos sábados de manhã, e o que quero fazer num sábado de
manhã, muito mais do que aprender qualquer coisa, é dormir. Logo optei pelo guarani.
Não tem a ligação com o Nordeste que o tupi tem, mas meu coração de linguista é
fácil de agradar. Foi assim que, durante três meses, passei as noites de
segunda-feira sentada em frente ao computador, ouvindo o xamoi contar
sobre cultura, lutas e língua do povo guarani. Aprendi que, no dia em que Nhanderu
resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado
de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a
areia para formar os continentes. Sim, na mitologia guarani, Deus criou
primeiro o tatu. Depois, quatro deuses menores para administrar o trabalho na
Terra e só depois o homem. Aliás, o homem não, o ser humano. Aprendi também
sobre a relação do povo guarani com a natureza, sobre os guardiões da floresta,
os espíritos da montanha. E aprendi algumas palavras e frases dessa língua
complicada e fascinante, que agora, após o curso, continuo praticando com
Chico, meu companheiro de longos passeios.
Enquanto nos afastamos de casa pela rua de terra batida, Chico corre atrás dos gravetos que vou lançando para longe.
─ Tereó! ─ E
ele vai.
─ Eju apy! ─ E
ele vem.
Encontramos o açude calmo. Já vi peixes grandes, jacarés pequenos, cobras, cágados e capivaras nadando naquelas águas, mas hoje se espelham nelas apenas as poucas nuvens brancas do céu. Sedento após a brincadeira, Chico se refresca com a y-y transparente, antes de pedirmos licença aos xondaro e ka’aguy nhe’ẽ para adentrar na floresta. Viemos para apreciar, digo em pensamento, como aprendi nas aulas das segundas-feiras. Logo entramos na mata, naquele mundo calmo e misterioso, onde, rodeada de árvores, respiro o cheiro úmido de terra e plantas, ouço o murmúrio da brisa entre as folhas, admiro os cogumelos e as yvoty à beira do caminho: vermelhas, amarelas, rosa, brancas. Sinto dezenas de olhos nos acompanhando, enquanto sigo o Chico pela pequena trilha. Vez ou outra me detenho para observar a reprodução de lagartas, cheirar uma flor ou acariciar a casca áspera de um tronco.
De volta em o'ó, ligo o computador. Faz tempo que quero saber mais sobre os Camarás, o povo que deu nome ao lugar onde moramos: Aldeia dos Camarás. Mas só acho informações sobre condomínios, aplicativos de entrega e retiros espirituais. Então vou pelo município: Camaragibe – Terra dos Camarás, como informa a placa de boas-vindas na estrada. Só que... nenhuma informação sobre esses últimos. Na maioria das páginas, fala-se rápida e genericamente sobre se teriam habitado estas áreas antes da chegada dos portugueses, só para logo se estender, por parágrafos e parágrafos, sobre os engenhos da cana-de-açúcar. Quanto ao nome, "Camarás" supostamente se referiria a um arbusto presente na região. Ou seja: vivemos em terra de arbusto?
Não posso o deixar de lembrar que a Assembleia
Provincial do Ceará, lá por 1866, chegou a declarar a inexistência de indígenas
no território, ignorando todas as etnias ali presentes. Tudo isso para
beneficiar a quem lucraria com a expropriação das suas terras. Tapeba,
Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Anacé, Tapuya-Kariri, Kanindé, Tremembé, Gavião,
Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Tubiba-Tapuya, Tupinambá, Karão Jaguaribaras,
Kariri - se hoje são oficialmente quinze os grupos indígenas no Ceará, imagina
no século retrasado.
Será um caso parecido aqui em Pernambuco? Um caso de
falsificação histórica, de invisibilização de um povo por interesses
econômicos, de negação de direitos a quem poderia exigi-los? Não me
surpreenderia. No fim das contas, os povos originários lutam há séculos contra
um Estado que omite sua existência e saqueia suas terras.
Sigo incontáveis links, pulando de página em página, até que finalmente encontro uma referência aos indígenas Camarás. E tem mais: conversando com um amigo camaragibense, ele relata que antigamente os locais entendiam o topônimo assim mesmo, como nome de um povo. Com o tempo, porém, a outra versão – a dos arbustos – prevaleceu. É a versão oficial hoje em dia. E a gente sabe quem dita as versões oficiais, né? Mas tenho esperança: dia desses conheci uma criança daqui de Aldeia. A menina jura ter visto, na floresta atrás da casa, uma família indígena: velhos e jovens, kunhangue, avangue, kyringue.
─ Estão aqui sempre ─
me conta. ─ Andam pela mata, conversam, cantam, as crianças correm e brincam.
Ninguém mais vê, mas
eu acredito. E espero que estejam por aqui mesmo. No fim das contas, esta é a
terra deles. Aldeia dos Camarás, Camaragibe, Pernambuco, Brasil.
Referências bibliográficas:
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.
MILLER, Yvonne. Deus criou primeiro o tatu: crônicas da mata. 1ª ed. São Paulo: Aboio, 2022.
☆_____________________☆_____________________☆
![]() |
Arquivo da autora |
Tem textos publicados em várias antologias – Paginário (Aliás, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck, 2021), Crônicas de uma Fortaleza obscena (Territórios, 2021), Prêmio de Literatura Unifor 2021: Crônicas (Unifor, 2022), Amores e Lendas (Tubo, 2022), Fraturas: Antologia de Contos 2º Concurso Literário Pintura das Palavras (2022), Tinha que ser mulher (2022), Abraçar e resistir: vozes feministas (Libertinagem, 2023) – e é uma das organizadoras e coautora da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Na vida real, é mestre em linguística e preparadora de livros didáticos.