sexta-feira, 7 de outubro de 2022

VERBO MULHER: EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA, POR HELENA TERRA



V E R B O M U L H E R|04

EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA

POR HELENA TERRA 


        “Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”, Annie Ernaux diz em seu livro O Acontecimento. Annie Ernaux, para quem ainda não sabe, é a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Eu, até outro dia, falo do mês de agosto, nunca tinha lido nada dela. Eu gosto da palavra agosto. Separa o A e muda o sentido! E gosto muito do livro Luz em Agosto, do William Faulkner, aquele em que uma jovem, em um estado interessante, caminha descalça por uma estrada, usando um vestido comprado por reembolso postal.

        Eu gosto da palavra estado e do verbo Estar. Quando a gente começa a estudar inglês, começa com o verbo To Be. Eu comecei aos seis anos e, na época, achei estranho um verbo representar dois da nossa língua. Como pode ser Ser e Estar ao mesmo tempo, eu me perguntava.  Até hoje há muitas coisas que eu me pergunto e acho estranhas, incompreensíveis mesmo, sendo uma delas a maternidade, e eu sou mãe. Mãe duas vezes embora eu tenha um único filho. O primeiro se tornou uma espécie de segredo do meu corpo. Então, sendo segredo, o melhor a fazer é falar sobre o livro O Acontecimento.

       E de que ele trata? Também de maternidade. No caso, da gravidez indesejada de uma jovem em busca de alguém que a ajude a abortar. Sim, ela não quer ser mãe. Aliás, muitas mulheres não querem. Muitas mulheres geraram e pariram filhos por obrigação. Muitas mulheres inclusive morreram dando à luz ou a evitando. Dar à luz é uma expressão que me intriga ou, talvez, incomode. É, me incomoda. E penso que não é pelo contraponto de uma outra vida estar no que chamam de escuridão de um útero. Me incomoda porque ela parte da premissa de que nós, as mulheres, temos de dar. Dar o tempo todo. De tudo. De sermos a doação em pessoa, custe o que custar, mesmo quando a vida não está correndo conforme o planejado ou, vai, está. A vida, às vezes, por incrível que pareça, corre bem. Durante as minhas duas gestações, eu vivi em um mundo cheio de estrelinhas. E por quê? Por uma série de fatores, sendo o mais significativo a atuação impecável do pai dos meus bebês.

       Pois é. O pai do meu filho, nesse quesito, merece um parágrafo. O pai do meu filho, desde o instante em que soube que a nossa família iria aumentar, moveu mundos e fundos para que eu me sentisse feliz, zelando pelo meu bem-estar físico e emocional como se ele próprio tivesse adentrado minha natureza, como se fossemos, naqueles meses, a mesma pessoa. E, de certa forma, fomos. Os batimentos cardíacos dele e o meu se uniram em um intenso estado de desejo, nos conduzindo a uma forma de paixão e gozo que desconhecíamos. Grávida, mais do que em qualquer outra fase, fui desejada. Grávida, o pai do meu filho e eu nos tornamos, verdadeiramente, um homem e uma mulher. 

         Um dos meus filmes favoritos é o Um Homem e Uma Mulher, do Claude Lelouch. Não é fácil ser um homem e uma mulher, viver a parceria de um homem e uma mulher. Quem viu o filme sabe do que estou falando. E não é simples, para um casal, manter-se um homem e uma mulher durante a gestação de um filho. Na verdade, é um desafio. Alguns homens falham diante da exuberância de uma barriga. Os piores homens. Que tipo de homem trai a mulher que traz o seu filho no corpo?

        Uma mulher grávida, se a gente parar para pensar, é como um teste de caráter e de honra. A gravidez de uma mulher revela, em alta escala, o caráter de quem a engravidou e a presença ou a falta de empatia com as transformações do corpo feminino.  Por detrás de traições, sabemos, existem sempre argumentos, mas, por detrás das desse tipo, o que há é a indiferença e, por que não dizer, a crueldade de homens invejosos e egocêntricos. Poucos. De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Ashley Madison, o maior site de relacionamentos extraconjugais desse planeta redondo, no momento da gestação de um filho, a maior parte dos homens gostam de estar com suas mulheres. Estar é mesmo um verbo interessante.


Ana Carolina - Força Estranha - Elas Cantam Roberto Carlos

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

14 comentários:

  1. Helena é luz. Helena, na Mitologia Grega, era a mulher mais bela do mundo. Esta Helena é Terra, são pés no chão. Este artigo é paradoxalmente uma denuncia e uma homenagem às mulheres. Uma denúncia contra a condenação das que não desejam ter o filho ou filha, da solidão de muitas durante a gravidez pela ausência do esposo ou do pai do filho; mas é, também, uma homenagem a todas as mulheres que tomam a decisão de ter ou de não ter o filho ou filha. Nos, homens, mesmo quando estamos presentes somo co-adjuvantes. Parabéns, Helena, por mais este belo e emocionante texto.

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    1. Oh, Hermógenes, você é sempre tão querido e generoso comigo e está sempre atento às causas femininas. Muito obrigada!

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  2. Ser e Estar

    Eu tive uma gestação solitária. O pai do meu filho, meu marido até hoje, era tão imaturo quanto eu. Por isso enfrentei o peso sozinha. Estar grávida é um peso em todos os sentidos: corpo aumenta e também a consciência de que tudo ao redor se transforma durante e após a gravidez. Diminuíram minhas turmas de inglês na escola em que eu ensinava porque eu estava amamentando. Parecia até que eu atrapalhava o mundo com meu filho nos braços. Ser mulher não é uma dádiva fácil.

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    1. Letícia querida, lamento muito que você tenha vivido sua gravidez de uma forma mais difícil. São meses muito desafiadores e difíceis. Obrigada por esse depoimento tão cristalino e corajoso. Beijo.

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  3. Helena, seu texto é necessário, assim como a gravidade de ser mulher representa nesta terra redonda de tantas voltas e revoltas. Obrigada pelo trabalho dolorido de revirar as gavetas e nos trazer a luz grandes e preciosas verdades. "Luz em agosto" de Falkner foi meu primeiro encontro com o autor. Deixou marcas. Sigamos na luz ! Beijos , querida Helena

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    1. Eu que te agradeço, Rita, pelo comentário. O Luz em Agosto foi o meu primeiro Faulkner também e é o meu favorito.

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    2. A palavra gravidade combina muito com a nossa existência. Beijos, Rita querida.

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  4. Maravilhosa Helena! Maravilhoso texto!

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  5. É muito difícil ser mãe, e antes disso é muito difícil ser mulher. Eu amo minhas filhas, mas se eu pudesse voltar atrás, eu não teria me tornado mãe. Pelo menos não a mãe que eu sou, do jeito que eu sou. E nessa frase eu expresso a minha condição de opressora de mim mesma. De juíza dos meus próprios atos. E isso não é bom não. Seu texto mexeu muito comigo, Helena! Um beijo!

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    1. Te entendo perfeitamente, Ana Paula. Eu também gostaria de ter sido uma mãe do meu filho melhor pra mim. Penso que dei mais o meu melhor a ele quando eu deveria ter dado o mesmo a nós dois. Obrigada por esse comentário tão lúcido!

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