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quarta-feira, 23 de março de 2022

TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


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TRILOGIA DAS DEUSAS - A MENINA, A MULHER E A BRUXA


 Por Margarida Montejano

Patricia Cacau

Agora vamos para trilogia.

Virgem (Se Essa Lua Fosse Nossa)

Mulher na fertilidade (Ciranda de Deusas)

Mulher na sabedoria (I Tomo das Bruxas)

A mulher nas 3 fases da sua existência.

Formando o tripé*

 

Se essa Lua fosse Nossa

 

É manhã… muito cedo ainda…

Me ponho a olhar. Fixo os meus olhos e, a retina enfeitiçada vê a menina faceira, virgem, cheirando a alecrim e à flor de laranjeira.

 

Maria, Isabel, Marta, Teresa… Quanta energia, quanta beleza!

 

Leve e solta, canta com o sol e o vento.

Corre feliz entre os campos e, de espírito livre com flores se enfeita, na relva se deita!

Oh criatura divina que a lua do céu ilumina! 

Que da boca escorre mel! Que ofusca as estrelas do céu!

 

Fátima, Conceição, Imaculada,

Margarida e Rosário…Fiam a noite, tecem o dia, experimentam a vida!

 

Vejo  outra menina igualmente bela,

preta, branca, vermelha, amarela,

a desfilar sua singularidade entre carros e arranha céus!

Seja no campo ou na cidade ou, de qualquer ponto do universo,

as meninas encantadas, perfumam as noites estreladas 

e  à lua, declaram em prosa e verso o seu amor no papel.

Numa aquarela, seduzem, inspiram… ah se essa lua fosse nossa!

Enternecidas, cantam o amor próprio e viajam para a lua, a Consolação, a Rita de Cássia, a Glória e a Aparecida!

 

Uma Ciranda de Deusas

Afastem de mim a sua Filosofia!

Joguem fora estas Poesias de Amor!

Tessalonicenses 4:16-18

 

É tarde, mas… cedo ainda para ela. Para elas!

Pego-me a admirar a formosa mulher que de botão, flor se fez. Faz de conta que o tempo não passa e a bela corajosa, canta espantando os males e as tardes ensolaradas, encanta.

 

Da Penha, Ana, Das Dores, Gorete e Catarina, aos olhos da mãe em noite de lua, são elas ainda meninas

 

Com a alma lavada nas noites enluaradas, escreve receitas, rabisca poesias, aprende com os erros, acalma o vento e, do tempo, os temores.

Ensina o amor e inventa a esperança.

O tempo e as agruras da vida, enfrenta.

Seguem Ana, Madalena, Clara e Remédios, o caminho das pedras, no enfrentamento das dores.

 

Luta na labuta do dia e sonha na candura da noite.

Destemida, cuida da casa, da roça e das crias.

Tão fértil é ela que gesta em seu ventre a luz

e, o dia é pouco para o tanto que faz!

Ela, somente ela é capaz de, ao mesmo tempo, três verbos conjugar - amar-perdoar-seguir. 

 

Rosa, Edwirges, Luzia, Patrícia  e Helena…

tão sensíveis, tão combativas e, ao mesmo tempo,  tão serenas…

 

De versos, coragem, abraços e afetos faz rimas.

Da o colo, o ombro, faz serestas, cantigas e poemas às amigas!

Poderosa faz ela o que bem quiser e,

numa ciranda de deusas, dança e dança a madura mulher.

Chora a dor do mundo, enfrenta o ódio gratuito, o machismo, o desemprego, a fome. Sangra, teme, enfrenta os dilemas, as tempestades e não desanima. O corpo endireita, se veste de sol, põe estrelas no cabelo e a terra germina. É ela a menina, a deusa, a mulher!

 

 

I Tomo das bruxas

 

Há quem passe pelo bosque

e só veja lenha para a fogueira.

Há quem veja VIDA. 

Jéssica Freires

 

Lá vem a noite e, para ela, para elas… é cedo ainda!

Ouço atentamente. A bela senhora conta histórias com sabedoria e, sua voz reverbera no ontem, transita no hoje e se põe a sonhar o amanhã.

As histórias que compôs, que viveu, que contou e que ainda estão guardadas em seu íntimo, inspira e ilumina as mulheres, jovens e meninas, durante o luau…

 

Ela, com o sol sobre os pés, revestidas da prata da lua, viaja no tempo e busca, nas origens das origens, o grão de terra que a constitui e, ao invocar o chão ancestral, encontra as ervas para todas as curas, as palavras certas para todas as situações e a reza devida, para o livramento dos males.

 

A mulher madura, na altura da idade que carrega, respeita a hora de falar, pois aprendeu com os anos, com o peso da lenha nas costas, a lata cheia d'água na cabeça e os tombos do tempo, a arte da escuta. Os olhos delas são parceiros dos ouvidos e os lábios, quando se abrem, trazem a palavra sabedoria.

 

Para além da filosofia, não é à toa que as mãos, sabedoras das medidas exatas preparam os chás, caldos e quitutes mais sofisticados do mundo e, com docilidade essas mãos, quando tocam a parte que dói nos corpos doentes, são capazes de curar. Com reza, alecrim e guiné, fazem poesia.

 

Não é à toa que essas incríveis criaturas são tão temidas! Pois, se são capazes de suportar a dor com resiliência, de enfrentar o machismo secular e de defender com unhas e dentes a causa a que acreditam, o que mais elas podem fazer? Ah! Elas podem muito, desafiam a ciência as tais feiticeiras! Elas podem, quando de mãos dadas, mudarem o mundo!

 

Na dúvida, melhor silenciá-las!

 

Assim tem se revelado as duras estatísticas do feminicídio.

Ato que substitui a fogueira e demonstra a covardia daqueles que se acham mais fortes.

Covardes eles são!

Malditos! Estes não são dignos de desatar as sandálias dessas maravilhosas bruxas do nosso tempo!

 

À  todas as mulheres que viveram, lutaram e se foram antes de nós! À Joana D’arc, a Carolina de Jesus; Irmã Dulce, Dorothy Stang; Zilda Arms, Márcia, Joene, Marielles, Elzas e a todas as Marias do mundo! O nosso respeito, admiração e reverência!

 

Estamos aqui por elas, por nós e pelas que ainda virão. Continuaremos a marcha por uma e por todas. A luta que a força bruta não estanca. O amor e o poder feminino que a tirania não vence! Seguiremos confiantes de que, na mistura perfeita da semente humana e divina, o ventre da terra haverá de gestar um mundo em que todos tenham um lugar.

Um lugar para viver dignamente e sem preconceitos, amar!






terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A ‘NEOPOESIA’ DO SÉCULO XXI



A ‘NEOPOESIA’ DO SÉCULO XXI

Por Carla De Sà Morais-Gossuin


As novas vozes da poesia:


A poesia sempre esteve viva entre nós, todavia, continua uma desconhecida do grande público. É quase um paradoxo, mas é a realidade.

Em Portugal e em outros países, também, a poesia contemporânea continua desconhecida do grande público. Raros serão aqueles que poderão citar nomes de poetas do século XXI.

A culpa, cabe também aos média que falam pouco sobre ela e, quando falam, referem-se a maior parte das vezes aos grandes clássicos. É uma pena, porque a poesia dos nossos dias além de estar bem viva, é duma enorme riqueza.

É interessante ressaltar, que, apesar de tudo, a poesia tem-se mantido numa certa dinâmica, graças às pequenas editoras que a promovem em eventos, e dão assim a oportunidade a que ela se expanda, ao mesmo tempo que revelam os seus autores. Seria de grande benefício que as suas forças se unissem para melhor divulgarem, evitando assim o esquema de arquipélago que se tem vindo a formar, porque no fundo, têm todas um público que as apoia e porque também, os lugares onde a poesia pode ser escutada, multiplicaram-se e isso dá-nos a perspetiva de viver e de sentir como a poesia vive fora das páginas. A união é importante porque a Cultura desenvolve-se de mãos dadas.

As mulheres, estão muito presentes nesta era de neopoesia, contribuindo para este renascimento poético, onde a música das palavras tem um ritmo atento ao espaço e ao tempo.

Em Novembro do ano passado, o prémio Nobel da literatura foi atribuído a Louise Glück, poeta americana. Então, sinto que estamos todos no bom caminho.

 




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segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR ELIZABETE NASCIMENTO



COLETÂNEA POÉTICA: ENLUARADAS II (2021): UMA CIRANDA DE DEUSAS

SÓ PARA DIZER QUE “AGORA SOMOS NÓS QUE VAMOS DIZER O QUE [não] SOMOS”[1].

  

Por Elizabete Nascimento

 

Agrego ao título a afirmação de Lygia Fagundes Telles, por traduzir uma das essências que emana da coletânea de poesia de autoria feminina Enluaradas II: uma ciranda de deusas (2021)[2], com eus poemáticos que reafirmam a infinita tarefa de poetizar o mundo e não compactuam com o poder arbitrário que aprisiona a fala de todas em detrimento de uma. A obra é subdividida em quatro oráculos sagrados regidos pelas deusas da mitologia grega, conforme destaca Marta Cortezão (2021, p. 09):


O primeiro homenageia a deusa Gaia, a Mãe Terra que nos nutre e que nos revela a importância de recuperar nossa sacralidade e nos conectar com nosso espírito primitivo; o segundo, a Deusa Selene, La Bella Luna, a que comanda os mistérios de nossa natureza cíclica e do Sagrado que nos habita; o terceiro, a Deusa Lilith, a que controla os ventos e as tempestades, lutando pelos seus direitos, negando subserviência ao patriarcado; e o quarto e último oráculo que celebra a Deusa Afrodite, a que vem nos revelar a sacralidade do amor, alimentando-nos a força da luta coletiva pela sororidade, pelo amor que faz morada no colo do numen primitivo. 

Da estrutura supramencionada, mitológica e envolvente, pescamos quatro poemas para brincar com o tecido poético da criação de autoria feminina que compõe a coletânea, esse mar de águas inundado por sentimentos. A pescaria teve como critério trazer para o palco a percepção de que as palavras voam livres, entram por dentro do corpo e levantam em forma de poema para ressignificar a figura feminina no mundo contemporâneo. Por escolha trazemos os poemas na íntegra, a fim de que o leitor constate ou não as percepções descritas, até porque o objetivo aqui não é trazer o significado do poema, muito pelo contrário, é dizer que o poema tem mil faces e sugerir que você, caro leitor, encontre a sua e descubra como as palavras desses eus poemáticos falam em nós e nos afetam os sentidos. Eis os poemas:                                     

RESSIGNIFICÂNCIAS

                

Ale Heindenreich (p. 24)

 

Me reencontro nas palavras

Como o rio que corre seu curso.

Deparo-me com a cachoeira de

Águas mansas. Ora torrentes.

Escorrem no papel linha por linha

Verso por verso.

 

Permeiam as folhas do meu

Caderno vermelho.

Respingam em palavras formando

Choro, riso ou receio.

 

Caem como gotas de

Chuva desprentensiosa.

Tornam-se poças tímidas que

De mãos dadas se movem até

O córrego manso,

E de lá outra vez serei

Rio de águas renovadas.


O poema Ressignificâncias apresenta o poder libertador das palavras e como, por meio delas, o eu poemático descreve seu percurso: “Me reencontro nas palavras/Como o rio que corre seu curso”. Como algo que ultrapassa os obstáculos, vence as barreiras do tempo. Nota-se ainda, que as palavras simbolizam as águas e, estas por sua vez constituem o rio, rio que transforma-se no eu poemático, como um ciclo onde o ser humano e a natureza se entrelaçam numa rede constituinte de identidade: “E de lá outra vez serei/Rio de águas renovadas”. Há uma boniteza de imagem poética que se levanta do poema e clama por sentires múltiplo e que, portanto, não podem estar aprisionados em interpretações e/ou conceitos previamente definidos.


A PALAVRA QUE ME FALTA


Dani Espíndola (p. 71)

 

Onde se esconde

A palavra que procuro

A que me estancará as feridas

Me guiará no escuro

Que é viver só de vontades

De inventar realidades

Onde estará a palavra

Que me falta

Para terminar o poema

A palavra que condena

E liberta

Impunemente

Onde se esconde

A palavra

Que me desmente.


Ainda no seguir a tessitura da rede iniciada pelo poema Heindenreich, A palavra que me falta – de Dani Espíndola, metaforicamente também apresenta a incompletude da palavra e do ser, ambos em via de fazer-se: “Onde se esconde/A palavra que procuro/A que me estancará as feridas”. Por mais que a procura seja incessante, sempre haverá uma lacuna para ser preenchida. Essa artimanha do signo verbal lembra-me Carlos Drumonnd de Andrade: “Trouxeste a chave?”. Espíndola apresenta um eu poemático consciente de suas limitações e vontades, à procura da palavra definitiva, que contraria o eu poemático e que, ao mesmo tempo, possa completá-lo: “onde estará a palavra/Que me falta/Para terminar o poema/A palavra que condena/E liberta/Impunemente./Onde se esconde/A palavra/Que me desmente.”

Ao considerar o exposto, o eu poemático de Espíndola enche-se de questionamentos a respeito da completude da palavra como se sabedor de que “um escritor pode amontoar frases e mais frases, adjetivos e mais adjetivos, para capturar a essência esquiva de alguma coisa. Mas, quanto mais usa a linguagem para descrever um personagem ou situação, mais tende a soterrá-lo sob uma montanha de generalidades” (EAGLETON, 2019, p. 63)[3]. Nesse sentido, ainda de acordo com o autor, na e pela palavra, podemos fazer sangrar tudo que existente aprisionado em nós e, é por esse motivo que a poesia: “não trata apenas do sentido da experiência, mas também da experiência do sentido” (EAGLETON, 2019, p. 196).


CHÃO ANCESTRAL


Margarida Montejano (p. 148)

 

Às vezes, mora em mim uma loba

 que uiva como louca quando sente que o perigo ronda.

Defende a cria, sobe as paredes e as unhas afia.

Mora em mim, às vezes,

uma ovelha desgarrada de olhos mansos

que tece, nas rugas do tempo  e nos fios de lã,

 o cachecol do dia que aquece nossas noites insanas.

 

Às vezes, mora em mim

uma bem-te-vi que vive a cantar a esperança.

Que não desiste. Insiste no voo que aquece o ninho.

Enfim, mora às vezes em mim uma louca,

que grita insana nas noites insones, que existir é muito mais que viver.

Que eu posso ser amarga, azeda,

macia, árida e áspera, sem deixar de ser doce.

 

Que eu possa ser lua, estrela, constelação.

Deusa, musa, menina, princesa e bailarina.

Posso ser meretriz, caipira, doutora do lar, poeta e atriz...

Habita dentro de mim um ser inconcluso,

Confuso, difuso, mas tomado de essência divina

Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!

Mora em mim um anjo sagrado e profano,

Uma boneca de pano que às vezes me chama e me diz

 - você é o que você quiser!

Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher.

 

Chão ancestral, de Margarida Montejano, exibe o movimento das diversas identidades da figura feminina que busca na complexidade das relações viver com intensidade seus paradoxos: “Habita dentro de mim um ser inconcluso,/Confuso, difuso, mas tomado de essência divina/Sábia, intuitiva, santa e humana inconformada!”. Um eu poemático consciente da potencialidade da alma humana que caminha por múltiplas direções: “Que eu possa ser lua, estrela, constelação./Deusa, musa, menina, princesa e bailarina”. Ou seja, capaz de ultrapassar as linhas da objetividade e peregrinar pelo campo da ficção. Nesse sentido, é interessante atentar para o fecho do poema: “Sorrio de mim, requebro e sigo, agora na versão mulher”, como o ser livre e múltiplo estivesse apenas na palavra porque o ser mulher, nessa sociedade, exige o cumprimento de regras, de imposições que limita seus fazeres.  

Ao dizer o que queria no poema, o eu poemático afasta-se do texto, segue a vida real, na versão mulher. Nesse sentido, convoca-nos à necessidade de olhar para o texto, deixar-se ser provocado por ele, pois: “A linguagem em poesia é uma realidade em si mesma, e não um mero veículo pra algo diferente dela. A experiência que importa é a experiência do poema. As ideias e os sentimentos pertinentes são aqueles que estão ligados às próprias palavras, e não a algo dissociável delas” (EAGLETON, 2019, p. 142).

A batalha da produção de autoria feminina é ser (re)conhecida em suas diversas facetas e qualidade de sua produção, embora já tenha algumas conquistas é preciso seguir em frente, pois segundo Octávio Paz (1954): “A liberdade do escritor não é algo abstrato, mas algo que se conquista dia a dia. Em sua obra, em seu trabalho, melhor dizendo, de revelação do homem, o escritor deve lutar contra todo tipo de limitações e imposições. Alguns pessoais e outros externos”[4]. Ainda recorrendo a Paz, vale destacar que a essencialidade literária consiste em descobrir e revelar parte do ser humano, no que ele tem de mais específico, além disso, o autor destaca que técnicas adotadas por um ou outro autor(a) podem até influenciar o caráter das produções, mas não alteram o seu valor.


SINA


 Vania Clares  (p. 199)

 

de muitas herdei pudores

e desígnios acumulados,

as células carregam dores

por caminhos atribulados.

Custei a entender essa trama

Tecida através dos séculos,

Vista por muitos como drama,

Os iguais assumidos vínculos.

Revivo a história dia a dia

Nos olhos de outras mulheres

E reconheço em todas a ousadia

De fazer valer os seus saberes.

Condensamos a força deferida,

a que rasga imperiosa o ventre,

Lembramos sem medo a ferida,

Afrontando o risco de estar entre

Aqueles que nos desconhecem.

E porque somos amor e doação

Damo-nos as mãos em sintonia,

Colhendo na luta a inspiração,

Prevalecendo o milagre da poesia.

E porque entendi como privilégio,

Exulto em canto a sina em sagração,

Em mim encontrarás eterno refúgio,

Em nós o cerne da vida em ebulição.

 

Observem que o último verso do poema Chão ancestral dialoga com Sina, de Vânia Clares que, com seu jeito peculiar, poetiza o percurso da figura feminina no decorrer da história, bem como, destaca a ancestralidade, com alguns episódios que se repetem e fazem eco no mundo contemporâneo. Invoca ao poder do trabalho coletivo para “pular o cerco”: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia.” No poema Sina percebe-se o tom metafórico para que a mulher vá à luta, aprenda as lições deixadas por seus antepassados, toque na ferida como bandeira de redenção e, dessa forma, passa a incomodar àqueles que desconhecem a legítima voz de quem aprende com a própria história. Nos dois últimos versos há a profunda e necessária relação entre o eu e o nós como constituintes do processo de criação poética: “Em mim encontrarás eterno refúgio,/Em nós o cerne da vida em ebulição”. Uma mulher que reconhece o limite de sua individualidade e ao se reconhecer compreende-se também como um ser híbrido e, portanto, em contínuo processo de aprendizagens com as outras: “E porque somos amor e doação/Damo-nos as mãos em sintonia,/Colhendo na luta a inspiração,/Prevalecendo o milagre da poesia”. Terry Eagleton (2019) diria que o eu-poemático, na produção dessas mulheres, “surge como metáfora da natureza e povoada de fantasias da vida humana real” porque quem carrega os sonhos somos nós, humanos.

A busca incessante por liberdade percorre os poemas, de modo que metaforicamente a figura feminina concebe a escrita/palavra, como personificação de si mesma, pois:

Sua memória corre fluída no texto, embaralhada nos tempos vividos que se fundem na emoção do recordar/viver. Saberes e sabores dos mais diversos se fundem em sua escrita seivosa. Escrita sinuosa de contador-de-histórias que vê a aventura humana enredada em seus mil caminhos e veredas que se cruzam, entrelaçam e se separam. Nenhuma vida existe por si só, mas enovelada, determinada, abortada ou frutificada por outras vidas que a ela estão presas por invisíveis e irredutíveis fios. (COELHO, 1993, p. 320).

São vidas filtradas pelos sentimentos e pelos conflitos de quem, até pouco tempo, eram negados o direito à voz/escrita. Octávio Paz legitima essa proposição ao destacar que “O poema é um objeto único, permeado por uma técnica específica de cada poeta, a qual possui um estilo específico, marcado tanto pelo individualismo de seu criador quanto pela sua época, estilo literário de seu tempo e vivências sociais e históricas”[5].

Nesse ínterim, retorno ao título dessa abordagem: “agora somos nós quem vamos dizer o que somos”, trata-se de um chamamento à leitura da produção de autoria feminina, porém, sabedora de que muito pouco ainda está sendo e será dito, sempre com a palavra em falta nesse chão ancestral escrito pela diversidade que solicita coragem no mar de ressignificâncias que engendra a epifania do ser e/ou a imprescindível mudança dessa sina da mulher. Ressalto que: “a melhor maneira de ver uma obra literária não é como um texto com sentido fixo, mas como matriz capaz de gerar todo um leque de significados possíveis. Mais do que conter significados, a obra o produz” (EAGLETON, 2019, p. 149).

Finalizo, por ora, destacando que os poemas selecionados foram produzidos em primeira pessoa, por mulheres, talvez para que observem a transfiguração engendrada pela memória e pela arte como um apelo para que olhem de novo, de outro jeito a produção de autoria feminina, com corpos e almas que nos contrários se edificam, linguagens cingidas na experiência e nos sonhos rotineiros que, em sua maioria, recusam a linguagem burilada, às sintaxes consagradas e se levantam no jeito particular e, ao mesmo tempo, coletivo desmanchados na/pela escrita que eleva imagens e sensações plurais.

 


[1] TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.  “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”.

[2] CORTEZÃO, M.; CACAU, P.; Coletânea Enluaradas II: uma ciranda de deusas. São Paulo: Saravasti, 2021.

[3] EAGLETON, Terry. Como ler literatura. Porto Alegre: L&M, 2019.

[4] PAZ, Octavio. Fragmentos de uma entrevista à Rosa Castro, México/La Cultura, 1954.

[5] https://homoliteratus.com/poesia-e-poema-sao-sinonimos-nao-para-octavio-paz/




sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE





FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|03

A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA – O INFINITO PARTICULAR

 POR ISA CORGOSINHO

 

Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto. (...), basta uma observação preliminar: uma gaveta vazia é inimaginável. Pode apenas ser pensada. E, para nós, que temos que descrever o que se imagina antes do que se conhece, o que se sonha antes do que se verifica, todos os armários estão cheios.                                                                    

(BACHELARD, 1994, p. 21)

A epidemia COVID--19 que assombra a humanidade nos cinco cantos do mundo, enlutando os continentes com as cifras desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira, a responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia fascista que desgoverna o país. 

Os movimentos sociais criam meios e modos de organização para confrontar o caos sanitário e o total descaso governamental que impera de norte ao sul do país. As organizações de resistência, que em contexto de normalidade expressavam-se nas manifestações de rua, apropriam-se das mídias virtuais, que ganham força devido às medidas de segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse complexo e desafiador contexto, com posições estéticas vinculadas ao ético, com militância firmada nos movimentos feministas e em outras bandeiras dos movimentos culturais.

Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.

A arte é o front principal da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta, circulação e trocas entre as poetas participantes.      

Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição de protagonista, vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina contemporânea, e já nos oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas coletâneas de poesias. Ao nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto, ocorreu-nos a vontade de refletir teoricamente sobre a constituição de algumas imagens reincidentes na poética feminina que merecem um início de conversa. 

Além das marcas ideológicas, a riqueza imagética que transborda dos versos das enluaradas nos movimentou em direção a uma obra que parece se localizar na constelação das filhas de Selene: A poética do espaço, de Gaston Bachelard.  Por que essa obra mobiliza nossa atenção? Primeiro, porque a casa, local por excelência de abrigo, tornou-se, no contexto pandêmico, um complexo sistema espacial: isolamento, lazer, esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina e, sobretudo, território propício aos vários tipos de violência e neurose. Segundo, porque a casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família que ali estava quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que seja, pode nos dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a intuição, erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes, proporciona um insight penetrante, assegura o poder incisivo da observação e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o negam e o rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando proveito de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre a escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em cosmos.      

Na Poética do espaço, Bachelard apresenta a casa como um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Constrói uma ideia de casa que diverge da noção de um objeto, apresenta uma reflexão sobre as relações simbólicas pelos trilhos da relação realidade e imaginação, na concepção de um ideário fenomenológico. Para um fenomenólogo, as nuanças de nosso apego a um lugar predileto não são colorações superficiais suplementares. É necessário dizer como habitamos o nosso espaço vital em conformidade com as dialéticas da vida, como nos enraizamos, cotidianamente, “num canto do mundo”.   

 

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.  

(BACHELARD, 1993, p. 24)

 

Destacam-se, nesses trilhos, as relações oníricas que simbolicamente transcendem os espaços físico e material, normalmente pensados em seus predicados utilitários, e nos leva a interpretar a ideia de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (1993, p. 25).  Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando afirma que na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por meio do pensamento e do sonho.

É nessa forma expandida da simbologia da casa que nos orientamos para interpretar os sentidos enunciativos da poesia: abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem frente ao mundo de dispersão dos sonhos, das lembranças e do pensamento; avassalados por inundações de imagens exteriores e pelo medo da morte, enlutados por perdas de entes queridos.   

Bachelard esclarece que não é apenas em sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado; a antiga locução: “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variantes (BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham para aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem.  De tal modo, a casa não vive somente no dia a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que representam o refúgio das emoções - sótão, porão, corredores – que são desvendados pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. A literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que associam a intimidade aos espaços físicos da casa e suas adjacências.  Assim compreendida, a casa configura um corpo de imagens que dão ao indivíduo razões e ilusões de estabilidade, constância. É preciso reinventar constantemente sua realidade: distinguir suas possíveis imagens é perseguir a alma da casa; perseguir uma psicologia da casa.  O resultado dessa ordenação está na representação da casa como ordenação de imagens que a torna um ser vertical, muito ligada à ideia de consciência ou, por outro lado, a imagem da casa como um ser concentrado em que se enfatiza a “consciência de centralidade”. A relação consciente e inconsciente - realidade da casa e do espaço de forma concreta e realidade do espaço de forma abstrata - indicam a relação junguiana com a realidade e seus símbolos.

A poética do espaço de Bachelard oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que situam o lirismo numa relação estreita com as dimensões metafóricas da casa e as ambivalências dos seres ali representados. Nota-se que, na poesia, o espaço adquire o caráter de poética ao estabelecer relações simbólicas que envolvem os dramas e aspirações dos seres em seus espaços habitáveis ou desejados, sonhados. Esse mundo simbólico funde elementos do eu lírico a espaços que transcendem o material e acenam para representações arquetípicas junguianas.  Trata-se não apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço.  São os poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos detalhes e da simplicidade.  Por outro lado, a imensidão reflete uma busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o espaço.

 

C(ASAS)

                Nic Cardeal

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidas

a habitar minhas casas por trás das retinas

que corressem livres, cantantes, felizes

– esses meninos e essas meninas –

entre o balanço das redes e a colheita das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

 

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

– depois da lama, além do lótus –

haverá de nos caber um respirar em amor

onde ‘meus meninos e minhas meninas’

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

O eu lírico expressa no signo casa um continente que contém asas, aprisionadas na ambivalência dos parênteses, mas libertas pelas janelas do olhar, que não está doente dos olhos.  A imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais projetados nas asas do desejo da refração. A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. Os elementos telhados, chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência, o telhado metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na vida do homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo Bachelard. Sem ela, a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa.  Mas os meninos e as meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de estrelas.  O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos sentidos podem oferecer.  O corpo metamorfoseia-se expressando o sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de toda essa 'minha gente'.”   Por fim, a integração com a mãe Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.   

A casa cosmológica no poema de Nic Cardeal está em luta, em ação terrena pelo acolhimento social dos vulneráveis. Bachelard diz em seus devaneios que uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores.  No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve-o. O filósofo reafirma que o ser deveria reinar numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece, diz ele, que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens materiais. Para além das metafísicas, o poema de Cardeal denuncia a vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um sistema que se mantém às custas de graves, medonhas injustiças sociais.  O lúcido anseio, desejo de libertar as crianças da precariedade material, em dialógicos cruzamentos artísticos e cósmicos faz coro com a música Comida, dos Titãs  diversão, arte e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.  

 

INSPIRAÇÃO

                                             Patrícia Cacau

Mulheres

somos iguais em tudo que é invisível aos olhos.

E nas lágrimas nos encontramos.

Nada é tão banal

E o pouco é tão importante quanto o essencial

Um universo em fios

unindo-se para reconstrução do grande ventre de sustentação

da divina mãe.

Eu sou porque muitas foram,

Tu serás e outras serão após.

Recebi e agora entrego o que foi por herança.

Permanece aquele que se entrega.

Olhado pra ti, me vejo cada vez mais mulher.

E o que antes foi solto agora está ligado.

Passado e presente reconectando com o futuro.

Seja um ser que reconhece o seu papel nessa fazedura.

Independente do corpo que habita.

Não se distraia, seja MULHER!


O poema de Cacau é um canto ancestral da sororidade. A casa aqui se desenha na ciranda das mulheres sábias. Seus versos conjugam, evocam todas las madres, as muitas mães para que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata o conceito da mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais ser abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza profunda, “a que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas as agulhas de espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e o descanso, para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229).  A mãe selvagem é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual também ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração: embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria (seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por você”.  O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos, ideias, sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das mulheres sábias em pleno processo de criação.          

 

MATRIOSKAS 

                              Cátia Castilho Simon

 

Antes de mim

Houve um rosário

de sim

 

Em clausuras

ad infinitum

formatado

 

No eterno

jogo

das matrioska

 

As Matrioskas russas constituem-se de uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). São pintadas com cores vivas e desenhos variados. A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matriona. A imagem das Matrioskas pode ser entendida como pequenas casas, metáfora onde habitam nossas ancestrais. O poema de Simon pode ser compreendido no jogo de ressonâncias, que se dispersam nos diferentes planos de nossa vida no mundo; e a repercussão, que nos convida a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A morfologia das bonecas, o oco das ressonâncias das matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão, ao aprofundamento de uma escuta ancestral e o repensar de nossa própria existência. A exuberância e a profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da ressonância e repercussão reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado.  Mas a imagem atinge as profundezas antes de emocionar a superfície.          

Para compreensão dos consentimentos, forjados na clausura, é necessário o restabelecimento da intimidade com a natureza instintiva. A metáfora das Matrioskas nos revela o aprendizado das histórias das quais fazemos parte, não existem fora de nós. Imaginemos uma longa história pela porta de escuta de cada uma das Matrioskas, responsável por novas gerações de mulheres. A última geração representada pelo eu lírico que se define “Antes de mim” denuncia o enclausuramento ad infinitum, mas a própria denúncia do rosário de consentimentos, abre canais através das mulheres. É uma forma de luta da mulher selvagem para reerguer suas descendentes, por mais que sejam proibidas, silenciadas, podadas e enfraquecidas, torturadas, rotuladas de loucas, perigosas e de outros depreciativos, elas voltam à superfície. É o que revela o ser pungente da linguagem poética de resistência do feminino selvagem. Essa imagem, que a leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente nossa; enraíza-se em nós mesmas.  Como almeja o saudoso poeta e semiólogo Décio Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa linguagem; expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e uma devir de nosso ser.     

 

SÉCULOS

                                    Flavia Ferrari

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso, que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer, sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua, prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse latifúndio.       


ALCATEIO-ME

                           Marta Cortezão


uma alcateia me habita

multitudinária presença

que, em noite de lua cheia,

me devora e me expande

me dilacera e me liberta

me uiva e me assume

alcateia-me

em espetáculo ritualístico...


a loba já não corre

pode vislumbrar

o lume dos anseios 

Pode apreciar e uivar poesia

aos cantos cinzas do mundo

gozando em alcateia


O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação pura dos versos de Alcateio-me.      

O poema realiza uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo. Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios.  Pinkola assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz.   Outro ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos, um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.      

 

ORAÇÃO

Francis Mary

 

Rasga meu peito depressa

Planta na minha terra

Árvores fortes a me enraizarem.

 

Dá-me de beber da seiva

Que alimenta as abelhas.

Desperta-me com o tecido das maritacas

em seus gritos.

 

Liberta-me nas corridas dos veados

Solitários nas estradas.

Pinta-me com o colorido alegre das araras

E me acalma com as águas dos igarapés.

 

Joga em meu colo, em minha sombra, a luz.

Acorda a minha vontade de amar

e no rio do amor incondicional

inteiramente ser e navegar!


A ORAÇÃO de Mary nos apresenta a imagem da casa como um grande habitat natural. A poética do espaço se configura na dialética do grande e do pequeno, nas experiências sinestésicas com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta, sem o intermédio das ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A imensidão no poema encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso da natureza, mas a relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus valores ontológicos, a dialética do interno e do externo, a impressão da imensidão fica impregnada em nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima e integrada dos movimentos das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam sobre nossos sentidos: ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas generosas das imagens sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta civilizatória e reivindica seu habitat natural; a integração profunda com a mãe terra; a necessidade de restabelecer o contato profundo com natureza selvagem. Existe aí o desejo de desapegar-se do mundo da superfície, onde reina soberano o ego civilizado.    

O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o sagrado.  Acordar a vontade de amar é um pedido para o restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza, deslizamento.   

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ESTÉS, Clarissa. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.     

 





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