FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|03
A POÉTICA DO
ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA – O INFINITO PARTICULAR
POR ISA CORGOSINHO
Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do
oculto. (...), basta uma observação preliminar: uma gaveta vazia é inimaginável.
Pode apenas ser pensada. E, para nós, que temos que descrever o que se imagina
antes do que se conhece, o que se sonha antes do que se verifica, todos os
armários estão cheios.
(BACHELARD, 1994, p. 21)
A epidemia COVID--19 que assombra a humanidade nos
cinco cantos do mundo, enlutando os continentes com as cifras
desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira, a
responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo
feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis
na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no
Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia
fascista que desgoverna o país.
Os movimentos sociais criam meios e modos de organização para confrontar o
caos sanitário e o total descaso governamental que impera de norte ao sul do
país. As organizações de resistência, que em contexto de normalidade
expressavam-se nas manifestações de rua, apropriam-se das mídias virtuais, que
ganham força devido às medidas de segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse
complexo e desafiador contexto, com posições estéticas vinculadas ao ético, com
militância firmada nos movimentos feministas e em outras bandeiras dos
movimentos culturais.
Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia
complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado
por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.
A arte é o front principal
da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o
Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de
chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos
diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas
para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são
desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta,
circulação e trocas entre as poetas
participantes.
Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição de protagonista,
vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina contemporânea, e já nos
oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas coletâneas de poesias. Ao
nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto, ocorreu-nos a vontade de
refletir teoricamente sobre a constituição de algumas imagens reincidentes na
poética feminina que merecem um início de conversa.
Além das marcas ideológicas, a riqueza imagética que transborda dos versos
das enluaradas nos movimentou em direção a uma obra que parece se localizar na
constelação das filhas de Selene: A poética do espaço, de Gaston
Bachelard. Por que essa obra mobiliza nossa atenção? Primeiro,
porque a casa, local por excelência de
abrigo, tornou-se, no contexto pandêmico, um complexo sistema espacial:
isolamento, lazer, esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina
e, sobretudo, território propício aos vários tipos de violência e neurose.
Segundo, porque a casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família
que ali estava quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que
seja, pode nos dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a
intuição, erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes,
proporciona um insight penetrante, assegura o poder incisivo
da observação e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o
negam e o rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando
proveito de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre
a escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em cosmos.
Na Poética do espaço, Bachelard apresenta a casa como um corpo
de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Constrói uma
ideia de casa que diverge da noção de um objeto, apresenta uma reflexão sobre
as relações simbólicas pelos trilhos da relação realidade e imaginação, na
concepção de um ideário fenomenológico. Para um fenomenólogo, as nuanças de
nosso apego a um lugar predileto não são colorações superficiais suplementares.
É necessário dizer como habitamos o nosso espaço vital em conformidade com as
dialéticas da vida, como nos enraizamos, cotidianamente, “num canto do
mundo”.
Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se
diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em
toda a acepção do termo.
(BACHELARD, 1993, p. 24)
Destacam-se, nesses trilhos, as relações oníricas que simbolicamente
transcendem os espaços físico e material, normalmente pensados em seus
predicados utilitários, e nos leva a interpretar a ideia de que “todo espaço
verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (1993, p.
25). Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando afirma que na
mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu
abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por meio do
pensamento e do sonho.
É nessa forma expandida da simbologia da casa que nos orientamos para
interpretar os sentidos enunciativos da poesia: abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem frente ao mundo de dispersão dos
sonhos, das lembranças e do pensamento; avassalados por inundações de imagens
exteriores e pelo medo da morte, enlutados por perdas de entes
queridos.
Bachelard esclarece que não é apenas em sua positividade que a casa é
verdadeiramente vivida, não é somente no momento presente que reconhecemos os
seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado; a antiga locução:
“Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variantes
(BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para
o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga
memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de
devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua,
memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham para
aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da
lembrança com a imagem. De tal modo, a casa não vive somente no dia
a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos
sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os
tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que
representam o refúgio das emoções - sótão, porão, corredores – que são desvendados
pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. A
literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que associam a
intimidade aos espaços físicos da casa e suas adjacências. Assim
compreendida, a casa configura um corpo de imagens que dão ao indivíduo razões
e ilusões de estabilidade, constância. É preciso reinventar constantemente sua
realidade: distinguir suas possíveis imagens é perseguir a alma da casa;
perseguir uma psicologia da casa. O resultado dessa ordenação está
na representação da casa como ordenação de imagens que a torna um ser vertical,
muito ligada à ideia de consciência ou, por outro lado, a imagem da casa como
um ser concentrado em que se enfatiza a “consciência de centralidade”. A
relação consciente e inconsciente - realidade da casa e do espaço de forma
concreta e realidade do espaço de forma abstrata - indicam a relação junguiana
com a realidade e seus símbolos.
A poética do espaço de Bachelard oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que situam o lirismo numa relação
estreita com as dimensões metafóricas da casa e as ambivalências dos seres ali
representados. Nota-se que, na poesia, o espaço adquire o caráter de poética ao
estabelecer relações simbólicas que envolvem os dramas e aspirações dos seres
em seus espaços habitáveis ou desejados, sonhados. Esse mundo simbólico
funde elementos do eu lírico a espaços que transcendem o material e acenam para
representações arquetípicas junguianas. Trata-se não
apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a
leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam
informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço. São os
poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens
associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo
de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo
e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos
detalhes e da simplicidade. Por outro lado, a imensidão reflete uma
busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da
espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas
relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma
poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as
aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética
e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o
espaço.
C(ASAS)
Nic Cardeal
Eu tenho c(asas) que me
habitam os olhos,
verdadeiras vilas com quintais
por trás das retinas,
telhados que acolhem chuvas
esparsas,
uns ventos, uns pássaros em
descanso das asas,
chaminés exalando fumaças em
busca de nuvens espessas.
Quisera pudesse trazer os
meninos e meninas perdidas
a habitar minhas casas por trás das retinas
que corressem livres,
cantantes, felizes
– esses meninos e essas
meninas –
entre o balanço das redes e a
colheita das amoras,
fazendo estrelas brilhantes
nos céus dos meus olhos depois do poente...
Eu tenho paraísos secretos
depois dos desertos dos meus pensamentos,
depois das costas, das
omoplatas,
dos contornos das minhas
estradas internas tão tortas,
passeios noturnos indo dar na
janela da alma,
quem sabe ali o mundo
estivesse sempre bonito
e eu pudesse esconder toda
essa ‘minha gente’ a salvo.
Então nós faríamos festas nas
vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,
e ‘os meus meninos e as minhas
meninas’ seriam crianças felizes,
sem medos, sem tempo, sem
susto, sem limbo,
amarelinhas desenhadas nas
bordas, nas beiras,
no centro, nos cirros, nos
nimbos,
cirandas e rodas e poesias e
prosas,
risadas rosadas, espécies de
esperanças eternas
em casas etéreas com tetos tão
ternos,
deixando bem longe as
tristezas do mundo concreto...
Eu tenho um vaso de sonhos
brotando na sacada da alma encharcada
– depois da lama, além do
lótus –
haverá de nos caber um
respirar em amor
onde ‘meus meninos e minhas
meninas’
sejam sementes e brotos e
flores e frutos
de um deus mais decente.
O eu lírico
expressa no signo casa um continente que contém asas, aprisionadas na
ambivalência dos parênteses, mas libertas pelas janelas do olhar, que não está
doente dos olhos. A imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais
projetados nas asas do desejo da refração. A casa é imaginada como um ser
vertical. Ela se eleva. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. Os
elementos telhados, chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência,
o telhado metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na
vida do homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das
tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo
Bachelard. Sem ela, a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A
casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de
centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no
mundo, o homem é colocado no berço da casa. Mas os meninos e as
meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas
adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento
digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no
regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de
estrelas. O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da
injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo
exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das
possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos
sentidos podem oferecer. O corpo metamorfoseia-se expressando o
sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de
toda essa 'minha gente'.” Por fim, a integração com a mãe
Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A
transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por
outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das
preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num
bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.
A casa cosmológica no poema de Nic Cardeal está em luta, em ação terrena
pelo acolhimento social dos vulneráveis. Bachelard diz em seus devaneios que
uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve
deixar no interior o privilégio de seus valores. No
interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve-o. O
filósofo reafirma que o ser deveria reinar numa espécie de paraíso terrestre da
matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece, diz ele, que nesse
paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens
materiais. Para além das metafísicas, o poema de Cardeal denuncia a
vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um sistema que se mantém às custas
de graves, medonhas injustiças sociais. O lúcido anseio, desejo de
libertar as crianças da precariedade material, em dialógicos cruzamentos
artísticos e cósmicos faz coro com a música Comida, dos Titãs – diversão, arte
e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade
do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.
INSPIRAÇÃO
Patrícia Cacau
Mulheres
somos iguais em tudo que é
invisível aos olhos.
E nas lágrimas nos
encontramos.
Nada é tão banal
E o pouco é tão importante
quanto o essencial
Um universo em fios
unindo-se para reconstrução do
grande ventre de sustentação
da divina mãe.
Eu sou porque muitas foram,
Tu serás e outras serão após.
Recebi e agora entrego o que
foi por herança.
Permanece aquele que se
entrega.
Olhado pra ti, me vejo cada
vez mais mulher.
E o que antes foi solto agora
está ligado.
Passado e presente
reconectando com o futuro.
Seja um ser que reconhece o
seu papel nessa fazedura.
Independente do corpo que
habita.
Não se distraia, seja MULHER!
O poema de Cacau é um canto ancestral da sororidade. A casa aqui se desenha
na ciranda das mulheres sábias. Seus versos conjugam, evocam todas las madres, as
muitas mães para que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata
o conceito da mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais
ser abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza
profunda, “a que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas
as agulhas de espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e
o descanso, para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229). A
mãe selvagem é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual
também ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração:
embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria
(seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas
precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos
séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição
de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a
alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais
velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam
transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por
meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um
sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por
você”. O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também
aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura
perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse
sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de
sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos,
ideias, sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações
inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das
mulheres sábias em pleno processo de
criação.
MATRIOSKAS
Cátia Castilho
Simon
Antes de mim
Houve um rosário
de sim
Em clausuras
ad infinitum
formatado
No eterno
jogo
das matrioska
As Matrioskas russas constituem-se de uma série de bonecas, feitas
geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior)
até a menor (a única que não é oca). São pintadas com cores vivas e desenhos
variados. A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matriona. A imagem das
Matrioskas pode ser entendida como pequenas casas, metáfora onde habitam nossas
ancestrais. O poema de Simon pode ser compreendido no jogo de ressonâncias, que
se dispersam nos diferentes planos de nossa vida no mundo; e a repercussão, que
nos convida a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância
ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A morfologia das
bonecas, o oco das ressonâncias das matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão,
ao aprofundamento de uma escuta ancestral e o repensar de nossa própria
existência. A exuberância e a profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da
ressonância e repercussão reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da
repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais,
recordações do nosso passado. Mas a imagem atinge as profundezas
antes de emocionar a
superfície.
Para compreensão dos consentimentos, forjados na clausura, é necessário o
restabelecimento da intimidade com a natureza instintiva. A metáfora das
Matrioskas nos revela o aprendizado das histórias das quais fazemos parte, não
existem fora de nós. Imaginemos uma longa história pela porta de escuta de cada
uma das Matrioskas, responsável por novas gerações de mulheres. A última
geração representada pelo eu lírico que se define “Antes de mim” denuncia o
enclausuramento ad infinitum, mas a própria denúncia do
rosário de consentimentos, abre canais através das mulheres. É uma forma de
luta da mulher selvagem para reerguer suas descendentes, por mais que sejam
proibidas, silenciadas, podadas e enfraquecidas, torturadas, rotuladas de
loucas, perigosas e de outros depreciativos, elas voltam à superfície. É o que
revela o ser pungente da linguagem poética de resistência do feminino selvagem.
Essa imagem, que a leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente
nossa; enraíza-se em nós mesmas. Como almeja o saudoso poeta e
semiólogo Décio Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa
linguagem; expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao
mesmo tempo um devir de expressão e uma devir de nosso
ser.
SÉCULOS
Flavia Ferrari
Querer não basta
É preciso rastejar pelo
território sem trincheiras
Sob as balas que cruzam e
tiram a pele
Sonhar de nada vale
É preciso subir ao palco e
assassinar o rei
Desligar o som e encerrar
o show
Viver não é suficiente
É preciso morrer cem vezes
E outras tantas
Para que o tempo seja generoso
E restaure o humano
revolucionário
Que possa enfim descansar
Sem sentinelas
Sobre a terra que lhe foi
devolvida
As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da
linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao
vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que
seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia
força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua
vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso,
que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer,
sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático
espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos
territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é
morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua,
prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens
apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A
imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da
vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande
casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia
sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da
linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É
preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode
descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse
latifúndio.
ALCATEIO-ME
Marta Cortezão
uma alcateia me habita
multitudinária presença
que, em noite de lua cheia,
me devora e me expande
me dilacera e me liberta
me uiva e me assume
alcateia-me
em espetáculo ritualístico...
a loba já não corre
pode vislumbrar
o lume dos anseios
Pode apreciar e uivar poesia
aos cantos cinzas do mundo
gozando em alcateia
O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação
poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia
sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e
o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo
poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a
linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na
poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do
neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com
a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do
irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos
seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da
linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação
pura dos versos de Alcateio-me.
O poema realiza
uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a
casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das
mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na
linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do
arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o
passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o
tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo.
Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções
femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios. Pinkola
assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis
Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua
vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características
psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da
lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico
da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz. Outro
ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação
a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o
processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os
acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e
agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo
coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive
morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão
nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos,
um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares
de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as
delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a
inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no
corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.
ORAÇÃO
Francis Mary
Rasga meu peito depressa
Planta na minha terra
Árvores fortes a me enraizarem.
Dá-me de beber da seiva
Que alimenta as abelhas.
Desperta-me com o tecido das maritacas
em seus gritos.
Liberta-me nas corridas dos veados
Solitários nas estradas.
Pinta-me com o colorido alegre das araras
E me acalma com as águas dos igarapés.
Joga em meu colo, em minha sombra, a luz.
Acorda a minha vontade de amar
e no rio do amor incondicional
inteiramente ser e navegar!
A ORAÇÃO de Mary nos apresenta
a imagem da casa como um grande habitat natural. A poética do espaço se
configura na dialética do grande e do pequeno, nas experiências sinestésicas
com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta, sem o intermédio das
ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A imensidão no poema
encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso da natureza, mas a
relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus valores ontológicos, a
dialética do interno e do externo, a impressão da imensidão fica impregnada em
nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima e integrada dos movimentos
das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam sobre nossos sentidos:
ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas generosas das imagens
sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta civilizatória e reivindica
seu habitat natural; a integração profunda com a mãe terra; a
necessidade de restabelecer o contato profundo com natureza selvagem. Existe aí
o desejo de desapegar-se do mundo da superfície, onde reina soberano o ego
civilizado.
O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no
útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais
iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o
feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o
sagrado. Acordar a vontade de amar é um pedido para o
restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por
um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para
alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza,
deslizamento.
REFERÊNCIAS
BACHELARD,
Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ESTÉS, Clarissa.
P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher
selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.
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