Mostrando postagens com marcador Rita Alencar Clark. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rita Alencar Clark. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: COERÊNCIA - Por Rita Alencar Clark

LIÇÕES DE SILÊNCIO|09


C O E R Ê N C I A  (crônica) 

Imagem do site Pinterest
Um dos meus ex-maridos, um dia, numa daquelas DRs intermináveis, me definiu: “você pode ser tudo… (nessas reticências continham traços de prepotência machista), mas uma coisa é incontestável, a sua coerência!”. Sim, verdade. Tomei como elogio e norte. 


O negócio é que sou espírito selvagem, livre, daqueles que não suportam a ideia de serem “domesticados”. Mas, às vezes, temos que fazer escolhas, escolhas de alma; o imponderável se mostra  e vão-se as obras de arte e anéis, ficam os filhos, os gatos e a paz! Mas dá trabalho, minha irmã… uma vida inteira tendo que correr com os lobos. Penso nisso, constantemente, talvez a idade tenha me trazido questões encaixotadas, tipo “Cold Case”, sabe? Sentimentos terríveis de arrependimentos e escolhas irreversíveis. “E se…” É muito cruel! 


Nesse (corajoso) mergulho íntimo às águas escuras do meu passado revejo as possibilidades de outros caminhos… e logo percebo, quase tendo uma epifania, que só me restava, em tais circunstâncias, decidir pela coerência ao que penso e sou. Banquei, e isso me trouxe até aqui. 


Imagem site Pinterest
Sou grata a mim mesma, por todas as vezes que ajoelhei no chuveiro pra chorar, pra me render…e sempre levantei. Para escrever o que escrevo, tive que fazer esse caminho, muitas vezes às cegas, fingindo certezas, aprendendo a jogar os dados da vida. Sai daí o tempero da minha escrita, tive que quebrar meus sapatinhos de cristal para aprender a andar descalça e livre. Essa “liberdade toda” tem um preço, umas vezes alto demais pra ser bancado, outras vezes, uma pechincha!


Como no poema “savoir vivre” de Myriam Scotti em seu novo livro. A narradora encontra na lucidez (autoconsciência) e na ironia fina, uma forma de impor limites aos impulsos recônditos de dominação e controle de outrem, sob pena de ser riscado, limado de  seu “moleskine vintage”…poeticamente!


Este foi o poema que, atendendo ao meu pedido, Myriam leu no lançamento de “Receita para explodir bolos”, seu novo livro de poesia lançado em Manaus e na Flip deste ano. Fiquem com ele:


savoir vivre


quando me chamaste para uma conversa

compareci (pontualmente) para o término

“cansei de ti, és correta demais

com tudo sempre anotadinho

provavelmente nos amamos ontem às oito

conforme mandava tua agenda” 

depois disso, partiste…

tirei da bolsa o moleskine vintage

para te riscar como compromisso


não estavas pronto para o meu savoir vivre


(Myriam Scotti/ in- “ Receita para explodir bolos” -2023)


Tenho certeza que a literatura feita por mulheres, seja prosa, poesia ou  pesquisa, ainda ocupará o espaço que tem por direito ocupar; a luta vai ser, como sempre, desigual, mas é nossa! E como disse Maya Angelou: 




Rita Alencar e Silva

Crônica 




domingo, 21 de maio de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A MAIOR AVENTURA TERRESTRE - Por Rita Alencar Clark


LIÇÕES DE SILÊNCIO
|08



A MAIOR AVENTURA TERRESTRE 

A primeira vez que fui mãe, um misto de alegria suprema, medo, insegurança e pânico tomou conta de mim. Apesar da incontrolável vontade de ter um filho, por duas vezes, esse sonho escapou-me às mãos…mas na terceira vez, eu me agarrei a esse sonho como quem agarra o invisível fio de prata que nos liga à própria vida. Não soltei. Aconteceu de ser envolvida por magia e beleza, meu corpo se abriu e germinou, a alquimia materna refez minhas células e a primeira filha nasceu! Victoria, um ser diminuto de olhos intensos num rosto de anjo…tive medo! Depressão pós-parto. As rezadeiras foram chamadas… "como posso ter medo de um sonho tão sonhado?!" O leite empedrou, o desespero bateu, nem rezas, nem médicos, nem emplastos reduziam a dor. Uma noite nos enfrentamos, o peito lanhado, rachado, sendo sugado com a força da fome e do amor. Lágrimas minhas se misturavam à láctea seiva vital, lágrimas de ambas se misturaram ao som do lamento murmurado, disfarçado de canção. Assim nos encontramos, minha filha, assim nos misturamos, para sempre. 

Da segunda vez que fui mãe, já quase entrando nos quarenta, já nem sonhava tanto, porém o desejo se mantinha latente, veio Miguel, meu príncipe celeste, descido do Éden pra me encontrar nesse mundo confuso. Dessa vez já não tinha tanto medo… não, minto, tinha sim, mas com experiência. A mágica se fez novamente, e inflei como um balão colorido e feliz, era festa na minha alma. Ele chegou, tão bonito, tão plácido...como minha mãe bem definiu: "olha filha, ele é todo afiladinho"…traços finos, braços, pernas compridas e fome de um pequeno leão. Não lhe faltou alimento, meu leite jorrava como cachoeiras amazônicas! Um dia, após extremo cansaço, dormi enquanto o amamentava, acordei com a chegada da babá em pânico: "Meu Deus, o pobrezinho está empanzinado!" Tratando, então, de fazer movimentos pélvicos e pequenas pedaladas com as perninhas…eu em estado de exaustão plena, só atendia a comandos: água morna, toalhas, compressas…só sonhava com uma noite inteira de sono. Mas foi lindo! Vê-lo dormindo em paz, satisfeito e limpinho era tudo o que uma mãe como eu desejava pra ser feliz! 

At last but not least…a terceira vez, quarentona inaugurante, veio Duda, a flor de setembro, sacudindo todas as certezas, raiando como um sol na minha vida. O médico, que operou minha coluna (L5 e L6) dois meses antes de engravidar, deu-me um sermão de irresponsabilidade, uma vez que rompi com o trato feito de não engravidar, pelo menos, nos próximos 12 meses. Ouvi, calada e resignada, o veredito, só vai poder engordar nove quilos! Vai fazer exercícios todos os dias, inclusive aos domingos, hidroginástica, não pode pegar peso, nem movimentos bruscos. Miguel queria colo, chorávamos os dois pela impossibilidade. Afinal, ele ainda tinha 1 ano quando fiquei grávida da Maria Eduarda…"mamã tila esse boão de você!" O "boão" era a minha barriga. Ele queria colo. Fomos em frente! Aos cinco meses consegui engordar apenas 2 quilos e meio. Cheguei ao final cravando os nove. Resultado, Duda nasceu com uma fome de loba, coitadinha! Eu, já na prorrogação do tempo regulamentar, estafada e desnutrida, pra não sobrecarregar a coluna, cumpri o prometido. 

Na primeira semana, o leite não dava conta da fome da minha filha…eu me senti incompetente, ansiosa, preocupada e não dormia. Veio a salvação, o pediatra receitou o complemento, Nan, bendito seja! Pude dormir 12 horas seguidas, finalmente. Tudo isso passou tão rápido, foi tudo tão intenso e breve, que hoje, prestes a completar 60 voltas ao redor do Sol, com todos seguindo suas vidas e saudáveis, penso que faria tudo exatamente igual novamente, assim, bem clichê! Então, que fique registrado: Maternidade é a minha maior e mais bela aventura terrestre.
Está feito!

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡

Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista,
cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

sexta-feira, 31 de março de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: HÁ TANTO O QUE SE FALAR

[Imagem Pinterest]

LIÇÕES DE SILÊNCIO|07

POR RITA ALENCAR CLARK

HÁ TANTO O QUE SE FALAR 

Ontem, não posso dizer que fui surpreendida, ao abrir as redes sociais a primeira notícia que vi foi  da moça no transporte público, indignada, com o celular do abusador na mão, gritando e denunciando o criminoso ao seu lado, o qual se mantinha impassível, como se não fosse com ele, assim como os outros homens, todos testemunhas oculares do (hoje) crime de Importunação Sexual, previsto pelo Código Penal Brasileiro e reforçado pela Lei No. 13.718/2018, com pena de um a cinco anos de prisão.


Revoltou-me, mais ainda, o fato de nenhum, NENHUM homem que estava no mesmo veículo, mesmo com provas explícitas, não se indignarem, não se manifestarem, pareciam estátuas de sal, impassíveis diante da “normalidade” do caso, afinal, isso é corriqueiro, diário, faz parte da cena urbana, do caos da vida cotidiana… pra eles né?! só pode!


Tanto tempo caladas, assustadas, acuadas, passando todos os constrangimentos e importunações, parece que nos acostumamos a “costurar” a boca, engolir o choro e a raiva, seguir em frente. Minha mãe , de certo, passou por isso ou coisa pior, nossas tias, primas, amigas, conhecidas, vizinhas…mas todas caladas. Tem um momento que calar não faz mais sentido, a mudez corrobora com  futuras agressões, nossas filhas, netas não merecem receber de nós o legado da covardia, que espécie de mulheres somos que “passa pano” para abusador, confortável em sua condição de macho predador?! Não me calo. Chega. Estou farta. Tenho medo? Diariamente. Minhas filhas estão no mundo, vivendo suas vidas com dignidade, alvos, portanto, de todo tipo de importunação. Rezo, fervorosamente, rezo para que passem ao largo desses traumas.

[Imagem Pinterest]

Uma vez, nunca pude esquecer, quando criança, devia ter por volta de 8/9 anos estava com minha mãe numa daquelas lojas de material escolar, no Rio de Janeiro, as aulas estavam quase começando e pais e  mães se amontoavam  para comprar os itens da lista em promoções. Lembro bem, centro da cidade, Casa Mattos, quase 6 horas da tarde, um empurra-empurra, gritaria, criança chorando, o caos total. Imprensada entre minha mãe e uma senhora, eu estava imóvel. Senti uma espécie de “lambida” no meu braço, mas como disse , não podia me mexer. Num esforço, puxei o braço com força, dei um grito, mas não fui ouvida, todos gritavam. Olhei para trás e vi o homem fechando o zíper apressado, empurrando as senhoras. Apertei a mão de minha mãe o máximo que pude e fiquei em estado de choque olhando aquele líquido viscoso escorrer pelo meu braço inocente de criança, sem ao menos saber o que era. Não pude falar, não pude gritar, senti uma estranha vergonha, puxei a mão de minha mãe mais uma vez e tive engulhos. Ela me levou para fora da loja e botei para fora, ali mesmo, junto com o vômito, o nojo, a angústia, a revolta e a desproteção do mundo. Tudo que queria era chegar em casa e tomar um banho, que lavasse tudo, meu corpo, minha alma, minha memória.


Quando vi a reportagem da moça no ônibus, esse mesmo engulho voltou ao meu estômago, só que dessa vez não calarei, minha mãe, guerreira que foi, a poupei de saber desse evento, mas minhas filhas não, pois esse jogo de caça e caçador não prescreveu ainda. Elas precisam estar atentas, prevenidas, fortes e prontas para lidar com os abusos até que o mundo mude. Até lá, restam-me as palavras.


Fiz este poema alguns dias atrás, não o publiquei ainda, talvez esperasse pela ocasião, talvez esperasse pelo mote. Ele veio: pela moça corajosa do ônibus, pela criança violada que fui, pelas mães acuadas, impotentes.



HÁ TANTO O QUE SE FALAR


Há tanto o que se falar de sombras

Há tanto o que dizer e nos calam

Nossos corpos, um dia de menina,  

Tanto sangraram, vazaram, reclusos nos

Pântanos da alma, feridas tantas de tempos

Passados, somam distâncias no peito oco

Entre o que somos hoje e um dia fomos.


Carregam nas mãos, sujas, inocência

E medo, alisando em mácula nódoa

A pura hipocrisia, roçam, importunam,

Desdenham e ferem. Viris. Impunes.

Flanam em festas, em bares, em becos

Buscam prazer em líquidas doses

Para amaciar, das moças, as resistências.


Um cheiro de nojo que sobe e engulha 

Rasga a carne, que nos habita e veste,

Subindo a saia sem consentimento ou pudor.

Sempre assim, por baixo dos panos, estamos sós.

Olhos que fingem não ver o que está exposto

Para depois, quando tudo se consumar, negar.

Não, não foi a saia, não foi o corpo, foi a violência!


Milênios de violação, abusos e sequestros

Transformam meninas em mulheres amputadas

Sobreviventes de um destino não traçado, cruel.

Aprisionadas por dentro, temendo expor a fêmea

Sedenta, que sempre foi, temendo seu próprio corpo

E desejo, por fim, exausta, sucumbe à invisibilidade.


Há tanto o que ser (re)visto sob o sol dos dias

Há tanto o que ser falado dessas dores e noites

Que, quando nos levantarmos todas, isso é certo,

Nossa voz explodirá numa aurora nuclear irrefreável.


Indomável.


Rita Alencar Clark 

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡


Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

sexta-feira, 10 de março de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: ADORÁVEIS MULHERES, POR RITA ALENCAR CLARK

LIÇÕES DE SILÊNCIO|07

POR RITA ALENCAR CLARK

ADORÁVEIS MULHERES 


[Eva Tudor, Tônia Carrero, Eva Vilma, Leila Diniz, Norma Benguel e Odete Lara/Imagem Pinterest]

Quando penso no 8 de Março, o dia estipulado para ser aquele que nos colocam na berlinda, Dia Internacional da Mulher, penso que o Patriarcado nos concedeu um dia por ano para que pudéssemos nos expressar! Glórias ao Senhor! Isso é sinal de que, no mínimo, antepassadas nossas lutaram e conquistaram direitos e justiça; foram ouvidas!

E nessa pegada, já me animei, eu adoro criar histórias na minha cabeça, nos lugares mais insólitos, crio situações imaginárias na minha cabeça ao ponto de rir sozinha do nada e travar diálogos criativos comigo mesma! Tenho até um conto publicado  pelo Mulherio das Letras numa coletânea. Audiometria. Minha personagem está sendo levada para solucionar possíveis problemas de surdez. Tal o nível de alienação, mergulhada no seu mundo imaginário… muitas vezes, minha protagonista se depara com os olhos esbugalhados da mãe gritando seu nome! Coisa de criança poeta! “Ah, dona, isso é coisa de gente artista, tenho um primo assim!”, diz o outro personagem , o motorista de táxi, à mãe.


Hoje, desenvolvi até uma técnica para estar, e não estar "presente", por exemplo, numa conversa chatíssima, contudo educada que sou, não interrompo, geralmente quando ouço boçalidades, escárnios machistas e/ou sexistas… é assim, eu faço uma cara simpática e cordial, respeitosa e travo contato visual, a nível íris do olho, contato feito, das duas uma, ou a criatura se perde na piada ou infâmia, ou vomita desastrosamente a narrativa, diante do meu rosto impassível. Acham-me calma, ponderada, educada de certo, quando na verdade estou em uma outra dimensão de espaço/tempo. O mote para voltar à realidade, são dois, previamente combinado com meu cérebro: o silêncio ao redor e o meu nome! Nesse retornar, acontece uma manifestação corporal involuntária: os ombros caem para frente, os joelhos dobram-se ligeiramente e as pálpebras caem, desmoronam sobre o esforço de manter o sorriso. Fico a cara da madrasta da Branca de Neve, sabe? Um horror… e saio me arrastando, imaginando as melhores respostas e caretas de indignação e desprezo! Por fora, uma lady. Meu ringue é outro, meu caro, na página em branco.


Rita Alencar Clark e Rachel de Queiroz/1992

Uma certa vez, olha que história, aconteceu de eu ter que ir e acompanhar meu pai a um Fórum de Cultura em Brasília, devia ter uns  28/29 anos, mesas e mesas de debates, palestras, lançamentos de livros, enfim, a Disney dos escritores. Nos colocaram na mesa de Imortais, entre seus acompanhantes. Quando sou apresentada a Rachel de Queiroz, que dividiria a mesa conosco. Como assim?! Não fui preparada pra esse encontro…Só que eu disse isso em voz alta!… e ela puxou uma cadeira ao seu lado. Senta aqui meu bem…que sorriso, meu Deus! Linda, um luxo de ser humano, meus olhinhos brilhavam ao ouvi-la contando da nossa linhagem Cearense, da mesma cidade, Crato, que faz divisa com Exu, ela me ensinava, “Temos o sangue dos Alencar, melhor, dos “de Alencar”. Esse “de” nos diferencia de outras linhagens. Disse Rachel, convencendo-me  a crer que somos parentes, "somos herdeiras de Bárbara de Alencar, a primeira mulher presa política no Brasil”. Nossa! "E de José de Alencar, minha mãe era prima do pai dele. Assim como o tio-avô do seu pai". Apresentações feitas, passamos a outro assunto mais agradável a ambas, receitas. Trocamos receitas, ai que delícia, ela me ensinou a fazer Ambrosia. Eu contei-lhe da Receita de “Caldeirada de Tucunaré ao Rio Negro” que fiz para Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'anna, quando fui  anfitriã num passeio de barco patrocinado pelo Governo do Amazonas. Como assessora do Secretário de Cultura, tinha que fazer aquilo funcionar, de qualquer jeito. Tudo corria muito bem, todos a bordo, quando o marinheiro me comunica que o cozinheiro não viria e não traria a água mineral. Tem cerveja? Tem guaraná? Bora, eu faço essa caldeirada, tem tudo? ajudantes? tem sim, senhora! A caldeirada foi um sucesso total ! Marina repetiu, Ignácio de Loyola Brandão se fartou, os secretários de cultura, satisfeitos. Vou até a cozinha do barco, olhos arregalados me esperam: "então, dona Rita, eles gostaram? Desconfiaram de alguma coisa?" Gente, vocês não sabem, o que tive que fazer. Não tinha água mineral pra fazer a comida. Só isso. O quê? Fulano, pega água do rio, cadê as panelas? mas vai lá pra proa, não deixa te verem. Fervam essa água, fervam bastante! E subi, levando cervejas, guaranás e bolinhos de Tambaqui fritos com geleia de Cupuaçu. Para deleite de Rachel, que gargalhava gostoso, me pedindo os detalhes da receita. Como rimos! Ela queria investigar… eles nunca souberam que comeram caldeirada com água do Rio Negro? Não! Gargalhamos mais ainda! ...e ficamos nos olhando de mãos dadas.


Agora vão saber! 


Por todas as nossas antepassadas, mães que pariram o mundo que vivemos hoje. Por elas, por mim, pelas minhas filhas, mantenho minha voz ativa, pronta, atenta. Como bem diz Adélia Prado : “...a uns, Deus quer doentes, a outros Ele quer escrevendo.”

 

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡


[arquivo pessoal da autora]
Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

LIÇÕES DE SILÊNCIO: A ERA DO AGELESS, POR RITA ALENCAR CLARK

LIÇÕES DE SILÊNCIO|06

POR RITA ALENCAR CLARK

A ERA DOS AGELESS

Tem dias que você se olha no espelho e não mais se reconhece jovem. E isso é um fato, não uma suposição,  aos olhos da sociedade utilitarista, nós somos aqueles que estão prestes a penetrar nos 60 anos, nos reconhecemos, dispensáveis, pior que isso, principalmente às mulheres, somos carta fora do baralho, nossa aparência,  seja ela qual for, será julgada, até  que nos tornemos invisíveis,  apagadas do mapa das oportunidades!

Ok, essa é  a real! Como, então, sobreviver a essa realidade sem despedaçar a sua autoestima? Sentindo todas as culpas de seu passado sobre as costas?


Aí que entra o poder de se reinventar diante às adversidades, sem surtar, ou retalhar sua alma…a certeza, que vem fazendo o que tem que ser feito, ouvindo a voz interior, não ouvindo a voz interior e quebrando a cara, aprendendo de joelhos debaixo do chuveiro, num grito mudo e convulsivo. A gente sai renovada! Pronta pra seguir em frente. Seja pra onde levar o coração… e, muito provavelmente, estarei quebrando a cara de novo… ou não! Tô  mais sabida agora!

Tudo isso porque fui ler uma matéria sobre pessoas que se auto intitulam Ageless. O que , pra mim, não passa de mais uma estratégia inócua, de pessoas que não  se sentem fortes o bastante para enfrentar o envelhecimento. Não  critico, nem julgo, mas me permito dizer minha idade, com um certo orgulho interno, uma vaidade sarcástica,  pode ser. Mas agora, faltando seis meses para fazer 60 anos, bateu um olho no olho no espelho. Um vai ou racha comigo mesma! Foi tenso. Fizemos acordos, projetos e nos comprometemos a cumprir. 


O tempo passa rápido,  não  dá  mais tempo de ser nada além de mim mesma, quem eu sou já  foi construído,  se fosse uma obra de arte seria a "Catedral de Gaudí" em Barcelona. Toda feita de pequenos cacos e artefatos. Sabe? Já  foi, de agora em diante é  aprimorar o ser que você  já  é. Ou então enfrentar as consequências de não ter tido coragem de viver a vida, mesmo que isso incluísse se atirar no abismo do desconhecido. Eu me atirei…dei o salto da fé, me taquei lá  de cima!


Portanto, tenho, sim ,direito de me olhar olho no olho no espelho e concordar com o Cazuza: "Mas se você achar

Que eu 'to derrotado

Saiba que ainda estão rolando os dados

Porque o tempo, o tempo não para"


♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡



Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: IN(-)VERSOS DO MEU VERSO, POR RITA ALENCAR CLARK


IN(-)VERSOS DO MEU VERSO - A SAGA DO LIVRO AZUL PERDIDO


           Quando recebi o chamado de Marta Cortezão ao presente projeto, de pronto lembrei do meu livro perdido por 25 anos, bodas de prata, portanto; mas para falar sobre ele precisaria retornar ao ponto de retomada da minha escrita, o que ocorreu quando estava concluindo minha pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo na PUC-Rio, concluída no ano de 2008. Evidentemente, para receber o certificado, precisaria escrever a monografia, e aí estava todo o problema. Voltar a escrever.

Em 2006, quando dei início ao curso, meu casamento estava entrando na primeira e grande crise, 10 anos de um casamento conturbado, mas, de alguma forma, feliz. Dois filhos pequenos e uma filha jovem adulta do primeiro casamento. Dava pra levar, no malabarismo emocional, no foco, atenção plena. Bem, resolvi que estava na hora de retomar minha carreira de escritora, renegada desde que se deu o sumiço do “livro de capa azul” como ficou conhecido na casa paterna. Sim, havia dado ao meu pai, escritor e poeta, a “boneca” datilografada para que fizesse as devidas correções, revisões etc. Ingenuamente, coisa que jamais me perdoei, não tirei cópia, numa era que não havia “nuvem”, nem arquivos de textos confiáveis… foi perdido entre os manuscritos tantos de meu pai quando a família mudou-se para um novo endereço. Nunca mais foi visto nem falado, o “livro azul da Rita” virou tabu, incômodo, inconveniente, prova viva da (des)organização acumulativa que imperava no seio familiar. Por anos não pude falar, tocar no assunto, tive que engolir o choro, “aguar o bom do amor” e seguir em frente. O pai, poeta, constrangido e vencido, nada dizia, sabia muito bem da minha dor, já tendo livro inédito perdido também…dor e desolação. Parei de escrever!

Foram anos de negação e isolamento, da escrita bem dizendo, porque a vida “de fora” bombava, explodia em aliterações, antíteses e plot-twists! Dez anos, especificamente, dez anos me recusando a escrever. Acho que por isso, depois da explosão da primeira crise conjugal, resolvi voltar a estudar, queria retomar de um ponto que julgava ser a minha grande recompensa, me reconhecer como escritora, afinal. Foram 18 meses de luta contra o machismo e a intolerância de meu marido, que entre sabotagens emocionais e ironias, alegava que jogava dinheiro fora com esse “cursinho de pintar porcelana”, como ele gostava de referir-se a minha especialização. Na verdade, tinha ciúmes, talvez uma ponta de inveja da minha coragem; por posse, queria-me recatada e do lar, eu queria correr com os lobos…assim fui levada pelo perigo, pela determinação e coragem. Morava na Barra, a PUC, na Gávea, tinha o Pires e o Baixo Gávea, tinha a liberdade de interagir fora da bolha. Todas as 3as. e 5as. estava lá, firme, não me deixei intimidar. A filha mais velha fazia Direito noturno, também na PUC, íamos juntas, uma farra deliciosa, inesperada, fazer faculdade junto com a filha! Não preciso dizer das brigas e confusões, armadas pelo marido possessivo, que precederam as minhas saídas de casa. Mas, com filhos cuidados, alimentados e supervisionados por uma eficiente babá, o mundo, naquelas noites de terça e quinta, era meu, só meu!

Fiz amizades intensas com colegas e professoras, deixei o medo de escrever de lado e me joguei nas narrativas, contei histórias, fiz poesia, li muito, descobri universos inexplorados e inóspitos, faz parte, não lemos apenas o que gostamos, fui confrontada, exigida, resgatada, enfim, quebrei a casca embrutecida que esmagava minha sensibilidade adormecida e rompi a crisálida.

Não raro precisava passar fins de semana imbuída em trabalhos acadêmicos, prazos e apresentações, numa dessas ocasiões já no final do curso, prestes a entregar a monografia, prestes a ter um “passamento”, como dizia minha avó quando queria nos assustar: “...fiquem quietos, parem de brigar, senão a mãe de vocês vai ter um passamento!”, entrei em pânico, achei que não daria conta diante às demandas, mas não tive o tal do “passamento”. Naquele estado catártico encontrei uma bolha de referência para respirar, lembrei de Clarice Lispector, estava lendo a sua biografia… lembrei, especificamente, da foto dela com a máquina de escrever no colo, o cinzeiro ao lado, a folha de papel engatilhada no rolo, o olhar lânguido e, imagino, o caos a sua volta! Vamos, eu disse a mim mesma, se ela conseguiu você também consegue! Para isso servem as referências, tinha que acreditar naquilo, era minha única chance. Terminei o manuscrito.


[arquivo da autora-com os pais]
Naquele ano, 2008, meu pai ainda estava bem e ajudou-  me com algumas partes do texto, na verdade achei um meio de resgatar uma história que era dele também, afinal o título do meu ensaio/monografia era “Milton Hatoum - Um breve olhar pelo Oriente-Amazônico”, a narrativa travava um diálogo entre "Relato de um certo oriente" de M. Hatoum e a obra “A casa do tempo” de outro poeta Amazônico chamado Jorge Tufic também, como Hatoum, de origem Libanesa. Essa busca e reminiscências ocuparam muitas das nossas tardes, a alforria concedida pelo marido que me deixava em paz, era uma brisa suave que invadia minha existência naqueles momentos…ríamos, meu pai e eu, das histórias contadas por Tufic, história de juventude, ambos eram amigos-irmãos, saíram de Manaus juntos aos 20 e poucos anos para descobrir o mundo, pelo bem e pelo mal, pela poesia de certo, fizeram história e hoje são Imortais da Academia Amazonense de Letras. Em contrapartida, contava-lhe das aulas que havia tido com Milton Hatoum na UFAM, em uma Manaus dos anos 80. Ele, empolgado, só dizia: “mas minha filha, isso é uma obra de criação… tem que ser publicado!” – Calma pai, ainda preciso concluir a monografia…e tirar 10! Não sabíamos, mas esse foi nosso último momento juntos, inteiros, vibrantes, onde a poesia que corria nas nossas veias vazava para o papel, derradeiramente. Ele se foi em 2011, mas desde 2009 a vida drenava-lhe as forças do corpo, o mal de Parkinson tirou-lhe o prazer da escrita à mão, assim como o prazer daqueles 3 chopes à beira mar. Tirei 10, concluí a “pós” e o livro foi publicado pela editora do Tufic, que cheio de gratidão, providenciou tudo. Não teve lançamento, a doença dele agravou-se, idas e vindas ao hospital, cirurgias delicadas, tudo foi feito…ele se foi levando os últimos versos de um soneto inacabado, uma quadra de decassílabos, ditados em transe pelo efeito da morfina…transcendeu.

Rita Alencar Clark com Milton Hatoum/arquivo autora

Rita A. Clark e filhos/arquivo autora

Voltei a escrever com fúria e dor, fiz versos para rasgar o peito, mutilar a dor, enfrentar a besta nos olhos! Nada podia me parar agora, nem eu mesma. O casamento acabou, os filhos salvaram-se de ver o pior, mas eu não, vi a fúria do homem possuidor e possuído, quase perdi a vida e a razão. Saí de casa com os hematomas, no corpo e na alma, mas levando o que era mais valioso, os filhos, os livros e os gatos, intactos.

Hoje, 12 anos após esses eventos, ainda sinto um torpor pela agressão sofrida em alguma parte recôndita do meu corpo, de vez em quando ela grita, para me acordar, me sacudir. Para não me acomodar.

Lembram do “livro de capa azul” lá do começo? Ele reapareceu durante a pandemia…minha irmã, resolveu abrir caixas de documentos em busca de algo importante e ele saltou do limbo de onde se encontrava, para este espaço/tempo, vindo de algum multiverso. Postou no grupo: “Achei o livro perdido da Rita!” - Obrigada, paizinho!

O livro de capa azul tem título: “In(-)versos do meu verso", título forjado a quatro mãos, antes de viajar pelo incognoscível. Ele foi revisado, atualizado e agora espera a hora de ser publicado, após longa viagem. Despeço-me desta viagem, agradecendo sua companhia, com dois poemas do meu livro-tesouro azul:


Espelho De Alice

 

Um dia tive um sonho

Cavalo solto, crinas ao vento

Luz de luar, luar de sangrar

A guiar-me trôpegos os pés

Bosques meus, tendas minhas

 

Escudo de Perseu oblíquo

Noite travestida de sol

Bocas em notas noturnas

Espelho invertido de Alice.

 

Quem vem me buscar?

Sequestrei-me do sonho

Crime inafiançável, hediondo

Forasteiro de além-pátria!

 

Busquei-me entre os espelhos

Sem me encontrar em nenhum

Estilhaços de mente-cuore

Cinzas de amor destratado

 

E já me tardo na dor...

Vazio de bocas e vozes

Bar aberto, copos vazios

Peitos outrora plenos e meus

Hoje negro e frio acepipe.

* _ *  * _ *  * _ *  

 

Lágrimas na chuva

 

Lá fora

os ventos levantam

Árvores e rios, levam embora

Pedaços de troncos e plásticos vazios

Escoam nossos dejetos os ventos vadios

Lá fora

o frio úmido da solidão

Varre corpos e veias expostos pelo

Caminho encharcado; roupas, calçadas, encostas ocas,

Destratados corações e bocas.

 

E eu aqui, dentro de mim,

Quente e acomodada em meu silêncio

Transbordando em aflição no suave

Encosto de almofadas macias.

Penso... Penso e me incomodo!

Estou sendo poupada de quê?

Para quê? Tenho pena, sim pena!

É triste ter pena, ter pena e compaixão

Não me elevam a posição superior!

Tenho pena de tudo que não faço,

Do meu medo, de não me envolver,

De me conformar...

Tenho tanto medo de ter pena de mim!

 

Lá fora

os ventos sopram fortes ainda

Já arrebataram esperanças e vidas

Já destruíram pontes que ligavam

Caminhos a caminhos de volta.

Lá fora a água que dá origem

Lava e leva embora gente aos cacos,

Destinos interrompidos deixando

Vidas em pedaços como um grande

Quebra cabeças desfalcado,

Rejeitado a sua própria sorte.

 

Lá fora,

como aqui dentro,

Um caos se instala de súbito

E eu sozinha, em silêncio,

Recosto-me no escuro e meto-me

Numa viagem metafísica

De Alice alucinada e real,

E deixo-me ir, em lágrimas,

Encontrar o sono do desassossego.

 * _ *  * _ *  * _ *  

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡

Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

  Clique na imagem e acesse o Edital II Tomo-2024 CHAMADA PARA O EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS: CORPO & MEMÓRIA O Coletivo Enluar...