AMOR E EROTISMO: A DUPLA CHAMA NAS PÁGINAS DE
É
tudo ficção, meu silêncio lambe a sua orelha e Fio de Prata
POR ISA CORGOSINHO
Releio algumas passagens do livro A dupla chama: amor e erotismo, de Octavio Paz, para me acompanhar
nesse pequeno artigo, que escrevo para nosso encontro em Campinas, marcado para
o final de julho de 2023.
Os livros das três autoras reforçam, na realidade
sensível, que a poesia é o testemunho do mundo dos sentidos. Um testemunho que
projeta sua veracidade nas imagens que se oferecem ao leitor como palpáveis,
visíveis e audíveis.
O que nos ensina a poesia está no real ou na ilusão? Pergunta que permeia o livro É tudo ficção, de Flávia Ferrari. A ambivalência da resposta está na sustentável fusão de ver e crer. É na conjunção do ver e crer que está o segredo e os testemunhos da poesia a serem desvelados pelo leitor, pois aquilo que vemos na poesia não pode ser visto com nossos olhos da matéria, e sim com as janelas da alma, os olhos do espírito.
FUSÃO
Percebo
as vidas soltas
Que
deixam de ser invisíveis
Quando
contemplo os pés descalços
__
Sempre os pés __
Ponto
de apoio quando caminho
Há
outro destino disponível que não a espera?
Penso
no tempo e em sua medida
Tão
legitimada e disseminada
Tão
suscetível ao espanto
Há
quase tudo por fazer
E
tantos lamentos que não alimentam nem o minuto
Octavio Paz acerta quando diz que a experiência com a poesia é a mesma que experimentamos no sonho e no encontro erótico. Na poesia de Ferrari, marcadamente no capítulo 5. Entre paredes, tanto nos sonhos como no ato sexual o eu poético abraça fantasmas, ausências, reminiscências.
O TAMANHO DAS COISAS
uma memória pode ser maior que o vento
e mesmo quando surge com todo o seu domínio
é ainda menor que o meu amor presente
o tecido que me envolve
e que agora se desmancha na fúria da sua luz
já nos embrulhou em nossas fugas
das histórias ruins que repartimos
e acatou os segredos que soubemos oferecer
esses pontos que foram se soltando
e que antes entrelaçavam as banalidades e as aventuras
e o pacto
foram alterando toda a estrutura
tivemos que nos arrancar de nós
agora que há tão pouco aqui comigo
e mesmo tirando tudo o que persiste
eu não consigo me escapar
nem no momento de maior aflição
desejei não ter vivido nossa verdade
mesmo que jamais consiga fazer parar
prometo que não escreverei mais
assim diretamente
saber-me invasiva da sua nova vida
agora me constrange
e me encerra aqui
neste ponto exato
de onde não haverá partida
A poesia de Marta Cortezão nos convida a tocar o
impalpável e a escutar as ondas do silêncio cobrindo uma terra devastada pelos
insones. O testemunho poético refrata, revela um outro mundo dentro deste, o
mundo outro – alteridade – que é este mundo.
Os sentidos aqui trabalham, sem descuidar de seus poderes, como
servidores da imaginação e nos incitam a ouvir o inaudito e ver o imperceptível.
Quem ri quando goza / é poesia / até quando prosa
{Alice
Ruiz}
desvãos
meu silêncio lambe tua orelha
e se arvora feito cobra
para infiltrar-te o veneno
meu silêncio se espicha
pelas frestas feito lagartixa
para roubar-te a fala
meu silêncio aflora
e ri que goza
quando lambe
quando cobra
quando se larga e atiça
para confundir-te as horas
e de olhos nos olhos
alimentar-te a prosa
com íntima poesia
Octavio Paz faz uma profícua relação entre erotismo e
poesia. Segundo ele, o erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica
verbal. Os dois são compostos de uma oposição complementar. A linguagem – som
que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – e é capaz de
dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é
mera sexualidade animal – é cerimônia, representação.
No livro meu
silencio lambe a sua orelha, de Cortezão, encontramos as imagens recorrentes
da chama vermelha do erotismo, transfigurada em linguagem.
Eu não nasci rodeada de livros, e sim rodeada de palavras
{Conceição Evaristo}
geossintaxe
com passos indecisos
percorro as sentenças
da língua que me devora
reviro os escaninhos
dos verbos obtusos
cuja geometria
adensa os advérbios
que florescem das pedras
meus sapatos sujos de pausas
deixam todas as pegadas
órfãs de sintaxe-delírio
onde guardei a palavra
com gosto de chuva?
onde minha língua
se entrelaçará na tua
para cópula ardente
de neologismos?
quando o sexo verbal
gozará metonímias
em teu corpo metáfora
afro afrodisíaco
Afrodite de palavras?
Na poesia de Cortezão ocorre a concreção daquilo que
afirma Paz. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora, e a imaginação é
o agente que move o ato erótico e o poético. É, afirmativamente, a potência que
transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. Observamos em sua poesia a imagem poética
como um abraço de realidades opostas, os versos livres e a poesia concreta
encenam a cópula de imagens e sons. Sua poesia erotiza a linguagem e o mundo,
porque ela própria, em modus operandis,
já é erotismo.
Diferente da mera sexualidade, o erotismo é uma metáfora do sexo animal, reafirmando o significado conotativo designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, uma invenção distinta dos termos que a compõe. Igualmente, a poesia já não aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comunicação prosaica do cotidiano como o erotismo, a reprodução.
Os sentidos do amor e do erotismo também estão
presentes no conto A metáfora do Buraco e
a Água no Rosto, do livro Fio de
prata, da escritora e poeta Margarida Montejano, do qual destacamos alguns
fragmentos.
__ Caro amigo,
Você
já teve a sensação de que está andando, ou parado e que, de repente, um buraco
se abre e sua frente e você é simplesmente engolido por ele?
[...]
Água!
Me dei conta que... minha boca, nariz e olhos estavam cheios de areia. Meu
corpo sendo sacolejado por mãos delicadas. Mãos de mulher. Água sobre o meu
rosto ela jogou.
__
Acorda! Acorda!
Disse
a voz rouca e suave!
[...]
O
perfume da mulher me inebriou a mente, a alma e, como a um sonho, as imagens se
desvaneceram. Sensação agradável tomou-me.
Respiro.
Olho meu ouvinte de olhos arregalados e pergunto:
Quem
é esse ser de meia idade abobado que acorda? Sem nome e sem história? Sem
memória e feliz com o que vê? Com o que sente?
Bem!
A misteriosa mulher ajudou-me a levantar. Olhou-me nos olhos e como a um
encantamento, me disse:
__
Eu sabia que um dia a gente iria se encontrar de novo! Que bom que você veio!
[...]
Tenho
a sensação de que uma curva do tempo me engoliu e me devolveu para esta era. Me
trouxe de volta.
__
E Ela? A mulher do perfume?
Perguntou-me
ele:
Respondo
de pronto:
Ela
é a melhor parte de mim. A minha companheira! Minha alma gêmea. A mulher que acorda
ao meu lado, dia após dia! Que me acalma e me toca com a serenidade que somente
no céu eu poderia encontrar, eu poderia sentir! Ela me completa, mas... mas tem
algo nesta história que eu ainda preciso entender.
O personagem vivencia uma experiência na qual o tempo
se entreabre e nos deixa ver o outro lado. São instantes de conjunção entre o
sujeito e o objeto, do eu sou e você é, do agora e do sempre, do mais além e do
aqui. A imperiosa imagem que está presente no conto de Montejano é a do amor,
na qual a sensação se une ao sentimento e ambas ao espírito. O personagem experimenta
um alto nível de estranhamento, uma epifania: está fora de si, lançado diante
da pessoa amada -- experiência da volta à origem, a esse lugar que não está no
espaço e que é a nossa pátria original. A pessoa amada é a um só tempo a terra
incógnita e a casa natal; a desconhecida e a reconhecida.
Ao citar um fragmento de Hegel sobre o amor, Octavio
Paz ressalta que o grande e trágico paradoxo do sentimento amoroso consiste em
que os amantes não podem se separar a não ser na medida que são mortais ou
quando refletem sobre a possibilidade de morrer.
No conto, a morte é a força da gravidade do amor. Ao
cair no buraco, o personagem encena o impulso amoroso que nos arranca da terra
e do aqui; a consciência da morte nos faz compreender que somos mortais, feitos
de terra e a ela temos de voltar. A unidade compacta se rompe em dois e o tempo
reaparece – é um grande buraco que nos engole. A dupla face da sexualidade
reaparece no amor: o sentimento intenso da vida é indistinguível do sentimento
não menos poderoso da extinção do apetite vital; a subida é queda, e a extrema
tensão, distensão. Dessa forma, a fusão total implica a aceitação da morte.
Ao seu atento interlocutor, o narrador solitário
ensina que amor é vida plena, unida a si própria, o contrário da separação. Ao
sentir o perfume e as mãos da amada em estado epifânico, ele reencontra o
abraço carnal. A união do casal se faz sentimento e este, por sua vez, se
transforma em consciência: o amor é o descobrimento da unidade da vida.
O narrador, o mar e a areia nos permitem a reflexão
poética de que somos tempo, nada é durável.
O amor não vence a morte, mas a integra na vida. A morte da pessoa amada
confirma nossa condenação: viver é um contínuo separar-se, mas, paradoxalmente,
na morte cessam o tempo e a separação: regressamos à indistinção do princípio,
a esse estado da cópula carnal. O amor é
o regresso à morte, ao lugar de reunião.
Os poemas e conto aqui trabalhados, neste breve texto,
estão em fina sintonia com importantes passagens do livro de Octavio Paz,
principalmente em consonância com a magnífica imagem do fogo, elaborada por
ele: a chama é a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal. O
fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo
e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor. Erotismo
e amor: a dupla chama da vida.
Referências bibliográficas:
CORTEZÃO,
Marta. Meu silêncio lambe a tua orelha.
Curitiba: Eu –i, 2023.
FERRARI,
Flavia. É tudo ficção. Curitiba:
Eu-i, 2023.
MONTEJANO.
Margarida. Fio de Prata. São Paulo:
Scenarium, 2022.
PAZ, Octavio. A dupla chama – amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
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