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terça-feira, 8 de novembro de 2022

ELES LEEM ELAS: DESTINOS DESDOBRADOS, DE TERE TAVARES, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 


ELES LEEM ELAS|14


DESTINOS DESDOBRADOS, DE TERE TAVARES

 POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS

 

É possível conciliar o espírito da poesia com as formas da prosa? Foi pergunta semelhante, mas bastante esclarecedora, que Charles Baudelaire considerado como o responsável por uma guinada decisiva na poesia moderna, dirigiu em carta a um editor de seus textos, ali por volta de 1861: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.

Desde então e, cada vez com mais frequência, os escritores(as) têm produzido uma escrita algo arbitrária, despida de formalidades de composição, e com o espírito próximo da anotação íntima. Parece-nos que um impulso reflexivo serve de meio condutor para despertar imagens e ideias. E temos afinal, uma abordagem ao mesmo tempo lírica e incomodada, atenta às subjetividades e ao mundo ao redor sem, no entanto, deixar de estar relacionada com as qualidades da prosa; por isso mesmo, apresentando tendências voltadas para acolher textos maiores – narrativos ou não –, mesmo que procure fixar um olhar lírico sobre a realidade. As frases e parágrafos acabam por supor uma dinâmica extensiva para o texto e as imagens evocadas.

 

[Foto aquivo pessoal da autora]

A palavra perde seus contornos unívocos, e torna-se multisignificativa, irradiadora de significados variados. Com o andar da leitura, percebe-se o caráter de prosa desses textos – presente em tênues fios de enredos e nas conjecturas das personagens, interessadas em resgatar fatos e sentimentos que envolvem o fio narrativo. Textos em prosas poéticas que eventualmente, recorrem a figuras típicas da poesia, como a aliteração, a metáfora, a elipse, a sonoridade das frases etc. Contudo, o emprego desses elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discurso.

Destinos desdobrados, da escritora e artista plástica Tere Tavares segue tal seara de fortes conotações poéticas embasadas na preocupação com o humano e em refinado trabalho com a linguagem, que permitem considerar os textos como prosa poética. Poéticos porque são textos que não se fecham num sentido único, ao contrário, abrem-se ao final da leitura e apontam para o infinito, para o futuro e para dentro do “eu”. Faz-nos meditar sobre o penoso e solitário trabalho de aperfeiçoamento da consciência individual, conseguido graças à contemplação atenta do mundo e à investigação minuciosa dos submundos que compõem a alma. Trecho do texto “Maria Pedro”:

 

Arte: Tere Tavares, 'Beija-flor com flores vermelhas'- óleo sobre tela- 18 x 24 cm- 2019
[Foto arquivo pessoal da autora]


Escrevendo como se falasse, eu lhe permito confiar em dados diferentes, em escalas de conflitos insuperáveis e frases finais. Ensino-lhe a ver a dor maior para que ele sinta a sua dor diminuir. Abasteço-o com arquejos inéditos como um alfabeto infinito, onde cada soluço propõe uma nova música. Ele se entretece nessa leitura como um estudo de concordância às normatividades vibracionais capturadas quando se cola os ouvidos ao chão fechando as pálpebras. Isso supera avaliações de forma ou conteúdo. Eu lhe permito um sinal para outras fronteiras, a interpretação mapeada das catástrofes desconhecidas, das monumentais ideografias que completam a paisagem involuntária da sua própria luz; bastam-me esses voos que evolam de mim por puro deslumbramento”.

Se alguns textos se recolhem ao silêncio de confissões envolventes, outros guardam, todavia, uma atitude de provocação libertária, sobretudo naqueles que, de alguma sorte, tocam no sentir feminino e nas tantas e tamanhas violências que as mulheres ainda hoje padecem, e que ao final das contas acabam por se constituir nas “lost voices” do mundo. E isto percebemos já a partir do título da obra que se caracteriza por uma intenção manifesta. Desdobramentos da alma feminina. Percebe-se nitidamente a centelha de inquietação de uma prosa levada ao estado da poesia, mas sem abrir mão do plano narrativo. Verdadeira simbiose entre os gêneros tradicionais. Alquimia entre prosa e poesia.

 

[Foto aquivo pessoal da autora]

Mas isto também se faz por uma tendência meditativa que vai se acentuando e constituindo linha de força da produção da autora. O pendor reflexivo desdobra-se num leque de muitas faces, afinal. E pode mesmo prescindir da centralidade do sujeito lírico, articulando um ponto de vista que se entremostra oculto sob um fluxo de frases impessoais, e de que são exemplos flagrantes, textos como: “A feminina arte de nascer”, Notas de amor de uma mulher em muitas”, “Hino às obras inversas”, “Deméter”, “Filhos de papel e tinta”, “A arte não conhece o impossível” e “Sobre o filho de José”. Já na segunda parte da obra sob o título de “Outros destinos ou ensaios dos fins” que, dentre outros aspectos, foca no perpassar do tempo em nossas vidas, merecem destaque textos profundamente reflexivos como o são, “Nada precisa ser perfeito”, “Ensaio dos fins”, “Amulherquedesejaser” e “Translúcida”.

Para o espírito reflexivo interessam mais as ambiguidades e torções de sentido; são mais adequadas as palavras da ironia, do jogo de contrastes ou da liberdade associativa. Desvios que a linguagem poética produz para se afastar do imaginário comum. Acionado pela força do detalhe ou do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o procedimento reflexivo costuma recorrer aos valores elementares – sensações, sentimentos, percepções –, com o propósito de expressar determinada condição. Qualquer coisa ou ser, têm o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de imagens.


[Foto arquivo pessoal da autora]

Saliente-se finalmente, que a atitude meditativa que prevalece em boa parte dos textos não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. Ao contrário, essa mesma visão crítica recusa os mecanismos sociais que banalizam a linguagem e continua desejosa de uma expressão outra, em que seja possível uma linguagem pessoal e ao mesmo tempo comprometida com a experiência vivida. Sem dúvida uma atitude geral que tende à uma concepção Holística da vida, uma forma de se ver a si mesmo e de ver o mundo e todos os seres de uma forma global, como um todo, onde tudo está interligado, onde nada é isolado, tudo pulsa simultaneamente, onde o todo está presente em cada parte. Não existe nada desligado, isolado. Uma maneira de ver que cada ser humano está diretamente conectado com todos os seres humanos e com todas as demais coisas do universo.

Num mundo que está passando por tão rápidas mudanças em todos os sentidos, seja nos avanços tecnológicos, seja nos costumes e crenças, é de suma importância adquirirmos uma visão ampliada e um entendimento maior da vida. A autora ao caminhar rumo às sombras que existem no interior do ser e que guardam os mistérios primordiais, aposta no profundo poder da arte para transformar o indivíduo e incorporar poesia à vida humana, para que esta se transforme num poema contínuo e numa encantada realidade. Positivamente soube urdir textos que arrebatam o leitor numa torrente de símbolos, imagens e significados.

Krishnamurti Góes dos Anjos

Escritor e Crítico Literário

 ☆_____________________☆_____________________☆


Tere Tavares nasceu em São Valentim, RS, é escritora e artista visual. Reside em Cascavel, PR. Autora dos livros Flor Essência, Meus Outros, Entre as Águas, A linguagem dos Pássaros, Vozes & Recortes, A licitude dos olhos, Na ternura das horas, Campos errantes, Folhas dos dias, Destinos desdobrados e Diário dos inícios. Participante de 17 antologias e coletâneas no Brasil e exterior, algumas resultantes de concursos literários. Os livros Campos Errantes e Folhas dos dias, foram contemplados pela Lei Aldir Blanc, Edital Arte em toda Parte 2020. Possui publicações em diversas revistas no Brasil e exterior. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Blog: http://m-eusoutros.blogspot.com.




Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo - Romance Histórico, Gato de Telhado - Contos, Um Novo Século - Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Participação em 27 Coletâneas e antologias, também em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Sharlene Serra, em Palavras e Trajetórias




 Mulheres & Trajetórias/01


Para ouvir o podcast do poema, clique AQUI.


Intensa


Meu nome é 

exagero

Sobrenome

superlativo

 

Nada é simples

ou pequeno,

tudo vasto

e divino

 

Lentes captam as palavras do dia

o "sou" irradia o lado

ampliado da  poesia

 

"Sol" maturidade

intensidade que se

oscila entre rios de risos,

lágrimas 

ousadia e

dores

 

Ignoro o raso

do vaso

busco o profundo

na alma das flores

 

Sou intensa

escrever  é lenha

nada é morno  ou

diminuto.

 

"Pólvoro" em segundos

Não escondo o percebido:

Meu olhar

é ampliado

Exponencial

voa além e

propaga  infinitos.

*** 

Sharlene Serra é especialista em Educação inclusiva, educadora, palestrante, escritora e poeta maranhense e vem conquistando uma carreira consistente na literatura, mediante um olhar social e transformador.

Possui como trabalho pioneiro a "Coleção Incluir", composta por 5 títulos  iniciais, que  abordam sobre a inclusão das pessoas com deficiência, onde apresenta, nas histórias, um convite que se abre a inúmeras formas de aprendizagem.

Em cada livro, passeia na simplicidade daquilo que precisa ser informado e, como poeta que é, costura sensibilidade em cada história.

Na coleção "Olhando com Ritinha", a personagem com deficiência visual enxerga com o coração; no "Ouvindo com Vitória", ela ouve com os olhos e fala com as mãos;  no "Caminhando com Paulo", o personagem caminha girando sua cadeira de rodas e ensina sobre acessibilidade  atitudinal; no "Aprendendo com Biel", a personagem  com síndrome de down, nos ensina que ninguém aprende igual e no "Interagindo com Lucas", a personagem nos mostra que existem várias formas de sentir o mundo. É  nessa forma lúdica e poética, que Sharlene descreve a COLEÇÃO INCLUIR. A coleção passou a ser fonte inesgotável do aprendizado das convivências, onde reconhecer o outro, exercitar a empatia, o respeito às diferenças e aos valores morais são objetivos fundamentais do projeto, já que visa conscientizar e humanizar toda a sociedade, trabalhando, através da literatura, a inclusão.

A literatura da escritora Sharlene Serra tem um olhar social e transformador e, além da "Coleção Incluir", ela nos apresentou outro aspecto importante,  que precisa ser abordado , o tema sobre abuso infantil que consta no livro “Diário Mágico - um segredo para contar", o qual pode ser considerado como uma ferramenta de proteção às crianças. O livro faz referência também a um ‘diário’, como forma de resgate das memórias, da história e da escrita. E no final da obra, ela traz uma lista dos órgãos responsáveis para a efetivação de denúncias de violências contra abusos infantis.

Sharlene Serra é membro da APB Academia Poética Brasileira de Curitiba, Vice presidente da Associação de jornalista e escritoras do Brasil-MA , Membro da União Brasileira de Escritores e da Associação de Cultura Latina.

A autora esteve nas Bienais do Livro do Ceará e Pernambuco e Fortaleza,  recebeu menção de aplausos sendo inspiração para o dia municipal da Literatura inclusiva. Possui participações em várias Antologias. Os livros estão  nas escolas particulares de São Luís e de outros Estados.

Sharlene Serra foi uma das 25 homenageadas pela biblioteca Pública Benedito Leite,  recebeu o certificado de reconhecimento pela OAB pela sua atuação na defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, e recebeu o certificado de homenagem “Amiga da Leitura Maria Firmina dos Reis”, através da rede de Bibliotecas Comunitárias, ilha Literária, pelo reconhecimento da sua atuação em prol da literatura infanto-juvenil. Em 2018, foi homenageada com o prêmio Estrela Literária Recife-PE. Em 2019,  recebeu prêmio Monteiro Lobato em Búzios, na categoria Melhor livro de inclusão. Escritora homenageada da FLICT, Feira de Livro de Caxias-MA. 

Seu livros foram mencionados, em rede Nacional, no programa "Encontro", de Fátima Bernades.

Lançou  pela editora Penalux o livro "Espelhos de Eva" (2019), que aborda o universo feminino. Participações em Antologias 2020: selecionada pela editora Trevo, pela “Coletânea Enluaradas I: Se Essa Lua Fosse Nossa”, pelo Mulherio das Letras, prêmio Literart  de Melhor Prosa Poética, entre outros.

Sobre planos, Sharlene Serra entrará em 2021 no mercado digital com novas histórias em e-books, além de livros impressos voltados para literatura infantil e outro sobre poemas autorais.

Ela nos diz: Escrevo o que vejo, ouço ou vivencio em mim ou nos outros. A minha escrita pulsa.



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

ELES LEEM ELAS: UMA GUERNICA INACABADA, POR ODENILDO SENA



ELES LEEM ELAS|07

"Uma Guernica Inacabada", de Myriam Scotti 


Por Odenildo Sena


Há livros que fisgam o leitor pelo arranjo envolvente da linguagem simples, despida de grandes pretensões metafóricas. Livros outros há que fisgam o leitor pela engenhosidade da trama, com pontos de intersecção que calam fundo na alma de quem o lê. No primeiro caso, muitas vezes o leitor empreende a travessia se sentindo recompensado, mas ao final do livro é invadido por uma estranha sensação de incompletude, daquelas que o fazem pensar que faltou alguma coisa para fechar aquela jornada. No segundo caso, atraído pelas pequenas pistas que o escritor vai deixando ao longo do caminho, o leitor avança com ambição rumo ao propósito de desvendar a trama, mas ao final se dá conta de que a travessia bem que poderia ter sido menos sofrida, se embalada pelas ondas de uma linguagem gostosa e cativante. É claro que eu estou falando de leitores chatos!


Pois nesses dias me caiu nas mãos um livrinho (no sentido carinhoso mesmo, porque também de leitura rápida) que me encantou pelas duas virtudes ao mesmo tempo: a linguagem simples e envolvente e a trama absolutamente sedutora. Quando bati os olhos nas primeiras linhas do texto, logo abandonei meu espírito de leitor comodista. Dali por diante, deixei-me conduzir pelo prazer da leitura:


“Sofri um AVC. Um infeliz acidente vascular cerebral do tipo hemorrágico. Não voltei mais da escuridão profunda a que fui condenado durante dois meses, até o meu corpo esmorecer por completo a fim de cumprir o ciclo de retornar ao pó.”


Com esta incrível concisão, que cabe em apenas três frases, Myriam Scotti não apenas fisga o leitor, como também traça para ele todo um feixe de expectativas a serem percorridas e vividas até o final do romance, que, a princípio, mas só a princípio, lembra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do velho Machado de Assis. A autora cria uma vertente narrativa bem particular. Concede à personagem principal a prerrogativa de transformar o quarto de uma UTI em um espaço de recorrentes sessões de análise, onde, mediados pelo silêncio dos interlocutores, cada um é terapeuta de si mesmo. É nessas circunstâncias que, embora em estado de coma, o narrador acompanha de sua profunda escuridão um verdadeiro desfile de confissões, desabafos, reconsiderações e arrependimentos que, se nada representam para ele, que não mais retornará do coma, acabam por impactar a vida dos que ficam, como sua mulher, seus filhos, seus pais adotivos, seu irmão e, até aquele momento, seu suposto melhor amigo. Mas esse diálogo, mediado pelo silêncio, como eu afirmei acima, é apenas um pouco do muito que o romance proporciona aos leitores mais exigentes. Ou chatos mesmo.


Por outro lado, além das duas virtudes que a Myriam reúne em seu romance, há uma terceira que merece consideração: a inteligente escolha do título, num simbolismo que perpassa todas as páginas do livro. “Uma guernica inacabada”, em referência à famosa obra de Pablo Picasso, ao mesmo tempo em que pode sinalizar as diversas fraturas, muitas das quais expostas, daquelas vidas que se reencontram na UTI de um hospital, permite também a viagem em inferências que evidenciam a incompletude de suas existências, aflorada naquelas confissões em que, diante de um morto-vivo, não há razão para não dizer a verdade.


Por fim, conhecendo meu espírito comodista de leitor, que exige muita provocação para se animar, posso dizer com segurança que “Uma guernica inacabada”, da Myriam Scotti, é leitura certa para quem gosta de se deixar seduzir por uma linguagem simples e cativante, por uma engenhosa trama na narrativa e por um título inteligente e oportuno.




terça-feira, 26 de janeiro de 2021

LIVROS & ENCANTAMENTOS: FÚRIA, LUXÚRIA E DOÇURA NA POÉTICA VIGOROSA DE ANNA APOLINÁRIO, POR ROBERTA GASPAROTTOna Apolinário



'A Chave Selvagem do Sonho', Anna Apolinário/05





Ao término da leitura de "A Chave Selvagem do Sonho", entendi qual foi a motivação do instigante título (ou, pelo menos, acho que entendi).

Todos os sonhos são puros e líricos, porque intrínseca e visceralmente nossos, e esse lirismo está presente em toda a escrita de Anna. Mas não só. Para a autora, apenas o lirismo não dá conta da complexidade em que nos constituímos, e eventualmente, nos consumimos (em fogo). Para acolher a diversidade de que somos feitos, Anna convoca os seres mais primitivos e naturais para habitarem sua poesia:  como se, somente ao integrarmos o nosso lado animalesco e instintivo, é que pudéssemos acessar o mais íntimo em nós - e é exatamente nesse ponto que reside a chave (selvagem) dos nossos sonhos.

Não por acaso, seus poemas são repletos de criaturas ferozes: cães, serpentes, chacais, escorpiões. A autora convoca esses animais selvagens para ajudarem a dar conta da febre furiosa que nos invade a todos e, "queima a pele".

A pele, por sua vez, está bastante presente, tanto nas belas figuras que constam no livro, quanto nos poemas. A pele que queima é a mesma que cicatriza. A mesma pele que dói, também provoca imenso prazer. Nossa epiderme é o órgão das trocas, onde o mundo interno e o mundo externo se delimitam e se interconectam, ou seja, lócus do paradoxo por excelência, e Anna Apolinário se vale dessa simbologia com muita competência.

O espelho é outro elemento que aparece bastante em seus poemas. No caso da autora, seu espelho é a palavra, que, como ela mesma diz em seus versos: "transita e transborda, salta entre as páginas".

Sua palavra é feroz, lírica, incandescente, e por vezes, tudo isso ao mesmo tempo: o que constitui para o leitor um mosaico interessantíssimo de sensações, percepções e imagens.

Para ouvir o PODCAST dos poemas, clique AQUI.

Elã

Escrever.
Como quem
enlouquece
e possesso
procura Deus
dentro dos espelhos.

***

Insurreição

Um raio corrói o cerne da beleza
Fúria de quimeras calcina os céus.

Bosques suspensos,
sedução e o sussurro das feras.
Presságios do calígrafo.

O poema,
chacal ferocíssimo
farejando jugulares.

Como quem ressuscita,
subversiva,
sonha, escreve.

***

Enlevos

Teus dedos em secreta expedição
pelas minhas planícies incendiadas.
Os olhos sussurram em cobiça e tocaia
e as luzes todas deslizam ao redor de nossa dança.
Minhas ancas ondeiam em doce desvario,
as coxas envoltas em negras, sedosas,
perigosas redes arrastando-te
aos viscosos véus de minha carne acesa.
Teus lábios alvoroçado a selva de meus seios,
o corpo, em cálice e combustão, 
oferecido à loucura suculenta de tua língua.
Uma serpente bailando ao sabor de meus açudes,
enquanto reviro-me escaldante,
um rio palpitante sob tuas papilas.

***

Para conhecer mais sobre a autora e adquirir sua obra, clique AQUI








quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

LIVROS & ENCANTAMENTOS: A LIBERDADE QUE VEM DA IDENTIFICAÇÃO, POR ROBERTA GASPAROTTO



LIVROS & ENCANTAMENTOS/04

'CARTAS QUE NAO ESCREVI", DE MARIA ALICE BRAGANÇA 


POR ROBERTA GASPAROTTO


Em "Cartas que não escrevi”, da poeta gaúcha Maria Alice Bragança (Editora Casa Verde, 2019), o eixo temático de seus poemas se encontra naquele tempo espaço tão conhecido, quanto inefável, de algo que aconteceu, e se perdeu, ou, inversamente, do que não aconteceu mas fica entranhado dentro da gente. É um livro de desencontros, muito mais que de encontros; de perdas, muito mais que ganhos e, de melancolia, muito mais que alegria. E isso só faz os poemas de Maria Alice ganharem mais potência e verdade. Em meio a tantos desencontros, uma saída: a vida. Aquela comezinha, corriqueira, bem do dia a dia. A leitora e o leitor nem precisam chegar ao final do livro, para experimentarem uma incrível sensação de liberdade, que só a identificação pode oferecer: Maria Alice sabe que o constante espanto com o mundo é o nosso pão de cada dia, e cada qual que encontre o seu refúgio, sempre provisório e a ser recriado, todo santo dia.


Para ouvir o PODCAST clique AQUI.


Fotografia desbotada

No olho da menina,

retina, a imagem farta,

(retida)

da vida que ainda não vivi.


***


Teia


Onde está o meu amor?

Sonha comigo? Ou contempla o seu umbigo?

Em que cidade, em que pensamento, se perdeu nesse momento?


Teço fios para laçá-lo

Antes que o lirismo me sufoque.

Penetro o sonho do meu amor,

Pensando nele

... e lixando as unhas


***


Um sentimento/Incomunicável


Só nós dois sentimos o que sentimos.

Estamos sós.

Não há discurso possível.

A palavra é sempre passado.

Um real que não volta,

Um eu que é sempre outro.

Discurso fadado a descrever cadáveres

Do que se foi, 

Seguimos, mórbidos,

Falando sobre nós.




quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

LIVROS & ENCANTAMENTOS: O CORAÇÃO É UM MÚSCULO QUE PULSA, SENTE E PENSA - CONSTANTEMENTE, POR ROBERTA GASPAROTTO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/03

'O CORAÇÃO PENSA CONSTANTEMENTE', DE ROSÂNGELA VIEIRA


POR RBERTA GASPAROTTO


Qual o gostinho de ser uma das primeiras leitoras a ter acesso a um livro profundo e ao mesmo tempo delicioso? Eu pergunto e eu mesma dou a resposta: me senti como tendo a chave para abrir um tesouro, o que é bom, e ao mesmo tempo, senti uma responsabilidade danada sobre o que fazer com o tesouro recém descoberto.  

Nessas minhas reflexões sobre 'O Coração Pensa Constantemente', da nossa querida Rosângela Vieira Rocha, lançado pela editora Arribaçã, espero que eu faça jus (nem que seja um pouquinho) à imensidade da obra. 

Em uma época em que muitos usam a faculdade de pensar com o objetivo de travar batalhas e ganhar discussões, Rosângela nos convida a usar essa importante ferramenta com o objetivo de estabelecer conexões.

O coração da narradora do livro, Luísa, é um músculo que pulsa, sente e pensa, constantemente. É a partir desse pensar-sentir, ou melhor, sentir e pensar sobre o que sente, que ela refaz caminhos e , principalmente, revivifica suas relações de afeto.

Em suas ações, a narradora realiza uma deliciosa e inteligente subversão, ao inverter a equação tão em voga em nossa contemporaneidade: de uma vida em favor da racionalidade, para a racionalidade em prol da vida e dos encontros.

Seu pensar é sempre a partir do coração, e é com esse recurso que Luísa procura entender o mundo, suas emoções e, também, o outro.  Sendo que o outro mais especial, é sua irmã Rubi. 

Há momentos belíssimos , e alguns muito engraçados, dessas duas irmãs que nutrem profundo amor entre si, mas não só. Como humanas que são, outros sentimentos também comparecem em cena, e Luísa usa de sua extraordinária habilidade de pensar os sentimentos, para dar conta de desenrolar muitos nós cegos. 

Preciso dizer que Rosângela foi muito generosa com seus leitores: através de Luísa temos a oportunidade de refletirmos sobre como anda nosso sentir-pensar-agir. Mais que isso: aos interessados, Luísa aponta, de certa forma, o caminho das pedras.

Além disso, as emoções são, no meu ponto de vista,  a personagem principal do seu maravilhoso e potente livro: há que se ter a coragem de investigá-las, e muitas vezes enfrentá-las para seguir em frente e não estagnar no caminho.

Ao fim da leitura, temos a confirmação de que o esforço da narradora em  percorrer seus percalços,  e em aceitar os tropeços alheios, deram frutos.

Em uma das frases finais, Luísa reflete sobre a vida, e também, sobre a morte, que um dia inevitavelmente virá, assim como veio para uma das pessoas que ela mais amou, sua irmã. 

Ao final, a narradora acolhe com bravura tanto a sua vida, quanto a sua morte: serenidade e maturidade alcançadas só para quem viveu uma existência que fez sentido para si.




terça-feira, 5 de janeiro de 2021

ELES LEEM ELAS: RASGA OSSOS, POR MARCELO FROTA


Rasga Ossos, de Sabrina Dalbelo/05

 

Por Marcelo Frota

 

Rasga Ossos é um livro de reflexões, de questionamentos. É uma obra de imagens, uma sucessão de estranhamentos. É soco no estômago, um desalento. É palavra/evolução, uma montanha-russa, um espaçamento.

Eis o novo livro da autora gaúcha Sabrina Dalbelo, (Penalux, 2020), que adentra no universo literário em um ano em que nada foi lugar-comum, em um tempo em que a arte se entrega a seu papel máximo, ou seja, retratar o tempo presente. Rasga Ossos é tempo presente. Também passado, também futuro.

 

A poesia presente na obra, segundo a própria autora, é um resultado de encontros e desencontros. Entre conhecidos e estranhos. É, aos meus olhos, um reflexo de experiências e vivencias. Um algo familiar entre os estranhamentos dos caminhos da vida. É como um filme de Ingmar Bergman, uma jornada entre a leveza e o lado mais sombrio de uma jornada que nem sempre tem um começo definido, ou um fim estabelecido, mas que em seu meio, se faz matéria de reflexão e silêncio.

 

No poema Cicatriz é artéria pulsante, Sabrina faz uma reflexão divertida e profunda sobre os caminhos da tristeza. A autora constrói por meio de frase envoltas em simplicidade um lamento que nos remete a encontros com presente/passado. “A tristeza é uma amiga. É ferida que deve ser sentida, vivida. Tristeza é para ser abraçada, doída”.

 

Sim, a tristeza é amiga, é companheira, é constante. A tristeza é o intervalo da felicidade. Aquela visita indesejada, que sempre aparece, e, muitas vezes, fica além da hora. Mas que quando vai embora, alivia o clima da casa, tira o peso do corpo. É como cantavam Tom & Vinicius: “Tristeza não tem fim, felicidade sim”. Tristeza tem intervalos, às vezes curtos, às vezes longos, mas fim não tem. Tem recessos, tem intervalos.

 

Em Medo da vida, poema que remete a preocupações, anseios, receios, paranoias, Sabrina Dalbelo faz um desafio aos medos que estão no íntimo de todos nós. “Quero falar do medo de receber resultado de exame, de vislumbrar um futuro de medicação, fisioterapia, de tratamento, hospital e de, todos os dias, se perguntar o porquê, por que você, por que a estatística veio lhe pegar”.


Viver é ter medo da morte? Medo da doença? Medo da ruína do corpo? Da falha da mente? Viver é uma sucessão de medos, uma eterna estrada de pequenos receios. Ter medo da vida é ter cautela? Não, ter medo da vida é não viver, é não deixar o acaso se tornar real. Não deixar o sonho se tornar palpável. Ter medo da vida é não deixar a vida ser vida, vivida, desfrutada. A morte é natural, e, como disse Cazuza: “Morrer não dói”. Digo eu, “viver dói mais”.

 

Em Na teoria o céu é azul, a tortuosidade da vida cotidiana é matéria para versos “fofinhos”, que escondem, por trás de sua aparente doçura, a brutalidade da realidade do nosso tempo. “nas nuvens branquinhas que pairam no azul/céu azul o passo é manso/o sonho é carinho de mãos firmes/a brisa é fresca como limão taiti”.

 

Nas esquinas das ruas da vida, o mal que ronda por nosso tempo se faz presente. A doença que infesta nosso planeta, o descaso do nosso governo, a incapacidade e desumanidade o presidente “Mito”, o descaso com o que é minoria, a desgraça de viver em tempos em que o homem agride seu semelhante, mata seu semelhante pela cor, pela orientação sexual, pela diferença. O poema “soco no estômago de Rasga Ossos para mim.

 

Em meio à densidade da poesia da Sabrina Dalbelo, termino com a doçura agridoce de Mulher-goiaba: “mulher não escreve memórias/em papel de seda ou de presente/calada/tem filho/faz goiabada”. Lygia Fagundes Teles, a homenageada com o poema, acredito eu, ficaria feliz.

 

Rasga Ossos, como antes mencionei, é um livro para reflexões. Reflexões profundas, e como toda reflexão, ora leva, ora sombria, mas sempre relevante. Leitura de uma vez só, para depois ser revisitada, redimensionada, reinternalizada. Uma jornada de intensidade.


 


quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Dançando pela vida


Conto/03

 

Por Janete Manacá

 

Naquela tarde a chuva já havia me presenteado com a beleza de suas gotas cristalinas que ao cair sobre o chão exalavam um agradável cheiro de terra. Poderia ser um dia comum, como tantos outros, não fosse o meu primeiro encontro com a dança contemporânea.

Aos meus olhos, a dança sempre foi algo que de tão extasiante me provocava vertigens. Ao som da música e os passos milimetricamente pensados antes de serem executados era a perfeição em movimento. As bailarinas, delicadas, esbeltas, feito porcelanas, denotavam uma beleza inigualável, era algo quase surreal.

Nunca me reconheci naquele padrão que parecia ultrapassar os limites da realidade. Mas naquela composição do esteticamente belo havia muitas pessoas do outro lado da margem social que não se enquadravam na estética exigida para ser integrante de uma companhia de dança.

Eu era uma delas. Enquanto assistia aos espetáculos de dança havia em mim um encanto frustrado por acreditar que jamais chegaria àquele espaço. A começar pelo biotipo, as condições financeiras e o tempo necessário que era empregado no labor para a sobrevivência, em detrimento da arte.

Mas de repente, você se encontra com um grupo diferente. Cada qual a habitar um corpo único com suas dores, limitações e histórias, mas um corpo que se move, luta, sorri e comove. Então você se dá conta de que um infinito de possibilidades habita dentro de você.

Neste grupo, eu presenciei a boniteza de expressões de vários corpos, cada qual com a sua poética singular e expressiva. Vi gato, leopardo, beija-flor, águia, falcão, ventania e furacão. Eu vi e senti o desejo de entrega no peso de cada gesto em busca de leveza e superação.

Havia corpos atrofiados, profanos, sagrados. Mas, também, corpos que resistiam e insistiam para além de imposições por se reconhecerem como um universo dentro de outro universo. Continham neles um poder imenso de super(ação) que os remetiam à metamorfose da lagarta à suavidade da borboleta. Cada qual com sua potência efêmera, porém, bela, necessária e essencial.

O que não me ensinaram é que independente de estar numa oficina, estúdio ou academia, o destino de cada ser é dançar. Mas uma dança sem reconhecimento e sem aplausos. É a dança da vida pela sobrevivência. Nossos corpos se movimentam na dança ao som do preparo do alimento. Durante o banho ao ritmo das águas que caem sobre ele. Nos manifestos de reivindicações nas ruas. E suavemente quando embalamos os filhos nos braços ao som amoroso de cantigas de ninar...

Há que se ter urgência em se desvincular desse cotidiano autômato ou então perderemos boa parte das melhores produções artísticas executadas frenética ou suavemente nas atribuições do dia a dia.

A cada movimento da dança eu me movia pelo desejo de decifrar cada gesto do corpo até então dormente. Transpirei muito, como quem rasga o próprio ser e expulsa as más águas ali represadas pelas frustrações no decorrer da vida. A mesma música era lançada muitas vezes para que cada um buscasse o seu patuá de memórias e, enfim, percorresse a própria estrada e oferecer a sua graça, beleza, medo, impotência e tudo que de forma conveniente ou inconveniente lhe afetava.

Para cada parte do corpo ainda dormente era dada a possibilidade de despertar. Era necessário ousar e esvaziar-se para enfim expulsar os adjetivos cruéis que muitas vezes nos são impostos durante o tempo que aqui permanecemos. Por sorte, minhas primeiras experiências se passaram no outono: tempo propício para se trocar a pele que nos habita impregnada do que não serve e deixar ir, no ritmo da ventania e nos impregnarmos de maturidade, que é a qualidade dessa estação.

Ainda que o meu corpo tenha dormido por tantos anos, é chegado o tempo de despertá-lo para se adaptar a uma nova pele e ousar os mais belos movimentos para enfim dançar, dançar, dançar... de forma a encantar os olhos do mundo.

Percebi que é impossível prosseguir a vida sem dançar. Então seguirei dançando a indignação, o descontentamento, as frustrações e a esperança, até os nossos corpos expandirem as asas e finalmente voarem numa coreografia cósmica e transcendental. Que os sons dos tambores que reverberam no labirinto interno do nosso ser possam nos manter acordados para o bailado de cada amanhecer.

 


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