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domingo, 17 de agosto de 2025

FERAS SOLTAS, DE LULIH ROJANSKI

ENTRE FERAS E SILÊNCIOS

Por Marta Cortezão

Arquivo da autora
Lulih Rojanski nasceu no Paraná. É descendente de imigrantes poloneses que vieram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX e tiveram a sorte de escapar do Holocausto. Em 1984, migrou para a Amazônia e esqueceu-se do caminho de volta. Era muita estrada para esconder as migalhas de pão. Graduou-se em Letras, habilitou-se em Língua Portuguesa e Literatura. Trabalha em sala de aula há 28 anos. Há mais de 30 escreve contos e crônicas que desde o princípio foram publicados em diversas coletâneas. No Estado onde vive, o Amapá, a autora se destaca pela participação de sua obra em provas de concursos públicos e pelo alcance de sua escrita, que tem feito parte de antologias nacionais e binacionais (Brasil/Portugal). Seus primeiros livros: Lugar da Chuva (crônicas), Abilash (conto). Pérolas ao Sol (crônicas) e Gatos Pingados (contos) foram publicados pela Escrituras Editora (SP). Feras Soltas é seu primeiro romance publicado, o segundo é Amores enterrados no jardim (2025).

Arquivo da autora
O romance Feras Soltas, de Lulih Rojanski, nos conduz ao universo denso e claustrofóbico de Manuela, uma mulher adulta atravessada por seus traumas. Jornalista e revisora em home office para “um jornal semanal subsidiado pelo governo, que circula na capital” do “País”, ela se encontra encerrada em sua jaula. O silêncio que a cerca é mais do que ausência de som: é prisão, é cicatriz, é trincheira. O romance mergulha profundamente nas consequências da violência, da culpa e do isolamento, sustentando uma tensão psicológica que perdura até a última página.

Desde muito jovem, entre 20 e 23 anos, assumiu responsabilidades imensas, sobretudo cuidar do irmão mais velho, Bonifácio, com esquizofrenia acentuada. Mantém-se à tona com seis comprimidos diários de psicotrópicos, respaldados por laudo médico “floreado” que aponta fobia social, depressão severa e “uma agressividade ameaçadora”. O cenário de sua vida é a casa herdada dos pais, Amália e Olavo, dividida com o marido, o americano Samuel e Boni. Entre eles, o vínculo parece ser frágil, sustentado pela necessidade de manter o irmão sob cuidados e por um pacto tácito de não se aprofundar nos abismos alheios.

Três vozes, três labirintos

O enredo se estrutura em três partes, narradas por vozes distintas – Manuela, Sam e Boni –, cada um com sua cadência própria, seu recorte de mundo. A voz de Boni, em especial, flui sem pontuação, no fluxo bruto de quem vê e sente com uma lógica própria.

O romance é atravessado por segredos que resistem a vir à tona: Manuela se fecha nos traumas; Sam carrega o inconfessável; e a esquizofrenia de Boni opera não só como condição clínica, mas também como metáfora da realidade familiar fragmentada e de seu desejo de liberdade, de voltar a ser “fera solta no mundo. A narrativa explora, com intensa carga psicológica, os limites da culpa, do trauma e do isolamento – este, segundo Manuela, imposto pelo estigma da esquizofrenia de Boni, pela descoberta do passado tenebroso de Sam e, por fim, intensificado pela pandemia da covid-19. O entrelaçamento dessas perspectivas vai desmontando, peça a peça, o quebra-cabeça de silêncios que sustenta a história.

Arquivo da autora
‘dragões de primavera’: bússola simbólica

Entre as camadas do romance, destaca-se a simbologia dos “dragões de primavera” como metáfora para a transformação desejada por Manuela: sair do adormecimento emocional e reencontrar o impulso vital. A epígrafe de Hilda Hilst já antecipa essa busca por redenção:

Pai, este é um tempo de espera. / Ouço que é preciso esperar / Uns nítidos dragões de primavera, / mas à minha porta eles viveram sempre, / Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Na primeira parte do livro, em forma de diário com certas lacunas de tempo, Manuela revela o peso do corpo marcado por traumas e espera por forças renovadoras que nunca chegam. Ela encontra certo alívio no solo e na chuva, tentando dissolver-se “em húmus e barro”, enquanto o passado insiste em assombrá-la.  Sam recorda que a origem desse mito íntimo vem da voz de Amália, mãe de Manuela e Boni:

Foi ela a responsável por sua crença de que os pequenos lagartos que ocorrem pelo jardim são descendentes dos Zmey Gorynych, dragões Zmey sérvio, em particular, que era bondoso e tinha o poder de afastar as tempestades. Ver Manuela deitada no gramado sempre foi comum, mas nunca pude compreender que tenha continuado a gostar dos lagartos, mesmo depois de cada tormenta, cujos efeitos poder nenhum foi capaz de aplacar (p. 117).

Não há dragões nem primaveras

É no diário de Manuela que se encontram as passagens mais cortantes. Sua infância, marcada por abusos cometidos pelo pai, é descrita com imagens potentes. A origem de suas cicatrizes remonta aos oito anos, quando começa a sofrer abusos do pai, Olavo:

Quando o pai me puxa pelos braços e me põe sentada sobre suas pernas, distraindo-me com os pequenos dragões que sobem nas árvores – e sua mão, como uma aranha grande e fria, se arrasta para o interior de minhas pernas infantes – o passado ainda é passado, mas se refugia, inatingível, na profusão de tudo o que se nove na escuridão (p.14).

Os abusos continuam até a adolescência, no desamparo da noite e no medo da jovem que se sente excluída, suja e desacreditada de um deus que não a escuta, não vem em seu socorro, não existe. Essas lembranças, porém, não são narradas de forma linear, mas como fragmentos que retornam de modo imprevisível, tal como na mente de quem sobreviveu a traumas. O silêncio, o medo e a sensação de abandono se erguem então como paredes intransponíveis:

Eu tinha medo de dormir, depois de haver tantas vezes acordado no meio da noite com a aranha grande e pesada passeando por meu corpo. Não tomava banho nua porque o banheiro da casa era vulnerável, e desde os oito anos eu sabia que os mesmos olhos de coiote passeavam pelas frestas. Tinha medo também de gritar por mamãe e abrir em seu coração uma ferida tão grande que nunca mais viesse a se fechar. (p.44)

Minha pele não deixa esquecer a violência silenciosa das investidas das mãos que a usurparam. E lhe impingiram nódoas profundas. Tão profundas que pressinto lacerações nos órgãos internos (p.87).

A imagem pública do “pai de família” oculta o machista, misógino e abusador que corrói silenciosamente o lar. Por trás da fachada respeitável, Olavo instala o medo, a vergonha e o silêncio que aprisionam Manuela desde a infância. A partir desse núcleo de violência, sua vida passa a se organizar entre afastamentos forçados, responsabilidades precoces e breves tentativas de respiro.

Do refúgio às desilusões

Em Nélson, amigo de Boni (namorado de Lili), a jovem Manuela encontra um breve refúgio, mas que se evapora muito rapidamente deixando também cicatrizes profundas e o sabor amargo da desilusão:

Na última tarde em que veio à nossa casa, Boni não abriu a janela para se despedir, mesmo sabendo que o amigo ia para outro país, e eu ainda não sabia o que havia se passado ao aceitar seus beijos de despedida.

Nélson estava distante e lacônico, cheguei a ter a ilusão de que fosse a dor da separação. Só depois que se foi, entendi que era vergonha. Na despedida, disse-me apenas que a vida era ainda muito nova em nossas mãos para sabermos o que fazer com ela (p.46).

Não é Manuela que nos revela o motivo da “vergonha” de Nélson, mas Boni quando expressa o desejo de voltar no tempo e dizer que sabe que foi traído pelo próprio amigo:

eu fui enganado pelos caçadores de feras que me faziam ver coisas medonhas eu fui na rua no meio da tormenta e vi as criancinhas mortas debaixo do jacarandá caído vi os lagartinhos do quintal virando dragões que engoliam a Mana vi o Nélson rodopiando com a Lili no cinema beijando a Lili atrás de uma névoa de cigarro fininho onde já se viu meu melhor amigo roubar minha namorada (p.155).

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O colapso familiar e o peso

O diagnóstico de Boni abala profundamente Amália, que, juntamente com o pai, depositava nele todas as expectativas de sucesso. Manuela carrega, assim, não apenas a responsabilidade prática dos cuidados, mas também a sombra de não ser reconhecida como alguém em que não vale apostar:

A família não era mais um fiapo do que havia sido, segundo Manuela, em seus desabafos. Bonifácio seria “o grande homem da família”. Quando me contou sobre o sonho dos pais, Manuela sentia-se amargurada. Não porque não teriam mais um grande homem na família, mas porque nunca apostaram que ela poderia ser uma grande mulher (Parte II, p.111).

Boni, por sua vez, expõe, a seu modo, a pressão sofrida por parte do pai e a rivalidade velada que se estabelecia entre os irmãos, entre homem e mulher:

O pai não gostava de mim que nem a mãe que passava a mão na testa e no cabelo o pai olhava de cara feia quando eu deitava no colo da mãe dizia moleque mimado olhava de cara feia quando eu tinha medo de cachorro do tio e quando eu pedia para a mãe deixar a luz acesa a cara do pai era sempre feia não podia correr e abraçar não podia chorar não podia ficar com febre nem com dor de barriga não podia brincar com menina assistir filme de amor novela na televisão só a Mana que podia a Mana podia faltar na escola podia comer a moela e a coxa podia até matar gato que ninguém falava nada nem tinha cara feia pra ela (p. 152).

Marcada por essa conturbada relação com a família – e sobretudo pela figura de Olavo –, Manuela procura, em alguns momentos, escapar ao peso do passado. A viagem com um grupo de hippies surge então como tentativa de suspender os traumas, um movimento de busca por liberdade e de ensaio para uma vida possível fora do círculo opressor da casa. Esses lampejos de autonomia para além do medo oferecem-lhe um raro respiro, como ela mesma reconhece ao recordar a experiência:

Sinto saudade do tempo que passei com os hippies anacrônicos e fui hippie também. Foi um ano que me colocou no eixo da vida, um tempo em que comecei a descobrir quem era a pessoa por baixo da casca, e pela primeira vez não tive medo de ser eu mesma. Nenhuma pílula psicotrópica fazia parte da minha rotina. Mas tive que voltar para casa porque a família não podia ficar tanto tempo sem reforço para cuidar de Boni (p. 66).

Na universidade, Manuela conhece Sam, e os dois vão se aproximando cada vez mais. No entanto, o retorno à casa traz grandes problemas. É pela narrativa de Sam que percebemos a coragem de Manuela ao contar à mãe sobre os abusos praticados pelo pai, ainda que Sam não soubesse nada sobre o assunto. Nesse mesmo dia, Amália sofre um enfarto fulminante.

A convivência com o pai torna-se insuportável: Manuela o odeia e desejo que ele morra, lembrando também de quando, criança, desejou a morte de um gato que acabou falecendo. Todo esse peso de culpa a acompanha em todos os momentos, inclusive quando chega a desejar a morte de Nélson. Mesmo após o falecimento do pai, um ano depois da mãe, a culpa permanece, silenciosa e insistente, como sombra que se recusa a deixá-la.

Ruptura: a fuga de Boni

No 60º dia da narrativa de Manuela, a fuga de Boni causa uma reviravolta na rotina das personagens. Esse acontecimento quase a desestabiliza, mesmo com suas pílulas de psicotrópicos em dia. Esse estalo emocional da protagonista é visto com espanto por Sam:

Sam estranha me ver socando as próprias pernas. “O que é isso?”, pergunta, e no seu rosto há o espanto de ter reconhecido sinais da mulher adormecida. Ajeito o vestido em desalinho, enxugo as lágrimas que penso haver, mas meu rosto está seco e os olhos ardem pelo esforço vão de chorar. Há quanto tempo não choro? (p.69)

Em seu diário, Sam também registra o acontecimento e o seu desejo de voltar a conviver com a Manuela passional que conheceu na época da universidade:

Foi uma pena ter-se recomposto tão rápido depois de socar as próprias pernas. Por um instante vi a Manuela passional que conheci. Minha reação ao seu impulso a intimidou, trouxe de volta a mulher contida, a mulher que escolheu deixar as emoções adormecidas no sistema límbico (p.98).

Sam vê resquícios da antiga Manuela — “uma alma atrevida” (p. 115) —, mas o que a faz ser uma mulher contida ao lado dele, ainda quando tomada pela aflição da fuga do irmão? Talvez a verdade seja que Sam nunca a tenha conhecido de fato: nem a Manuela de antes, nem a de agora.

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Pandemia: a clausura dentro da clausura

A chegada da covid-19 funciona como um espelho: o isolamento imposto pelo vírus apenas escancara uma reclusão já existente. O confinamento físico soma-se ao emocional, e o livro mergulha ainda mais fundo na introspecção. No caso de Manuela, é também um escudo contra o julgamento social que teme devido à esquizofrenia de Boni, que, por sua vez, é talvez a figura mais ambígua do livro. É a sua fuga de casa, no 60º dia da narrativa de Manuela, que rompe a rotina e obriga todos a enfrentar medos adormecidos. Na voz de Boni, há tanto uma ingenuidade infantil quanto uma lucidez cortante que se deduz de suas próprias palavras:

O melhor cego é aquele que não se conforma de ser cego e tenta enxergar com os outros sentidos o que o olho não consegue eu disse isso pra Mana e ela não prestou atenção ou eu não disse só pensei quero saber o que ela acha porque o cego podia ser ela que não enxerga um palmo na frente do nariz com os olhos da cara mas podia enxergar de outro jeito se quisesse (p. 148).

O romance não se limita ao drama íntimo; ele aponta também para um descaso coletivo. A morte miserável do casal amigo de Boni, dona “Olali” (Eulália) e o marido, durante a pandemia no “País”, dá a Rojanski a oportunidade de inserir críticas diretas à negligência governamental e ao desprezo pela vida humana, como vemos no fragmento:

Os pobres clamam por auxílio do governo, há muitos desempregados, desamparados, despejados, desesperados. O presidente eleito pela maioria responde com piadas de mau gosto, nega a crise de saúde, debocha de quem lamenta a doença, minimiza o sofrimento pelas milhares de mortes e vocifera que somos um país de maricas. Quando é questionado pelo absurdo número de mortes, que coloca o País como um dos mais massacrados pela pandemia, prepara seu melhor ângulo para as câmeras e diz: “E daí? Todos vamos morrer um dia” (p.140).

Esse equilíbrio entre denúncia social e exploração psicológica das personagens é um dos pontos fortes do livro: a história não se perde em panfleto, mas também não se omite diante das violências sistêmicas.

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Sam e o cárcere da culpa

Após a fuga e a morte do casal, Manuela, Sam e Boni tentam retomar o ritmo macilento de suas vidas. Boni se agarra em suas ideias alucinógenas e suas risadas descontroladas. Manuela costura suas ideias com o medo de contrair o vírus e com o fato trágico que seria a morte de um dos três, jogando todas as possibilidades e seus tormentos. Sam continua o trabalhando em seu projeto arquitetônico de uma casa grande no campo, assombrado por seus demônios, seu corpo febril e a tosse incômoda que tenta esconder de Manuela. Sam decide dormir no quarto das velharias e, entre caixas e quinquilharias, Sam reencontra o fio do próprio passado e se dá conta de como Manuela chegou ao seu terrível segredo:

Antes de guardar a caixa, puxo uma folha de papel cujas pontas amareladas aparecem por baixo de um maço de cartas. É uma cópia impressa do retrato falado de um foragido da justiça do condado de El Paso, no Texas, EUA, que circulou pela internet em uma época em que não havia uma câmera fotográfica na mão de cada cidadão, e provavelmente não encontraram uma única fotografia para publicar nos jornais (p. 113).

Sam, o marido, aos 19 anos, assassina a namorada Rose Mary e foge para o “País” onde agora vive. Sua narrativa do crime revela justificativas frágeis e distorcidas e é marcada pela ausência de arrependimento:

Que crime neste mundo não é repulsivo?

...

Sim, sou culpado pela morte de Rose, mas não a teria matado se não acreditasse que havia algo diabólico em seu corpo. Quando entrou em seu quarto para dizer que ia me deixar, a primeira coisa que fiz foi trancar a porta e jogar a chave pela janela gradeada (p. 135).

A presença de Sam no romance não é apenas a de cúmplice no cuidado de Boni, mas a de outro prisioneiro — de sua própria culpa e das mentiras que sustenta para sobreviver. Essa duplicidade acrescenta tensão ao enredo, pois o silêncio que mantém com Manuela ecoa o dela, criando um pacto mórbido de não-ditos:

Nunca vou perguntar a Manuela as razões de seus estranhos hábitos. Se quisesse, teria me falado. Também não lhe falo sobre meus pesadelos (p. 116).

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O retorno dos dragões

No 64º dia, Sam é internado e, após vários dias no hospital, vem a óbito. A morte de Sam marca uma ruptura silenciosa, encerra um ciclo de silenciamentos, mas não resolve todos os nós. Narrada pela própria consciência do personagem (assombrada por Rose Mary), sua morte abre espaço para que Manuela comece a cultivar novas práticas. O luto reabre fissuras, mas é na voz de Boni que vislumbramos tais mudanças: Manuela acorda cedo, põe Angie (The Rolling Stones), assa bolo, retoma as consultas presenciais com o psicólogo, pedala, colhe frutas, prepara sopas. Esses gestos simples ganham peso simbólico, indicando que talvez os “dragões de primavera” finalmente se aproximem:

Coisa mais esquisita é essa música alta desde cedo a Mana está fazendo bolo tem um cheiro gostoso vindo da cozinha será que a Mana pensa que já é Natal será que é aniversário de um de nós? (p.156)

Essa é a música que o cachorro do Nélson ensinou ela gostar sorte que é bonita

Mana agora resolveu que toda semana vai para o psico me deixa trancado em casa só come fruta e verdura vive em cima da bicicleta pedalando parada e por baixo das árvores arrancando tangerina manga abacate (...) toma sopa cor-de-rosa roxa e suco verde diz que é pra limpar o sangue pra voltar a sentir os sentimentos pra gostar de novo do mundo e fazer nascer lágrima eu não sabia que as cenouras as couves os pepinos e os psico tinham tanto poder e depois que ela melhorar vai me levar pra passear não sei onde espero que lá tenha peixe azul (p.157).

Não é redenção plena: é movimento. Os “nítidos dragões de primavera” talvez não cheguem ruidosos; talvez cheguem pela mínima vibração do desejo de voltar a sentir.

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Primavera à vista

Feras Soltas equilibra dureza e lirismo, conjugando trauma íntimo e crítica social. Lulih Rojanski manipula a linguagem com precisão, constrói vozes narrativas que se tensionam enquanto a imagem recorrente dos dragões organiza o romance como horizonte de metamorfose. A leitura incomoda, dilacera e, por isso mesmo, cumpre sua função: nos fazer sentir, pensar e encarar feras — as de dentro e as de fora. A força do livro está em não estetizar a violência nem oferecer soluções fáceis: prefere a verdade incômoda das feras internas, mas abre, no fim, uma fresta de ar — pequena, insistente, necessária.

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ROJANSKI, Lulih. Feras soltas. São Paulo: Patuá, 2023.


Arquivo da autora. Macapá, 2023





A chuva, como nenhum outro fenômeno, cria sensações oníricas em torno das coisas (...) Cada coisa, em seu lugar, é capaz de contar uma história sob os efeitos etéreos da chuva. Humanizam-se.

[Lulih Rojanski, em Feras Soltas]

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Resenha "Terra Úmida" de Myriam Scotti para o "Le Monde diplomatique-Brasil"

 TERRA ÚMIDA, DE MYRIAM SCOTTI

Por Rita Alencar Clark 


Arquivo da autora
O romance de Myriam Scotti, “Terra úmida”, ganhador do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2020, na Categoria Regional, tem como tema central a diáspora Judaico-Marroquina no começo do século 20, quando muitos imigrantes vindos do Oriente atracavam no Porto de Manaus, o “Manaus Harbour”. Vinham em busca de refúgio mediante as ameaças de guerra iminente ou perseguições religiosas, em busca de trabalho e prosperidade, mas, principalmente, de liberdade. Sonhos que só no chamado “Eldorado Amazônico” poderiam ser realizados, uma vez que outros parentes já haviam se aventurado e prosperado, o que servia de incentivo a muitos imigrantes, de todas as partes do Oriente e da Europa. Uma longa viagem, sem volta, para muitos deles, que foram seduzidos pela corrida em busca do “ouro negro”. O látex, a borracha, que jorrava em abundância nos seringais da Amazônia longínqua.

A personagem principal dessa narrativa é Syme, matriarca da família, detentora da missão de unir a família em torno dos rituais da religião e da tradição Judaica, enquanto se esforça para compreender, assim como o novo idioma, os mistérios da nova terra prometida, uma terra úmida, capaz de inebriar os desavisados com seu torpor vespertino ou tragá-los para as profundezas de suas águas escuras e insondáveis.    


Arquivo da autora
Abner, o filho mais velho, conduz a primeira parte da narrativa, quando, ao voltar de uma longa viagem pelos rios da Amazônia, reencontra a mãe debilitada em luta com os últimos momentos de vida. Uma vida que ela não escolheu e que só descobriremos os motivos depois de sua partida, através dos Diários deixados na última gaveta da penteadeira…como derradeira oportunidade de mostrar-se como verdadeiramente foi. Sem, contudo, permitir a chance de ser contestada ou condenada pelas escolhas que fez em vida. A descoberta desses diários, na segunda parte da narrativa, e a leitura deles pelos filhos, já criados e adultos, desnudam uma mulher desconhecida, aquela que chamaram de mãe, ou Ima, suas aventuras e tragédias pessoais, a imensa solidão, a luta diária com os sonhos irrealizados, que saqueiam sua alma levando embora, para sempre, o brilho, poucas vezes vislumbrado naqueles olhos, deixando no lugar um amargor insondável, que a acompanhou até o fim. Syme, derrama-se através da escrita, revela-se a si mesma, fazendo-lhe companhia durante as viagens intermináveis do marido e filhos, a escrita dos diários preenche seus dias e noites de espera infinita. Os grandes rivais da vida de Syme: os rios, as longas estradas fluviais, a imensa desolação e saudade do Marrocos, daquela que um dia foi.

O romance nos traz, ainda, uma experiência sensorial/gustativa, uma vez que a narrativa sobre os aromas dos mercados marroquinos se apresenta com suas cores e especiarias, as comidas para os rituais Judaicos e os costumes ancestrais. As festas, as iguarias, as roupas, as tradições, que sobrevivem, plenamente, até os dias atuais. Um legado deixado aos descendentes, mas que todo o povo Amazônico usufruiu, uma “mistura” respeitosa de povos e tradições só possível numa época de grandes navegações e abertura dos Portos.

Abner encerra a narrativa com a terceira parte do romance trazendo um “plot twist” inesperado e magistral, levando o leitor a repensar sua própria aventura, o seu próprio tempo de existência nesta terra.

“(…). É como tenho levado os anos da minha vida, sempre querendo regressar, que nem uma criança à espera de um dia retornar ao útero da mãe. Aprendi quando aqui cheguei que isso se chama saudade, a memória do que não queremos esquecer.” (MYRIAM SCOTTI, 2021:16)


Manaus, 08 de março de 2024.


Rita Alencar Clark

Poeta, contista, cronista e ensaísta Amazonense. Colunista do Blog Feminário Conexões.

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Arquivo da autora
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

ROSÁRIO MARIA, POEMA DE ELIZABETE NASCIMENTO

 CAVAR A ALMA E TECER PRIMAVERA: UMA LEITURA SIMBÓLICA DO POEMA ROSÁRIO MARIA, DE ELIZABETE NASCIMENTO

POR JOCINEIDE CATARINA MACIEL DE SOUZA

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Esta abordagem propõe uma leitura simbólica do poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento. Toma como eixo central a construção de um sujeito poético feminino que se insurge por meio da palavra, da memória coletiva e da força do cotidiano. Ancorada em vozes críticas como Hélène Cixous, Conceição Evaristo e Gaston Bachelard, a análise mostra como o poema desloca o silêncio histórico das mulheres para uma textualidade insurgente, sensível e potente.

O poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento, inscreve-se numa linhagem poética que combina linguagem, gênero e território. Ao mobilizar o nome “Maria” como signo coletivo e ancestral, o texto articula o íntimo e o político, o místico e o cotidiano. Trata-se de uma poética da escavação: da alma, da terra e da história.

A repetição de “Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria” é um mantra que impõe ritmo e urgência à leitura. Como sugere Gaston Bachelard (1993), a imagem da escavação remete ao inconsciente profundo, às “cavernas da alma” onde habita a memória arquetípica. Neste caso, o gesto de cavar é também um gesto de resistência, de retorno ao próprio corpo como território de força.

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A presença do “magma”, da “lareira” e do “incendiar o mundo” evoca o elemento fogo como transformação. Cixous (2013), em O riso da Medusa, argumenta que a escrita feminina precisa incendiar as estruturas do discurso patriarcal. O fogo em Rosário Maria é reativo e criador. Não destrói: liberta.

A passagem de “Maria” para “Marias” marca uma virada importante. O eu lírico singular se dissolve no plural coletivo, numa construção identitária que ecoa o conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo (2005): a escrita que emerge da vida, das vivências encarnadas de mulheres silenciadas. Maria é toda mulher que cava, fia, lavra e canta.

As Marias de Elizabete “tecem outras rotas”, “acordam”, “desfiam os rosários”, num movimento de agenciamento coletivo. Aqui, o rosário não é símbolo de submissão religiosa, mas de insurgência simbólica. Desfiar os rosários é desfazer as tramas da resignação.

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A poesia de Elizabete emerge como um espaço de escuta e mobilização. A expressão final do poema — “a primavera precisa chegar” — funciona como síntese do desejo de transformação. Não é uma primavera natural, mas histórica: exige que a palavra rompa o silêncio-túmulo e inaugure um novo ciclo. Rosário Maria é mais do que um poema. É um manifesto. Com ritmo de ladainha e corpo de reza profana o poema devolve à linguagem sua função primeva: a de criar mundos. E como lembra Paul Ricoeur (1997), “o que nos define não é o que lembramos, mas a história que somos capazes de contar”. As Marias de Elizabete contam, tecem e fazem florir a primavera.


ROSÁRIO MARIA

 

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Deixa que escorra na pele o magma, Maria!

Labuta rainha, debulha o rosário, Maria!

Suba a ladeira, acenda a lareira, saia da fileira, Maria!

Desagua a mar, Maria.

Lava-se no lar, Maria.

Senta-se no bar, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Há magma em sua terra, Maria.

Incendeia o mundo, Maria!

Saia da fila, Maria!

Balança a saia, Maria!

Lavra a terra com os fios da vida, Maria.

Espalha sementes, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Tu és uma Maria.

Nós, somos muitas, Marias!

Vençam as crostas da pele, Marias!

Teçam outras rotas, Marias!

Acorda! Chegou a hora de desfiar os rosários, Marias.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Marias.

A conta está paga, Marias.

Unam-se! Há fios prateados na madrugada, Marias.

Teçam atônitas as teias da vida, Marias.

Com pérolas que adornam a garganta, Marias!

Com fé e esperança que ilustram a vida, Marias!

Corações alados espalham amor, Marias!

 

Vai!  Deixa que as palavras abram sua boca de túmulo,

a primavera precisa chegar.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa e outros ensaios feministas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

EVARISTO, Conceição. "Escrevivências: a escrita de nós-mulheres". Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

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Arquivo da autora

Jocineide Catarina Maciel de Souza - Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/Unemat) (2021). Mestra em Estudos Literários também pela Unemat (2014). Graduada em Letras (2009). Quilombola do complexo territorial de Pita Canudo em Cáceres/MT. Produziu o documentário: “Quintais Quilombolas: Memória e identidade Cultural do Quilombo Pita Canudos Cáceres/MT”, com o apoio da Secel, por meio da Lei Aldir Blanc, em 2020. É, também, produtora cultural e diretora da Escola Estadual Demétrio Pereira, em Reserva do Cabaçal/MT-BRASIL.




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Arquivo da autora

Elizabete Nascimento (Cáceres/MT) -  é poeta, professora e avó. O silêncio e o tempo são seus mestres e, por isso, tenta guardar as dores com dignidade e as ressignifica em páginas, na ânsia de apontar que o verbo pode ser abrigo, cura e voo. Cada palavra que rabisca é na tentativa de ofertar um sopro de esperança ao mundo. Aprendeu que escrever e amar são, voos de pássaros, os únicos caminhos, verdadeiramente, eternos.

terça-feira, 24 de junho de 2025

COM QUANTAS ESTAÇÕES SE FAZ UMA MULHER, CONTO DE ISA CORGOSINHO

 C O M   Q U A N T A S   E S T A Ç Õ E S   S E   F A Z   U M A   M U L H E R

POR Isa Corgosinho

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Depois do estupro, fui expulsa de casa após a denúncia que fiz contra meu pai. Morei por algum tempo na casa de uma prima, que veio do norte com minha mãe, ainda solteira. Depois que atingi a maioridade, aluguei um quarto de pensão com uma amiga. Abandonei a escola antes de concluir o 3º ano do Ensino Médio e dela só guardei um livro porque amava o título A hora da estrela. Faria da minha o inverso da vida da protagonista.

PRIMAVERA

Na primavera da minha vida, qualquer noitada regada à cerveja no bar, presentes como bijuterias, roupas, maquiagem, caixas de chocolate eram suficientes para que eu fizesse as vontades dos homens, meu corpo jovem e as mentiras sussurradas no escuro aumentavam a macheza deles. Eu os fazia supor a minha entrega e submissão, enquanto na verdade só estava manipulando a vaidade masculina, toda concentrada no pau e no poder: sim, senhor! Na verdade, pra mim, eram corpos anônimos, sem faces. Páginas viradas do meu folhetim.

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No início, aquele ganho me bastava para o aluguel, a comida, as drogas baratas como o álcool, a maconha e o cigarro. A escola ficou cada vez mais distante, trouxe comigo de casa um book de fotografias, que a minha mãe pagou em cinco vezes, quando cismei que poderia ser modelo. Agora ele serve para atrair meus clientes. Além da escola, deixei minha mãe, meus cinco irmãos pequenos e o alcoólatra carioca desalmado, que me violentou.

Não era difícil encontrar homens que pagassem por um programa com uma jovem de 18 anos, os aplicativos serviam principalmente pra isso. A maioria das mulheres que usa esses aplicativos busca encontrar um par perfeito, mas boa parte delas já sofreu golpes e desenganos. No meu caso, logo no primeiro encontro, apresento minha tabela de preços e as opções de prazer.

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VERÃO

Marco o longo verão da minha vida quando fiz programas com homens de vários estados, afinal moro na cidade maravilhosa, reduto do turismo sexual. Os conterrâneos são metidos a espertos, botam banca, descolados, bronzeados, narcisistas e vivem pedindo desconto pelas transas, só gostam deles mesmos. Na zona sul, ainda é possível encontrar uns caras que querem imitar o Vinicius de Moraes e por isso são galanteadores, falam pelos cotovelos, contam vantagens, são ligeiros e dançantes, superficiais, curiosos e, principalmente, mentirosos, gostam de me comer tomando uísque e ouvindo bossa nova.

Já os paulistanos são desbotados, discretos à primeira vista, ansiosos e pragmáticos, agem com  disciplina calculada, gostam de shopp gelado nos quiosques à beira mar, tomar café em livrarias e de ler tudo que lhes apetece, inclusive meu olhar, meus gestos, emitem gemidos prolongados na hora do sexo oral, pagam o valor da tabela sem reclamar. Não sei qual a motivação, mas gosto de transar com os mineiros, chegam de mansinho, suaves e com uma timidez calculada, são astutos, desconfiam até do próprio reflexo no espelho. Sinto neles o cheiro das montanhas, têm gosto de minério na boca, a pele cheira a café coado, os pelos fazem cócegas na gente. Falam pouco, mas gostam muito de transar, trepam muito bem! Me tratam como se estivessem com a garota de Ipanema, mas são avarentos, não pagam um centavo a mais pelo serviço prestado. Alargando os adjetivos são conservadores, mesmo os que se acham descolados, e, não raramente, hipócritas, masculinidade frágil.

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Os gaúchos merecem um parágrafo à parte. Conheci alguns de diferentes idades, mas todos eles gostam de transar de botas, não olham para meu rosto, gostam de cavalgar sobre o meu corpo, o hálito é impregnado de chimarrão, os suores escorrem e têm cheiro de carne crua. Das conversas rápidas, só me recordo da frase: fique de quatro, guria! Acho que nunca me casaria com um gaúcho, pra mim eles representam o suprassumo da masculinidade frágil.        

Poderia ficar aqui falando da subjetividade geográfica masculina, mas não mudaria em nada a moldura patriarcal e a masculinidade frágil que, invariavelmente, a quase todos configura,  (além disso, a autora não aprecia textos muito longos). Por isso sempre penso nessa profissão como temporária, é um investimento que faço, enquanto vou curando meus traumas e desencantos. Para cada corpo de homem que dou prazer, deixo um lastro do meu desprezo, um rastro de bílis misturado à porra gosmenta do gozo. Se eu já me apaixonei, amei? Sim, com muita intensidade, mas daria um novo conto. 

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OUTONO

No ciclo outonal da minha vida, quando minha mãe ficou viúva, (paguei com meu corpo para um homem fazer o serviço na prisão onde estava meu pai) voltei pra casa pra ajudá-la a cuidar dos meus irmãos, não tem dinheiro que chegue pra pagar as despesas, meu pai só deixou dívidas, cicatrizes e traumas. O homem foi um predador na vida da família. Juntei o que restou das minhas economias, coragem, consciência e saudade e me juntei a eles. Agora dividia a responsabilidade de dar afeto, pão e uma pitada de esperança para os jovens homens que eu sempre amei.

Hoje não frequento apenas os sites de encontros, faço programas fast-food nas paradas de ônibus da cidade. Me considero menos infeliz que antes, tenho pra quem e onde voltar. Pra aumentar a renda e diversificar meu trabalho, agora também faço programas com mulheres, mas essa novidade certamente daria um conto à parte. Já tenho em vista uma cliente que, me parece, será assídua: todas as manhãs ela passa devagarinho com o seu carro, observando as minhas formas, já trocamos olhares comprometedores. Da próxima vez, vou fazer sinal para parar o carro, oremos.   

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INVERNO

Toda manhã, por volta das 7h, no caminho para a Universidade, os meus olhos têm encontro marcado com aquela mulher. Faz ponto naquela parada de ônibus durante o ano inteiro: primavera, verão, outono e inverno, lá está ela. Às 7h15, eu já estou dando aula, e ela antes disso já estava trabalhando.

É uma mulher com cerca de 40 anos, estatura média, cabelos longos, pretos, pernas torneadas, cintura marcada, olhos castanhos, tristes e cansados. Entramos num inverno chuvoso e lá está ela, vestida com um casaco de lã vermelha, um short de couro preto, uma meia desfiada na coxa, calçada com uma sandália de salto alto e os pés encharcados pela chuva, mais uma invisível proletária do asfalto, sob um frágil guarda-chuva estampado por estrelas.

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Arquivo da autora
ISA CORGOSINHO  é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

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