DESFIANDO REMINISCÊNCIAS, EPIFANIAS E METÁFORAS
POR ROZANA GASTALDI COMINAL
Sociedade distópica em função da
pandemia da Covid-19, isolamento social por conta do coronavírus nos últimos
dois anos, leva as mulheres que escrevem a se projetar com seus escritos nos
mais variados gêneros. Em múltiplas linguagens dão vozes à potência feminina
que dá um basta na violência cotidiana. Nesse curto período, estamos escrevendo
sobre condição social, econômica, educacional, moda, comportamento, opressão,
submissão, corpos, violência, política. Nada nos detém porque, enquanto
reescrevemos nossos textos, damos novo enfoque àqueles que alienam de nossa
condição.
Mulheres potentes em fusão por um mundo melhor. Foi nesse contexto que conheci Margarida Montejano e sua produção literária que traz traços de suas vivências como educadora, apresentadora do Canal N’outras Palavras, mãe, amiga, esposa. enfim, uma sobrecarga de papeis a que muitas de nós estamos expostas. E, justamente, por isso vamos nos apoiar e nos ler.
Margarida Montejano -Lançamento do livro Fio de Prata [Foto arquivo pessoal da autora] |
Em Fio de Prata, seu primeiro livro
de contos, Margarida Montejano mostra que veio contribuir dando vez e voz a
suas personagens femininas, para isso se apoia em alguns recursos estilísticos
que se destacam: a reminiscência, a epifania e a metáfora. De fato uma maneira
de aprofundar sua prosa poética.
Na filosofia, Platão recorre à anamnese, à
lembrança com pouca certeza. Nessa recordação vaga – reminiscência – é possível
perceber coisas que ficaram na memória inconscientemente. Com o conto
Reminiscências? Talvez, que abre o livro, percebe-se o quanto isso vem à tona.
Quantas vidas existem e resistem em nós, mulheres? Múltiplas somos que “esse
corpo estrangeiro” quando se depara na forma física “alta, negra, cabelos
longos, pele quase negra”, “um corpo estranho e um cérebro em desalinho”,
“vestido longo como num filme antigo”, natural o biotipo incomodar? Quando se
vive no país em que vidas negras parecem pouco importar, isso não é à toa,
vive-se livre num filme em busca das raízes que nos constituem. E nos vemos cara
a cara com A Mulher do Retrato, a história de Inês/Inezita é recheada de
romance, de perdas e ganhos, de se reinventar a cada amanhecer. Na primeira
parte – A noiva do pescador – Inezita e Julinho vivem a saga de construir
família e o sustento dela, o Condor passa, lutam até o luto. Na segunda parte –
A Medalha da Sorte – Inezita, viúva, beija a medalhinha de Nossa Senhora da
Conceição, os ventos e os rumos mudam, chega Naldo. E na terceira parte – A
Mulher, o mar e vida que segue – vemos Naldo morrer à deriva no mar, após
enfrentar duas árduas ressacas: a do mar e a da bebida. Apesar das dificuldades
enfrentadas, na sua simplicidade, a mulher vivia feliz. Porque o tempo todo foi
ela o arrimo que a todos sustentou, mesmo “com os olhos marejados de preocupação
e saudade, trabalhava e trabalhava muito. Costurava, cozinhava, cuidava dos
filhos”. Exatamente por isso, D. Inês enfrentou as marés e seguiu altiva e
agradecida.
[Foto do arquivo pessoal da autora] |
A seguir, já anunciada no título,
está A Epifania Feminina. Como Clarice Lispector, a autora explora a epifania –
o(s) momento(s) de revelação. Essa característica literária nunca anda sozinha,
vem acompanhada de questões existenciais: Nascer de novo? Não como menina!
Repetir a mesma história? Nem pensar nessa falta de sorte. Qual o seu lugar na
família numerosa? O clube do Bolinha ordena, o clube da Luluzinha executa. Deus
dará, a fé ilimitada da avó determina, assim tem sido. Mas a garota de 10 anos
questiona quando vê que os irmãos e primos têm tratamento diferenciado e
privilégios. Sente-se arrasada quando o pai diz: “Como diz o otro, o bão e o
que dá sorte é bater na nossa porta um menino pedindo anobão. Se vié uma
menina, aí o ano será ruim, não será anobão”. Que desaforo! Mas menina conta
com o apoio, a sensibilidade e coragem da mãe para livrar da triste sina, não
ficará relegada a segundo plano enquanto os meninos seguem maiorais pelo
anobão. Bandeira de luta e resistência já desde cedo o feminismo floresce.
Outras epifanias surgem em A Mão e o Espelho quando a jovem funcionária do banco fala que pratica quiromancia. Um dos colegas fica animado e põe sua mão para ela ler. A moça dá trela, pois é boa observadora de pessoas e com base nas atitudes delas “revela” as previsões futuras. Tempos depois, em outra cidade, já com outra profissão, “as revelações” se confirmaram para surpresa de Márcia, uma espécie de espelho que filtra os desejos do outro, da outra, de quem quer que seja, pois reflete também a si mesma, pois quem é que não quer ter uma vida repleta de realizações? Linhas da vida, fios entrelaçados pela escuta, o melhor dos autocuidados em nosso cotidiano tão banal, no entanto revelador se atentarmos aos detalhes.
Para adquirir exemplares, fale com Margarida Montejano |
Finalmente as metáforas retratam
várias faces. Hora de olhar as analogias, as comparações entre uma coisa e
outra, qual a similaridade entre ambas? Nos contos seguintes, percebo que as
personagens estão em busca do sentido da vida, partem para uma reavaliação
existencial. Foi desse modo que enxerguei A Metáfora do Buraco e a Água no
Rosto. O homem, em busca de sua alma gêmea, caminha sedento pelo deserto. E do
nada é “engolido pelo buraco”. Perde a noção espacial e temporal. Miragem,
passagem? Sente o frescor do oásis, em “fragmentos de sonho” vê a si mesmo bem
mais velho, “a mulher misteriosa” nas “dunas centenárias”. Perdeu o senso ao
deixar de viver o inusitado? Afinal o que é a vida? Miragem, passagem? Melhor é
água no rosto, acordar para vida e dela desfrutar, ouvir a intuição, porque, às
vezes, procuramos por algo bem longe de nossa vista quando o objeto de nossa
fixação está abaixo de nosso nariz.
Na narrativa Se Não Entender,
Pergunte!, o universo da educação se faz presente. A princípio parece ser mais
um conto daqueles em que o opressor da pedagogia do oprimido vence. No entanto,
Paulo Freire nos educa para uma educação que liberta então vem o revés. Somos
sujeitos históricos, oras! Enquanto uma criança mantiver sua curiosidade acesa,
que venham as perguntas! Já as respostas podemos encontrá-las juntos!
Criatividade exige aprendizagem cooperativa. Isso se dá com interação das
partes envolvidas: professor, estudante, sociedade inseridos num determinado
contexto gerando uma pedagogia da esperança, metáfora que indica novas
leituras, novos modelos de educar, porque os tempos são outros. Ter consciência
desse processo é humanizar a nós mesmos.
[Foto arquivo pessoal da autora] |
Por fim, o fechamento do livro com
O Fio de Prata, canal que transmite energias vitais. Dona Maria Teresa e Nona
são as anfitriãs da casa sem espelho. Ali compartilham histórias e ausência de
vaidades. Em contraste com a convidada que se fixa na imagem de Narciso, de
poemas, de personagens literárias, incluindo seus autores como forma de manter
o corpo-matéria vibrando. Vibração esta que vem do fio de prata, pois nele está
a força divina que mantém o corpo ligado ao espírito. Nesta metáfora bíblica,
Margarida Montejano nos enriquece com várias outras imagens que são espelhadas
e espalhadas assim como deve ser o universo literário que nos reflete, ora é
susto, ora é vislumbre, ora totalmente espelho.
Após a leitura dos 7 contos,
comovida, percebo que faço parte desse mulherio em movimento. Assim são as
mulheres que redescobrem dentro de si mesmas verdades intrínsecas e se movem
sem a validação de outros olhares, agora encontramos em nós próprias
representatividade. Ressalto, ainda, que foi apenas um recorte desta leitora e
que outras análises são possíveis. Encerro lembrando de um dito popular que diz
que recordar é viver. Diria mais, aprender é recordar, seja conhecimento e
aprendizagem por reminiscência, epifania ou metáfora. Quando se toma consciência
do quanto certas situações ficcionais se aproximam de situações cotidianas
experimentadas por nós, tais fragmentos de vivências nos fortalecem, estamos
unidas pelo fio de prata que herdamos da literatura de Margarida Montejano,
pois cada qual, a sua maneira, quer encontrar o fio condutor de sua existência.
Rozana Gastaldi Cominal
Poeta, escritora e professora
♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡Margarida Montejano, mora em Paulínia/SP. Supervisora Educacional na Rede Municipal de Campinas, Poeta, Pedagoga, Ms. em Educação PUC Campinas, Dra. em Educação pela Unicamp; Pesquisadora do Loed/Unicamp e Produtora do Canal Literário – N’outras Palavras – histórias que inspiram, no Youtube. Livro solo Fio de Prata (Editora Scenarium, 2022).