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quarta-feira, 1 de junho de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA - PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|05


PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 

Isa Corgosinho


            Ao final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus devaneios interpretativos de suas Permanências Outonais.   

A prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das personagens femininas de Clarice Lipector.  Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.




Permanência da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os capítulos Alternativas para um adeus e Passos de um esboço quase perfeito.  Tomada por uma consciência profunda da inexistência de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e se recolhe na dualidade e desordem, viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e se renovam.  Essa ausência de sentido da existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso, a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.

Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando eloquentes:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio.  (CALVINO, 1990, p. 11)

Entre essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro da Leveza, tal qual a entende o escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela narradora. Mesmo nos momentos em que o peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:

Fico a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois lados. (CLARES, 2010, p. 19)  

A leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa no paladar, mas não é o fel da fealdade.

A imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.    

Estou entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)

Hoje eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)

            É no seio da própria literatura, com epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.

A sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara.  A resistência à sufocação das tintas. A moldura mais perfeita.  A adequação ao expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES, 2010, p. 24)

A narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a intensidade e a resiliência.

Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.

Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.

Querência de amanhecer

e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010, p. 65)

 

Nas reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da travessia. 

O feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:      

[...] e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida inteira porque nós podemos ficar velhinhos.juntos numa casa com uma varanda cheia de plantas com um cachorro vira-lata dormindo aos nossos pés [...].  (CLARES, 2010, pp.43-44)

Do grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias, principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os centros do gozo do amor e do prazer. 

porque nós aproveitaremos as noites filosofando muito relembrando a Augusta e a guitarra de Jimmy Hendrix junto com a voz rouca da Janis Joplin e quem sabe faz a hora não espera acontecer junto com nossos porres de amor e nossos abraços de verdade quando e porque não precisávamos nem falar nada e pela vida inteira esse abraço sempre dirá tudo que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...)   (CLARES, 2010, pp. 44-45)     

Jean Baudrillard[1] interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual, da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é: o que fazer após a orgia?

Não sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer. Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus, sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).

O filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.

Aqui parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso de sexo e gozo do que uma descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.




Como conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes, representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas tramas cada vez mais cerradas.  Os episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e escolhemos na vida por tudo que representa de beleza e leveza, resulta, revela-se bem cedo de um peso insustentável. 

A superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final. A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação amorosa com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado de leveza.

Sim, é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida, que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade. (CLARES, 2010, p. 65)

O leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação, mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.  

Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).  

Hoje, num voo leve, me vejo.

Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.

Sinto a centelha divina. Memória de luz.

Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)

                

 

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal _ ensaios sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo: Sarasvati Editora, 2010.





[1] BAUDRILLARD problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.

 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

ELES LEEM ELAS: UMA GUERNICA INACABADA, POR ODENILDO SENA



ELES LEEM ELAS|07

"Uma Guernica Inacabada", de Myriam Scotti 


Por Odenildo Sena


Há livros que fisgam o leitor pelo arranjo envolvente da linguagem simples, despida de grandes pretensões metafóricas. Livros outros há que fisgam o leitor pela engenhosidade da trama, com pontos de intersecção que calam fundo na alma de quem o lê. No primeiro caso, muitas vezes o leitor empreende a travessia se sentindo recompensado, mas ao final do livro é invadido por uma estranha sensação de incompletude, daquelas que o fazem pensar que faltou alguma coisa para fechar aquela jornada. No segundo caso, atraído pelas pequenas pistas que o escritor vai deixando ao longo do caminho, o leitor avança com ambição rumo ao propósito de desvendar a trama, mas ao final se dá conta de que a travessia bem que poderia ter sido menos sofrida, se embalada pelas ondas de uma linguagem gostosa e cativante. É claro que eu estou falando de leitores chatos!


Pois nesses dias me caiu nas mãos um livrinho (no sentido carinhoso mesmo, porque também de leitura rápida) que me encantou pelas duas virtudes ao mesmo tempo: a linguagem simples e envolvente e a trama absolutamente sedutora. Quando bati os olhos nas primeiras linhas do texto, logo abandonei meu espírito de leitor comodista. Dali por diante, deixei-me conduzir pelo prazer da leitura:


“Sofri um AVC. Um infeliz acidente vascular cerebral do tipo hemorrágico. Não voltei mais da escuridão profunda a que fui condenado durante dois meses, até o meu corpo esmorecer por completo a fim de cumprir o ciclo de retornar ao pó.”


Com esta incrível concisão, que cabe em apenas três frases, Myriam Scotti não apenas fisga o leitor, como também traça para ele todo um feixe de expectativas a serem percorridas e vividas até o final do romance, que, a princípio, mas só a princípio, lembra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do velho Machado de Assis. A autora cria uma vertente narrativa bem particular. Concede à personagem principal a prerrogativa de transformar o quarto de uma UTI em um espaço de recorrentes sessões de análise, onde, mediados pelo silêncio dos interlocutores, cada um é terapeuta de si mesmo. É nessas circunstâncias que, embora em estado de coma, o narrador acompanha de sua profunda escuridão um verdadeiro desfile de confissões, desabafos, reconsiderações e arrependimentos que, se nada representam para ele, que não mais retornará do coma, acabam por impactar a vida dos que ficam, como sua mulher, seus filhos, seus pais adotivos, seu irmão e, até aquele momento, seu suposto melhor amigo. Mas esse diálogo, mediado pelo silêncio, como eu afirmei acima, é apenas um pouco do muito que o romance proporciona aos leitores mais exigentes. Ou chatos mesmo.


Por outro lado, além das duas virtudes que a Myriam reúne em seu romance, há uma terceira que merece consideração: a inteligente escolha do título, num simbolismo que perpassa todas as páginas do livro. “Uma guernica inacabada”, em referência à famosa obra de Pablo Picasso, ao mesmo tempo em que pode sinalizar as diversas fraturas, muitas das quais expostas, daquelas vidas que se reencontram na UTI de um hospital, permite também a viagem em inferências que evidenciam a incompletude de suas existências, aflorada naquelas confissões em que, diante de um morto-vivo, não há razão para não dizer a verdade.


Por fim, conhecendo meu espírito comodista de leitor, que exige muita provocação para se animar, posso dizer com segurança que “Uma guernica inacabada”, da Myriam Scotti, é leitura certa para quem gosta de se deixar seduzir por uma linguagem simples e cativante, por uma engenhosa trama na narrativa e por um título inteligente e oportuno.




quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

LIVROS & ENCANTAMENTOS: O CORAÇÃO É UM MÚSCULO QUE PULSA, SENTE E PENSA - CONSTANTEMENTE, POR ROBERTA GASPAROTTO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/03

'O CORAÇÃO PENSA CONSTANTEMENTE', DE ROSÂNGELA VIEIRA


POR RBERTA GASPAROTTO


Qual o gostinho de ser uma das primeiras leitoras a ter acesso a um livro profundo e ao mesmo tempo delicioso? Eu pergunto e eu mesma dou a resposta: me senti como tendo a chave para abrir um tesouro, o que é bom, e ao mesmo tempo, senti uma responsabilidade danada sobre o que fazer com o tesouro recém descoberto.  

Nessas minhas reflexões sobre 'O Coração Pensa Constantemente', da nossa querida Rosângela Vieira Rocha, lançado pela editora Arribaçã, espero que eu faça jus (nem que seja um pouquinho) à imensidade da obra. 

Em uma época em que muitos usam a faculdade de pensar com o objetivo de travar batalhas e ganhar discussões, Rosângela nos convida a usar essa importante ferramenta com o objetivo de estabelecer conexões.

O coração da narradora do livro, Luísa, é um músculo que pulsa, sente e pensa, constantemente. É a partir desse pensar-sentir, ou melhor, sentir e pensar sobre o que sente, que ela refaz caminhos e , principalmente, revivifica suas relações de afeto.

Em suas ações, a narradora realiza uma deliciosa e inteligente subversão, ao inverter a equação tão em voga em nossa contemporaneidade: de uma vida em favor da racionalidade, para a racionalidade em prol da vida e dos encontros.

Seu pensar é sempre a partir do coração, e é com esse recurso que Luísa procura entender o mundo, suas emoções e, também, o outro.  Sendo que o outro mais especial, é sua irmã Rubi. 

Há momentos belíssimos , e alguns muito engraçados, dessas duas irmãs que nutrem profundo amor entre si, mas não só. Como humanas que são, outros sentimentos também comparecem em cena, e Luísa usa de sua extraordinária habilidade de pensar os sentimentos, para dar conta de desenrolar muitos nós cegos. 

Preciso dizer que Rosângela foi muito generosa com seus leitores: através de Luísa temos a oportunidade de refletirmos sobre como anda nosso sentir-pensar-agir. Mais que isso: aos interessados, Luísa aponta, de certa forma, o caminho das pedras.

Além disso, as emoções são, no meu ponto de vista,  a personagem principal do seu maravilhoso e potente livro: há que se ter a coragem de investigá-las, e muitas vezes enfrentá-las para seguir em frente e não estagnar no caminho.

Ao fim da leitura, temos a confirmação de que o esforço da narradora em  percorrer seus percalços,  e em aceitar os tropeços alheios, deram frutos.

Em uma das frases finais, Luísa reflete sobre a vida, e também, sobre a morte, que um dia inevitavelmente virá, assim como veio para uma das pessoas que ela mais amou, sua irmã. 

Ao final, a narradora acolhe com bravura tanto a sua vida, quanto a sua morte: serenidade e maturidade alcançadas só para quem viveu uma existência que fez sentido para si.




quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

ELES LEEM ELAS: TOCAIA DO NORTE, POR ODENILDO SENA caia Do Norte: o Novo Voo Literário da Sandra


ELES LEEM ELAS|03

Tocaia do Norte, de Sandra Godinho


Por Odenildo Sena


Quando a narrativa feita pelos poderosos de plantão é manipulada, notadamente em tempos de ditadura, restam-nos duas alternativas para buscar a verdade: a reconstituição dos acontecimentos feita por historiadores comprometidos com a realidade factual ou, decorrente disso, a recriação dos acontecimentos com as ferramentas da criação literária. E, neste segundo caso, como faço lembrar em meu livro “Aprendiz de escritor”, a literatura nos serve de estrada e nos abre caminhos para melhor entendermos as coisas da vida, uma vez que “a ficção projeta de forma refletida e trabalhada um mundo no qual nos recusamos a viver. Ela é fruto da nossa insatisfação, do nosso desconforto, da nossa busca por novas utopias”. Ou seja, por mais paradoxal que possa parecer, a ficção nos conduz às verdades.

Mas a ficção, como bem nos lembra Mario Vargas Llosa, “não é a vida como ela é, mas uma outra vida, inventada com os elementos que aquela fornece e sem a qual a vida de verdade seria mais sórdida e pobre do que é”. Neste sentido, acho que o maior risco de um escritor que se arvora a trabalhar a criação literária a partir da reconstituição comprometida com a verdade dos fatos é se deixar levar pela narrativa histórica e abdicar da magia da criação literária. Ora, no resgate dos fatos históricos a beleza está no que se diz, já na construção dos fatos literários a beleza está ancorada no como se diz: a matéria-prima é a mesma, são as palavras, mas a forma de operar com elas é diferente.

Pois é exatamente aí que a meu ver está a grande virtude da Sandra Godinho em seu romance “Tocaia do Norte”, que li fazendo um esforço danado para não me deixar levar pela vontade de querer devorá-lo do dia para a noite, leitor que sou daqueles que fincam pé para digerir com calma e parcimônia as palavras, as frases e os parágrafos de um livro. Pois bem, os fatos que Sandra teve em mãos, já postos ou frutos de sua pesquisa, são em si historicamente tão cheios de desvãos e curiosidades, que poderiam representar uma tentação para que da história ela fizesse apenas história. Mas Sandra não caiu nessa armadilha. Montou uma trama própria conduzida em primeira pessoa por um personagem que, ao confessar suas dúvidas, hesitações e dramas existenciais, sem nada esconder, desnuda os acontecimentos de tal modo, que vai deixando pelo caminho pistas fundamentais para o leitor se encantar metaforicamente com a beleza literária da narrativa, mas sem perder o fio da realidade que descortina as armações, as mentiras, a ambição e a sordidez política que levaram ao massacre da expedição do padre Calleri e ao genocídio do povo Waimiri-Atroari, no final da década de sessenta.

Dizer o que eu disse penso ser a razão fundamental de ver em “Tocaia do Norte” um livro que está apenas começando sua jornada para se tornar um daqueles romances de leitura obrigatória para quem é amante da boa literatura, mas isso abarca muito pouco do muito que o leitor descobrirá navegando em cada uma de suas páginas e confirmando o novo voo literário, seguro e promissor, da Sandra Godinho.




 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

LIVROS & ENCANTAMENTOS: 2PERMANÊNCIAS OUTONAIS", POR ROBERTA GASPAROTTO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/02

"AOS QUE PENSAM NAO VIVER."

"PERMANÊNCIAS OUTONAIS", DE VANIA CLARES

POR ROBERTA GASPAROTTO


São para essas pessoas que a poeta e escritora Vania Clares dedica o seu livro, Permanências Outonais, Ed. Sarasvati.

Livro sensibilíssimo e que trata de um tema tabu de forma sublime e, ao mesmo tempo, muito corajosa.

O leitor é convidado a mergulhar no mundo da personagem (e também, narradora) que, diga-se de passagem, não tem nome.

Essa personagem bem poderia ser eu, você ou todo mundo, ou ao menos, todos que sejam valentes o suficiente para mergulhar em suas dores e se deixar impregnar por suas escuras e nebulosas tintas.

Sejamos sinceros: quem, se for minimamente honesto consigo, já não pensou que seria melhor não viver?

E a perspectiva que a autora escolhe para fazer essa narrativa é a mais acertada possível: do ponto de vista da alma, que não julga, não tem preconceitos, nem faz cobranças. Apenas acolhe o que vem, seja lá o que for.

Logo no início do livro, a personagem tece longos pensamentos a respeito de como seria sua própria morte: onde, de que maneira, qual o lado do muro seria mais adequado cair, e outras divagações sobre o tema.

Depois, ela recorda, pouco a pouco, situações dolorosas da infância, seu grande amor que se foi, e as angústias vivenciadas durante o processo.

Ressalto aqui, que essas lembranças não vem de forma óbvia. O caminho escolhido pela autora é sempre o caminho do paradoxo, da abertura para um pensar além das aparências. Talvez por isso, ao ler esse livro, eu tive a forte impressão de estar envolvida em um ambiente onírico, não no sentido de fantasioso, mas no sentido de tudo ser possível - sem riscos de achatamento ou julgamentos morais.




 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ELES LEEM ELAS: TUDO O QUE MORDE PEDE SOCORRO, POR CEFAS CARVALHO


ELES LEEM ELAS|02

"Todos os abismos convidam para um mergulho" e "Tudo que morde pede socorro", de Cinthia Kriemler



Quem acompanha o que eu escrevo sabe que não tenho pendor para resenhas literárias ou cinematográficas, muito menos para academicismos, razão pela qual produzo poucas resenhas. Escrevo de maneira pessoal e passional sobre leituras, filmes e peças teatrais que, não necessariamente eu gosto, mas, que me impactam, de alguma maneira, ou várias. Como consumidor de conteúdo artístico, aprecio o que me tira da zona de conforto, me deixa sem chão, o que me incomoda, mesmo.

Dito isso, vamos ao impacto que a leitura dos dois romances de Cinthia Kriemler causaram em mim. Escritora carioca radicada em Brasília, Cinthia lançou além de livros de contos e poesias, os romances "Todos os abismos convidam para um mergulho" (2017, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2018) e "Tudo que morde pede socorro", lançado há pouco mais de um mês, ambos publicados pela Editora Patuá. Quis o destino que eu lesse ambos no espaço de um mês, como um raio que cai duas vezes no mesmo lugar. E causa estragos.

Os romances de Cinthia são construídos por mulheres devastadas às voltas com o caos interior, passados traumáticos e o cotidiano problemático a cobrar soluções imediatas. Em "Todos os abismos convidam para um mergulho" temos a protagonista Beatriz, mulher forte, mas traumatizada com o suicídio da filha Laura (não há spoilers, essa informação é transmitida nos primeiros capítulos) e a subsequente separação do marido Bernardo. Entre a culpa que sente pela morte da filha, ela se vê entre uma mãe tóxica e o peso emocional dos casos que ouve como assistente social no serviço público. Sua válvula de escape é o sexo. Sempre com desconhecidos e em lugares estranhos e/ou sujos.

A epígrafe do romance dá o tom da protagonista: "Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um dor" (Rachel de Queiroz). Este conceito perpassa as 260 páginas do romance.

Em "Tudo que morde pede socorro", temos uma protagonista igualmente ferida, Leonora, na alma (lembranças da violência que sofria do marido falecido) e no corpo (um braço amputado após um acidente automobilístico). Novamente, nenhum spoiler: Essas informações são passadas no início, para que tenhamos noção da devastação da alma da personagem. Que a própria frase inicial da sinopse na contracapa já denuncia: "Leonora é uma mulher que vive com os seus demônios".

Assim como em "Todos os abismos..." este "Tudo que morde..." apresenta a protagonista às voltas com os demônios interiores, um passado traumático e cheio de sombras e também com os problemas práticos dos personagens em volta. No primeiro, as crianças e mulheres agredidas e abusadas por pais e companheiros. Neste segundo, uma adolescente grávida e um jovem refugiado afegão que não consegue esquecer os horrores que viveu. Todos sempre gravitando em torno das protagonistas e aumentando a tensão em que já vivem.

Não obstante as semelhanças, a estrutura dos romances é bem diferente. O primeiro se passa em uma cidade grande, o caos urbano ajuda na compreensão da dinâmica da protagonista. No segundo, a protagonista se muda para uma cidade do interior de Minas Gerais, Baependi, onde vive em ritmo de cidade pequena e ainda redescobre questões histórico-religiosas, como a saga da escravizada Anna Bonifácio e de Nhá Chica, que foi beatificada.

Em comum entre os dois romances, o controle total da narrativa, primeiro apresentando as protagonistas e suas camadas, até que elas ganhem formato tridimensional. Em seguida, conhecemos o universo e as pessoas que cercam as protagonistas, para então, as tramas terem início e as sombras lentamente começarem a ganhar luz.

Cinthia consegue, no processo de construir protagonistas tridimensionais, vidas, pulsantes, não ter piedade em mostrar, seja em atitudes destrutivas e violentas, seja em frases sutis e subtextos, expondo sem maquiagem e meia luz todas as características - baixezas e grandezas, defeitos e qualidades, idiossincrasias e contradições - das protagonistas.

No processo de Beatriz e Leonora de lutarem contra os demônios interiores e externos, pode-se ou não pensar em uma redenção final. Esperança e sentimentos edificantes não fazem parte da narrativa. O compromisso de Cinthia é com a narrativa, a qualidade literária dessa narrativa e com os holofotes jogados (ou retirados) das protagonistas, para que leitores e leitoras adentrem um universo de desconforto, de incômodo, sem, repetindo aqui, uma certeza de redenção e/ou salvação.

  
Ou seja, vida real. Pessoas reais, este é o material de trabalho de Cinthia Kriemler. Que resulta em uma leitura que impacta ou incomoda. Mas da qual não se pode ou não se deve fugir. Assim como a vida real.


 


domingo, 27 de dezembro de 2020

LIVROS & ENCANTAMENTOS: "PECCATUM", DE CHRIS HERRMANN, POR ROBERTA GASPAROTTO

 



Encantamentos/01

Para ouvir a versão podcast clique AQUI.

"Durante a missa, Carolina percebeu novamente os olhares cortantes vindos das carolas nos bancos da fileira oposta a deles. Já não conseguia prestar atenção à Homilia. Perguntava-se se aquelas mulheres sabiam de seu romance secreto com Teresa (...) Ao término da missa, as famílias voltaram a se reunir em frente à paróquia. As flechas que a furavam se intensificaram e Carolina sentiu vontade de fugir dali. Ela agora estava certa de que elas sabiam de tudo, embora não compreendesse como. Os pingos de chuva que começavam a cair lhe pareceram a salvação..."

                                                                  (Peccatum, de Chris Herrmann)

 

Se você, assim como eu, gosta de uma narrativa ágil e, ao mesmo tempo, atenta a detalhes, lhe aconselho a ler o livro “Peccatum”, da escritora e poeta Chris Hermann, lançado pela editora Arribaçã.

Trata-se da história de amor entre duas mulheres. Carolina, a personagem principal, é casada com um militar que lhe dá pouca, ou nenhuma, afeição. Extremamente religiosa, ela vive esse amor por Teresa repleta de sentimentos de anseio, culpa e ambiguidades.

Peccatum se inicia na época da ditadura e termina em meados dos anos noventa. Apesar de não ser o foco do livro, toda a trama perpassa e dá pinceladas certeiras sobre esse período turbulento da história do nosso país.

Ao final da leitura, Chris Herrmann nos presenteia com uma escrita leve e com ótimo toque de humor. Peccatum é daqueles livros para a gente refletir, e também, para a gente se deliciar. Quer mistura melhor?

Chris Herrman é carioca, radicada na Alemanha desde 1996, escritora, poeta, musicista, editora da "Revista Ser MulherArte", tradutora, webdesigner. É pós-graduada em Musikgeragogik na Alemanha. Organizou e participou de diversas antologias de poesia no Brasil e no exterior. É autora dos livros de poesia "Voos de Borboleta", "Na Rota do Hai y Kai", "Gota a Gota", "Cara de Lua", dos romances "Borboleta — a menina que lia poesia" e "Peccatum" e "Entre Amoras e Amores" (minicontos).

Para aquisição de livro(s), entre em contato com a autora clicando aqui.





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