segunda-feira, 29 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO|06, POR GABRIELA LAGES VELOSO

 CONTE-ME UM CONTO|07

O   R E L I C Á R I O

POR GABRIELA LAGES VELOSO

Após uma longa noite de sonhos intranquilos, Moira desperta sobressaltada, levanta-se e põe-se em frente à uma antiga penteadeira – uma relíquia pertencente à sua família, por gerações. Por um instante, ela contempla o espelho e vê uma mulher de oitenta anos, com seus cabelos grisalhos em completo desalinho, rugas ao redor dos olhos e boca, bem como, olhos azuis, que outrora cintilavam, mas agora se encontram opacos.

– “Em qual espelho ficou perdida a minha face?”  – suspirou, angustiada.

Moira é uma juíza renomada, aposentada há alguns anos, que mora em uma suntuosa mansão. Mas, apesar de toda a sua riqueza, não tem herdeiros. Logo após a aposentadoria, ela entrou em crise, pois encontrou-se frente a frente com a pergunta que a inquietou por toda a sua vida: quando será o meu tempo?

Ao sair de seu quarto, Moira caminha até uma grande janela, no final do corredor, e põe-se a observar a chuva. À medida que cada pequeno cristal d'água cai sobre a grama, traz à tona, com toda a vivacidade, as antigas memórias da aurora de sua vida.

A pequena Moira adorava dias de chuva, pois, nesses dias, sua mãe tinha o hábito de contar histórias, sentada em uma cadeira de balanço, para ela e suas duas irmãs, que faleceram em um trágico acidente, quando Moira tinha apenas cinco anos de idade. Por isso, a menina cresceu sufocada pela superproteção materna e as altas expectativas do pai.

Agora, em frente à grande janela, Moira estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu o avançar das horas. Permaneceu nesse transe até as sete horas, quando a governanta veio chamá-la para tomar seu desjejum. Alguns instantes depois, Moira estava perante à mesa posta com fartura, mas ela estava sem apetite, e quis tomar apenas uma xícara de chá.

– De fato, do fundo do poço só se pode tirar memórias ou mesmices ... – refletiu, Moira.

Que contraste Moira enxergou entre a fartura deste café da manhã, para uma única pessoa, e todas as refeições de sua família – ou até mesmo a ausência delas – em seus dias de infância. Essa percepção a transportou para o dia em que sua mãe recebeu um misterioso presente de uma falecida senhora: uma penteadeira de mogno, com miligramas de ouro incrustado em desenhos floreados, e um espelho embutido no majestoso móvel.

Moira aprendeu a ler e escrever bem cedo. Seus dias eram milimetricamente administrados pelo pai, que tinha um único objetivo na vida: fazer com que a filha jamais enfrentasse as mesmas privações pelas quais ele passou. Por isso, a menina tinha de estudar, dia e noite, para que, no futuro, tivesse uma profissão de prestígio e retorno financeiro a curto prazo.

Após o seu desjejum, Moira caminha por vários corredores e decide ir até o seu oásis particular: uma biblioteca de grandes dimensões, com prateleiras até o teto, todas preenchidas com edições de luxo de centenas de livros, desde os clássicos até os contemporâneos da literatura universal, em vários idiomas. Um leve lampejo, acende uma fagulha em seus olhos azuis. Ela está no único lugar em que realmente se sente realizada.

Moira pensou como teria sido sua infância em uma biblioteca como aquela, como teria se divertido, inventando suas próprias histórias, ou até mesmo imaginando ser a protagonista de seus romances favoritos.

Quando menina, seus passatempos favoritos, nas folgas de sua pesada rotina de estudos, imposta pelo pai, eram ler contos de fadas e romances que a transportavam para outros momentos e mundos e brincar em frente à majestosa penteadeira de sua mãe. Ao contemplar o espelho, ela não via a pequena garota de belos cachos castanhos e olhos azuis cintilantes, e sim, a protagonista da história que estava lendo, ou escrevendo.

O maior sonho de Moira era se tornar uma grande escritora, no futuro. Por isso, ela tinha um diário, no qual criava um mundo todo seu, cuja única lei era a liberdade. Bem, esse era o seu sonho, porém ele não estava nos planos de seu pai, que queria, a todo custo, que ela fosse rica. Por essa razão, ela escondia seu diário na última gaveta do imponente móvel de mogno, assim também como sua força para escolher o próprio destino.

Ainda na biblioteca, uma pequena lágrima cai dos tristes olhos azuis de Moira, ao lembrar de seu antigo diário infantil e perceber o quanto a sua existência foi vazia... vazia de significado, e, principalmente, de felicidade.

– Cada instante do nosso passado, nos faz ser quem nós somos – disse consigo mesma.

Nesse instante, a governanta entra na biblioteca e encontra Moira em prantos.

– A senhora está se sentindo bem? – perguntou a governanta.

– Não se preocupe comigo, só estou um pouco emotiva. – disse Moira, enxugando as lágrimas.

– Desculpe interrompê-la. Mas o Contador está lhe aguardando na sala de visitas, devo pedir-lhe que retorne em outro momento? – disse a governanta, com um olhar compreensivo.

– Não. Diga que irei descer em alguns minutos – disse Moira, resignada.

– Certo, senhora. Você realmente está se sentindo bem? – insistiu a governanta.

– Obrigada pela preocupação, mas o meu problema não pode ser resolvido agora – disse Moira, enigmática – não deixe o Contador esperando, diga que irei em instantes.

A compaixão de sua funcionária a fez viajar mais uma vez em suas memórias. Moira se viu perante o seu único e melhor amigo, que era também seu vizinho. Os dois costumavam brincar juntos no quintal de suas casas. Ele costumava ouvir, pacientemente, as queixas de Moira sobre a superproteção dos pais e como se sentia sufocada, por isso. O garoto sempre a alegrava e distraía com suas histórias, pois ele também era dono de uma imaginação fértil, porém, estava fadado a um destino no qual sua criatividade de nada valia. Ele era extremamente pobre, vivia em uma miséria maior do que a família de Moira jamais experimentaria. Por isso, quando completou apenas dez anos de idade teve de começar a trabalhar em uma fábrica de tijolos, para que a família não definhasse de fome.

Temendo que a filha se apaixonasse pelo garoto, quando eles chegassem à juventude, e assim tivesse um destino diferente do que ele planejara, o pai de Moira proibiu a amizade das duas crianças, o que as condenou a um caminho, no qual não havia tempo, nem espaço, para amizades ou sentimentos, somente para a monotonia diária e a solidão.

O temor do pai de Moira tinha uma explicação. No passado, ele é que fora o melhor amigo pobre de sua esposa. A avó, que Moira jamais conhecera, era uma mulher muito rica, que tinha apenas duas filhas, dentre as quais a primogênita um dia viria a ser a mãe de Moira. Contudo, a rica senhora não aprovava o relacionamento entre sua distinta filha e um rapaz tão humilde, pois acreditava não passar de um mero interesse financeiro. Por isso, deserdou sua primogênita no dia em que recebeu a notícia do casamento e se ausentou, assim, para sempre da vida de sua filha. Somente em seu leito de morte, arrependeu-se pela dura decisão e suplicou a sua segunda filha, a única herdeira de toda a sua fortuna, que entregasse a penteadeira à sua irmã, pois era uma relíquia, que atravessava gerações de primogênitos de sua descendência.

Agora, em seu escritório, Moira discute acaloradamente com o seu Contador, pois descobre um desfalque em suas finanças. E toda essa agitação lhe causa uma enorme dor no peito e ela cai desmaiada. Quando Moira recobra seus sentidos, ela se encontra deitada em sua cama e percebe o olhar cansado de sua governanta, que ficara em vigília, a noite inteira, cuidando de sua estimada senhora.

Um turbilhão de pensamentos invade a mente de Moira. Ela enxerga sua vida como um delicado castelo de areia que está sendo soprado pelo impetuoso vento da morte. Restam, agora, poucos grãos...

Ela percebe que sua existência fora preenchida unicamente pelas ausências de seu passado. Em seu peito aquela mesma dor se acentua, ela enxerga uma luz muito forte e imagina como teria sido a sua vida se ela tivesse, de fato, tomado as rédeas de seu próprio destino. Pois, em seu último suspiro, ela compreendeu que o futuro é um quebra-cabeças, com inúmeras lacunas, que podem ser preenchidas por várias peças disponíveis.

Inquieta, com a respiração ofegante, Moira desperta no dia de seu décimo oitavo aniversário. Tudo não passou de um sonho...

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Gabriela Lages Veloso (@_gabriela_lv) 

É escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colaborou com coletâneas e revistas nacionais e internacionais.

 

Referência:

VELOSO, Gabriela Lages. Conto O Relicário. In: Revista Intransitiva – Memórias que nos atravessam, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, Dez./2020.

domingo, 28 de agosto de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO|02: SOTÃO, POR RITA ALENCAR CLARK

 


LIÇÕES DE SILÊNCIO|02

POR RITA ALENCAR CLARK

O SÓTÃO


Nas horas quentes de uma tarde azul 

O vento vem e se deita comigo 

Calo-me e escuto, naturalmente inquieto-me, 

É que há sempre algo a ser dito por 

Brisas suaves ou tornados absolutos 

Inquieto-me. 

Breve estarei sozinha, de olhar ao longe... 

Debruçada à janela esquecida do sótão 

Navios que partem e que chegam enquanto meus olhos veem. 

Os sótãos são momentos e guardam segredos eternos 

Nossos e de ontem, dos outros e secretos. 

Inquieto-me por não saber o destino de tantas 

Esperanças inscritas em cadernos e folhas de blocos avulsos, 

Ensaios delirantes e impublicáveis meus,

Nessa hora azul de silêncio, e sofro.

Sofro as dores do ficar, do não partir a vida ao meio, 

De entender e desistir das jornadas e aventuras 

Aguando os olhos com a tristeza de uma saudade 

Desconhecida, de um futuro que jamais terei ou conhecerei. 

Tudo, tudo haveria de permanecer intacto 

Naquele sótão, naquela tarde azul 

Sufocante e de mormaço letárgico, quieto. 

Apenas eu, eu e meus pensamentos, 

Apenas nós permaneceremos inquietos.

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Rita Alencar Clark
É poeta, contista, cronista e ensaísta amazonense, membro da ALB/Am, membro do Clube da Madrugada e do Coletivo Mulherio das Letras, tem 2 livros publicados e várias coletâneas.


ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

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LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O TROMBONE, POR HELENA TERRA

     


V E R B O   M U L H E R|01

HELENA TROUXE O TROMBONE

Por Helena Terra

          “Para diminuir a febre de sentir” é o nome de um livro da Dalva Maria Soares. Comprei e estou ansiosa, embora eu não seja ansiosa, para ler. O Tonio Caetano, um escritor aqui do Sul, escreveu que o livro dela é sobre a coragem de dizer o que se sente. Lembrei na hora do poema, da Adélia Prado, que diz que “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Eu acho que até falo sobre o que sinto em alguma medida. E é esse em alguma medida o problema, o espinho que me incomoda. Mais que isso: me fere, pois me silencia. E de silêncio, de viver em uma sociedade permeada pela ausência de diálogo, com homens dizendo sobre o que, quando, até que ponto e de que forma devo existir e falar estou farta. Estou farta em causa própria e, também, das outras mulheres. O silenciamento é geral, faz parte do jogo de dominação e busca pelo poder estabelecido pelo rançoso e malsucedido patriarcado, porque, cá entre nós, o patriarcado é uma máquina primitiva e feroz de criar desigualdades e intimidações. Vou dar um exemplo: 

        Não faz muito tempo, um namorado me disse em tom de ameaça: Helena, não me incomoda! E por que disse? Não faço ideia. Não havia acontecido nada, não estávamos em conflito. Pelo menos, eu não estava. Na verdade, deitada no sofá de sua casa, eu, quieta e satisfeita, lia um romance. Se algo desagradável estava acontecendo, esse algo acontecia, cem por cento, na cabeça dele com as questões dele. Questões que eu nunca soube direito quais eram por diversas razões, sendo a principal a de que ele não aceitava falar sobre suas dificuldades e equívocos de qualquer ordem comigo. Não sei se com alguém. O que sei é que elas alteravam o seu humor e o autorizavam a agir no campo das hostilidades. Eu não tenho uma natureza hostil e sou bem-educada. Recebi e introjetei a perigosa boa educação dada às mulheres, e falo perigosa, porque ela, volta e meia, serve à perpetuação da verticalidade das relações entre casais heterossexuais. Cabe à mulher ser compreensiva e gentil. Cabe à mulher ser generosa com o seu homem. Cabe a ela se calar e digerir, como se fosse natural, a agressividade masculina.

           Nos últimos anos, tenho cruzado com homens mais agressivos do que eu costumava. O discurso sexista propagado pelo senhor que está à frente do país, não tenho dúvida, resgatou e reforçou, mesmo entre os homens já mais civilizados e democráticos, comportamentos e falas discriminatórias e opressoras. De certa forma, houve uma recaída em direção aos ancestrais que animalizavam suas companheiras. De certa forma, o botão do protagonismo masculino foi acionado como se vivêssemos na época do Brasil colônia, aquele culturalmente dividido entre mulheres brancas e negras, sinhazinhas e escravas, todas igualmente ultrajadas embora de diferentes formas, sendo as mulheres negras em uma escala ainda maior e mais destrutiva de violência. As mulheres negras são mais agredidas e inclusive estupradas até hoje. “Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente”, Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ressalta. Eu sou uma mulher branca. Nessa nossa pirâmide de opressão e ofensas, recebo uma cota um pouco menor de dor. Mas recebo também. Ou recebia. Bati o meu martelo e inaugurei a minha era Bye Bye Autoritário enquanto não chega a de Aquário.

          O último homem que me disse, sim, voltei a ouvir a frase Helena, não me incomoda, caiu da própria altura em tempo recorde. Meu detector de toxicidade disparou na mesma hora. Não há mais espaço na minha vida para abusos de qualquer natureza. Como também não há mais cegueira. Vejo a violência psicológica com clareza por mais que ela seja imaterial. Se eu estivesse dentro do livro “Ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago, me candidataria ao papel de guia e não de cega.  A violência psicológica contra as mulheres, assim como o racismo, também é estrutural, vai além da misoginia, sendo que por ser invisível, acaba se tornando não denunciável e não sendo denunciável, também não se torna punível. Mas, de qualquer forma, je t’accuse! Sim, a ti e a qualquer um em que sirva a carapuça, porque a carapuça serve a muitos. Serve também àqueles que se omitem e desculpam os seus amigos quando os veem sendo prepotentes, injustos, desonestos e cruéis com uma mulher.

         Me disse um amigo, escritor a quem admiro, que isso, essa boa vontade entre iguais, se deve à brotheragem, o sentimento gratuito de simpatia de um homem para com outro homem. Sentimento gratuito mesmo porque ser simpático a alguém violento não é justificável. Já uma amiga, escritora a quem também admiro, chama isso de “passar pano”. “Os homens passam pano para os homens”, ela diz. Mas eu não sou homem, portanto vou torcer o pano até não restar mais uma gota de água, sujeira ou mágoa. Violência gera mágoas. Eu guardo algumas, principalmente, por não me expressar e não ter enfrentado os agressores com que me deparei, alguns com alta competência para a destruição.  No livro “Pandemonium”, do Zeca Fonseca, o livro que mais gosto de ler depois do “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar, Lemok, o protagonista, conta que, na tentativa de minimizar as frustrações e dores que sentia, acabava por fazer as coisas de um jeito que o fazia sofrer ainda mais. Ou seja, enlameando a vida de um modo autodestrutivo. Eu, sinceramente, acho o direito de autodestruição super legítimo. O problema é que existe o autodestrutivo da espécie terrorista.

          Espécie terrorista? Explico: o autodestrutivo terrorista é aquele homem que explode bombas em vez de tomar um silencioso copo de cicuta e depois, diante dos estilhaços, corpos e sentimentos atingidos de quem estava perto, normalmente a mulher que o estima, ainda se vitimiza quando ela se recusa a virar cinzas junto com ele e vai embora. Aí, em vez de pensar sobre si mesmo, o que fez, se desculpar e tentar uma reparação, o terrorista se enche de raiva como se se enchesse de dignidade e fala grosserias: sua opinião sobre mim não me interessa. É claro que não interessa. Todo mundo sabe o quanto Narciso acha feio o que não é espelho e o quanto não conhece remorso. Narciso, o do mito, até onde sei, via em seu reflexo algo encantador. O que não é o caso da maioria. A maioria dos narcisos contemporâneos vê a sua própria brutalidade e os seus próprios fracassos. E, para lidar com eles, é óbvio, que coragem e humildade são itens necessários. Quem não se vê, não se transforma. Segue viciado em si mesmo. Não conheço pior adição do que essa. Ela está por detrás de todas as outras. O viciado sempre encontra uma justificativa para o que faz e diz qualquer coisa para manter-se drogado. Até rouba.

          No último verão, uma mulher, em estado de estresse, me procurou em uma rede social. Tinha sido roubada por um homem com quem convivi anos atrás e estava muito confusa. Segundo ela, um dos fatores que tinham contado a favor de seu interesse por ele era o dele ter tido um relacionamento comigo. Julguei ele por ti, Helena, me disse, comecei a sair com ele pensando que ele fosse bacana como você. Eu sabia que ele não era. Roubou também a mim. Mas como advertir as outras mulheres sobre os homens que conhecemos?  Nesse ponto também vivemos um silenciamento e um aprendizado. Falo por mim. Já entendi que mesmo que andemos em pares, seguimos sendo cada um cada um. Não é porque a ex de um fulano é uma mulher incrível que ele também é. E já entendi que devo soltar o verbo, dizer o que sinto, como escreveu o Tonio Caetano a respeito do livro da Dalva Maria Soares. E o que sinto é que devo, doa a quem doer, tocar o trombone de Asdrúbal. Fazer barulho. Reagir. Incomodar. E por falar em Asdrúbal, esse era o nome do meu avô paterno. Não foi um homem legal. Depois de quarenta e três anos tratando minha avó como uma serviçal, a abandonou. Perguntei a ela o porquê. Respondeu: por um só menos, netinha. Acho que não. Meu pai foi vê-lo em seu derradeiro momento, e pensou em dizer te amo, velho. Não conseguiu. Não era verdade. E sem a verdade é tudo de mentira.

@helenaterracamargo


ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS, POR ALE HEIDENREICH




 ENTRELAÇOS - ENTRE PERNAS E ABRAÇOS |01


Por Ale Heidenreich

🌶 ATRÁS DA PORTA 🌶



♡ Há amores que esvaziam.
Se não preenchem,
vazios são. 
A.H.♡

Fez sexo sem amor, mas com vontade. Só queria mesmo era que lhe fizesse ter um orgasmo. Dos grandes! Falava-lhe ao ouvido palavras ordinárias que excitavam mais a ela que a ele. Mas esse era o seu objetivo.

Ela estava quase alcançando o ápice da loucura, quando ele interrompeu o ato e a mudou de posição. 

“─ Ódio! Quem ousa me roubar o orgasmo? – Filho da puta!” Pensou.

E, enquanto ele a torturava com aquela posição desconfortável e dolorosa, veio uma frase em sua cabeça que a fez lembrar que não é obrigada a nada: “Homem que fode mal, tem que saber que faz sexo ruim!” E foi aí que o interrompeu também e disse: ─ Não meu querido, eu quero é aquela outra posição que eu estava! E é assim que eu vou gozar!”

Encostou-se e o puxou pra cima de si. “­─ É assim que eu quero! Você entre as minhas pernas!”

E o apertou tanto, o beliscou tanto! E lhe falou tantas putarias aos ouvidos! E lhe mordeu tanto as pequenas orelhas. E quando o bendito, merecido e sagrado orgasmo veio, quase morreu sufocada com os próprios gritos contidos!

A porta da varanda do quarto de hotel, no primeiro piso, que dava para um grande terraço, estava aberta, e abria-se para um lindo parque verde. Seus costumeiros gritos poderiam ter chamado a atenção dos passantes e distraídos comensais, que degustavam suas comidas e bebidas no terraço logo abaixo, na calçada do hotel.

Deixou um “sorriso Mona Lisa” estampar-se nos cantos de sua boca, imaginando as sirenes da polícia, carros do bombeiro e da ambulância, depois de ter seu orgasmo denunciado como crime de conduta moral ou atentado ao pudor. Riu de si mesma...

Mas, isso era só um reflexo do pós-orgasmo, onde se pensava em bobagens ou em mais nada, quando se tinha um braço aconchegante para o repouso póstumo.

Olhava as cortinas brancas esvoaçantes, sob o sol de finalzinho de tarde. Era bucólico. Parecia cena de filme de época: cortinas finas ao vento. A brisa balançando uma guirlanda rodopiante de cristal. O sol morno. Os pássaros cantarolando. O bosque no parque. O céu azul.

Mas ali não existia carícias nem repouso em abraço. Só um olhar pidão e carente, desejoso do brinquedo prometido. Fez-se de difícil, mas ao fim cedeu e não tirou o doce da boca daquela criança.

Ele lambuzou-se todo naquele prazer de menino-homem-carente, e ela, ao final, contentou-se em ouvir a frase que declarava o seu triunfo:

“─ És muito gostosa!”

Conversaram sobre coisas sem importância. Ducharam-se, como que para limpar a impureza impregnada daquele pecado. “─ Deus tá vendo!” Ouvia dela mesma. “─ Deus perdoa!” Dizia para ela mesma.

Trancaram o quarto atrás de si, e colocaram a chave sobre o balcão vazio daquele hotel discreto e aconchegante. Saiu desfilando “a la madame”, com seu chapéu e vestido pretos, do mesmo modo como entrou.

Entrou no carro do rapaz e, momentos depois despediram-se. Cada um tomou a sua estrada.

O resto, ficou atrás da porta.

Não era puta e nem vadia. Era mulher.


Ale Heidenreich
Foto do arquivo pessoal

Ale Heidenreich é brasileira radicada na Alemanha desde 2004, mas segue incondicionalmente apaixonada pelas suas origens, Recife/PE. Seus poemas encontram-se registrados em diversas antologias e coletâneas espalhadas pelo Brasil e Europa.  É nas palavras que se encontra, e através delas conecta-se ao seu interior, externando, em forma de poesia, os sentimentos contidos.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO, POR MARGARIDA MONTEJANO

 


                 CONTE-ME UM CONTO|06

A   M Ã O   E   O   E S P E L H O

Por Margarida Montejano

Era uma sexta-feira comum numa cidadezinha pacata do interior de São Paulo.  Éramos jovens funcionários de um banco, na casa dos 20 anos. Eu, Márcia e meu amigo Jorge sentados em guichês coligados, esperando os clientes do banco chegarem.

Sim. Trabalhávamos como caixas bancários, naquele tempo em que não havia caixas eletrônicos e o atendimento era mecânico e humano simultaneamente, tínhamos que executar as operações monetárias e, ao mesmo tempo, agradar o cliente, pois era essa a política para se manter no emprego.  Pois bem. Havia alguns dias no mês em que o trabalho era raro. Tínhamos que nos cuidar para não cochilar.

Num desses dias, apesar de me mostrar sempre animada e criativa para passar o tempo, estava meio entediada, pois as horas não passavam. Foi então que meu colega Jorge provoca, dizendo: 

─ Não é você que sempre arranja um jeito de nos animar? Qual talento usará hoje para que o tempo passe depressa?

Pensei um pouco e, como adoro ser desafiada, fui logo dizendo:

─ Me dê tua mão!

─ Por quê? Vai me pedir em casamento?

Olhei paro os olhos dele e falei sério:

─ Jorge. Dentre os talentos que tenho, há um que você não conhece. Eu leio mãos. Pratico quiromancia.

Ele olhou-me incrédulo, duvidando. Foi então que o desafiei:

Vamos! Me dê sua mão esquerda!

Ele, em meio àquela calmaria, olhou e viu que não vinha ninguém em direção aos caixas. Esticou o braço e estendeu a mão.

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Foi aí que tudo começou. Como alguém que entendia do assunto, fui logo lançando meu olhar na direção das linhas daquela mão jovem e magrela, que se encontrava, naquele momento, úmida de suor. Estava meu companheiro nervoso e eu me divertindo um bocado.

Anda, Márcia! Por que essa demora? Dizia meu colega aflito com receio que chegasse algum cliente.

Séria, como se visse algo nas linhas de sua mão, relatei a ele o texto que em minha mente se formava:

─ Jorge. Você irá se transferir de agência… será promovido em breve e, após formar-se na faculdade, se casará com uma jovem que não é a sua atual namorada. Pronto.

Importante dizer que as palavras descritas a ele eram uma projeção possível, pois eu o conhecia há um bom tempo: ele era um bom funcionário, dedicado e com potencial para liderança, logo uma promoção teria muita chance de acontecer. A transferência, uma possibilidade real para todos nós que lá trabalhávamos, também era fato. Muito bem. Com relação ao futuro afetivo de Jorge, eu também já tinha os dados. Ele estava terminando o curso superior e o namoro dele, pelo que ele mesmo contava, ia de mal a pior.

Conclusão. Brinquei com Jorge e fiz a previsão de seu futuro considerando as possibilidades.

Ele ficou pensativo, mas logo os clientes vieram e tratamos de esquecer essa brincadeira de desocupados. Seguimos por cerca de uns três meses trabalhando, levando a sério as atividades a nós confiadas e nos ocupando de passar o tempo com criatividade, o tempo que nos rodeava.

Jorge, um belo dia me chama e diz:  

Márcia! Não é que você adivinhou mesmo! Recebi uma promoção e terei de me mudar de cidade.

Que bacana, amigo! Eu disse surpresa! 

Fico feliz por você!

E assim Jorge foi para outra cidade, outra agência e eu fiquei sem meu companheiro de trabalho e de assuntos aleatórios.

Não é que, em uma manhã, eu ainda não havia assumido os trabalhos no caixa, pois faltavam 50 minutos para a agência bancária abrir, uma funcionária me chama e avisa que havia uma mulher à minha procura, dizendo-se ser a mãe de Jorge. A dona Odete.

Fui, é claro, atendê-la, como fazia com todos que me procuravam na agência. Ofereci a ela um café e já embalei na pergunta:

Bom dia, dona Odete! Em que posso ajudá-la?
Ela pediu para falar comigo em particular. Levei-a até a cozinha que estava vazia naquele momento.

─ Márcia! Leia minha mão? Disse-me ela de forma direta.

 O quê? Engasguei com o café. Não estou entendendo!

 Márcia, você leu a mão de meu filho e você acertou. Está acontecendo tudo o que você viu nas mãos dele. Ele se mudou de agência e cidade, foi promovido a gerente e você acredita que ele rompeu com a Cris e está super apaixonado por Paula?

Naquele momento lembrei-me de minha travessura lendo, de forma inconsequente, as mãos de Jorge. Tremi nas bases. Respirei e expliquei a ela que eram coincidências, pois eu havia brincado com Jorge. Que não lia mãos.

Ela foi logo pegando em minhas mãos e oferecendo as suas, implorando para que eu as lesse.

Dona Odete. Ouça-me. Eu brinquei com Jorge. Não leio mãos, repeti:

Ela com os olhos cheios de lágrimas me implorou. 

Moça. Por favor! Diga-me alguma coisa, pelo menos! Eu estou a um passo de explodir, de fazer uma loucura! 

Estava desesperada, com os olhos tomados de lágrimas. Era visível a necessidade daquela mulher de ser ouvida. De receber atenção. De um ombro, um colo, uma palavra!  Sentamo-nos no banco daquela cozinha gelada como todo ambiente bancário, peguei as duas mãos da senhora aflita à minha frente, e disse:

Fala-me: o que está acontecendo? Rendi-me ao pedido.

E ela falou da traição e separação do marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de desistir de tudo. 

Ela desabou ali e contou-me de suas dores. A mim, uma mulher desconhecida.

Ouvi com atenção cada palavra. Ela chorou e eu chorei junto com ela. Quando ela parecia mais calma e recomposta, eu disse:

Odete. Vou lhe chamar assim. Não preciso ler tua mão. Você vai vencer essa tormenta, porque você é mulher e, por isso, é forte. Vai enfrentar a adolescência dos filhos com coragem, porque você é mãe e os ama e vai ainda ser muito feliz. É esse o seu desejo e também porque o mundo não acaba quando um casamento não dá certo. Creia nisso! Acredita. Tudo se encaminhará! 

Ela secou os olhos vermelhos com as mãos. Agradeceu-me por ouvi-la e saiu. 

Naquele dia, a agência lotou de clientes e eu mal tive tempo de pensar no que havia se passado na cozinha. De organizar as ideias. De respirar, de entender o ocorrido naquela manhã.

Passou o tempo, desliguei-me do banco, formei-me professora, casei-me e fui morar no Rio de Janeiro. 

Um belo dia, em visita à cidade natal, estava eu na farmácia São José, sendo atendida por um balconista, quando, dentre outros clientes que também esperavam no balcão, uma mulher reconhece minha voz e, sem demora, me aborda!

Moça. Dá licença. Você não é a Márcia que trabalhava no banco com o Jorge, meu filho? 

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Eu gaguejo, olho nos olhos dela e a reconheço. Estava mais envelhecida, mas ainda muito bonita. A senhora é a…

Odete. Sim, mãe do Jorge! 

Enquanto o balconista providencia minha compra, converso com ela:

Olá Odete! Prazer em vê-la! Eu disse meio espantada.

Como a senhora está? E seu filho? Eu gostava muito de trabalhar com ele!

Ela esperou eu terminar de ser atendida, puxou-me pelo braço num canto da farmácia e foi logo dizendo:

Nossa, menina! Como eu a procurei! Muito obrigada! Preciso dizer que tudo o que você falou para mim, naquela cozinha, aconteceu! 

Emocionada pegou minhas mãos e apertou-as como se quisesse transpor a mim sua energia. Sua gratidão.

Aos poucos fui me desvencilhando das mãos da bela senhora e fiquei por uns segundos olhando-a. Um tempo de um raio ou de uma eternidade durou a cena. Só sei que foi o suficiente para lembrar-me de tudo o que aconteceu e pude dizer a ela, com detalhes, o que senti naquela manhã no banco.

Dona Odete. Naquele dia eu não fiz a leitura de sua mão. Eu não podia atender seu pedido, porque seria imprudente fazer aquilo. Mas, eu fiz a leitura das minhas mãos, das nossas mãos. 

Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos, nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando nos damos as mãos!

Ela me olhava atenta e eu respirei fundo e continuei:

 Quanto às palavras ditas naquele dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia e repetia em voz alta, eram os seus desejos.

Sou também grata por aquele momento, Odete! Aprendi muito. Boa sorte a você querida!

Sequei meus olhos com uma sensação estranha, mas feliz. Me despedi dela e saí da farmácia com o espelho na mão, o qual eu acabara de comprar.

(Margarida Montejano, in Fio de Prata, 2022)


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