PROTAGONISMO|04
LITERATURA
FEMININA DE AUTORIA INDÍGENA: SONY FERSECK E AS MULHERES QUE FAZEM SOL
Heliene Rosa
Sony Ferseck, Sonyellen Fonseca Ferreira, é uma jovem intelectual indígena do povo makuxi que vive na cidade de Boa vista,
em Roraima. Poeta, editora, pesquisadora e professora atuante no campo das
artes. Formou-se em Letras pela Universidade Federal de Roraima, no ano de
2013. Em 2016, defendeu seu mestrado pela UFRR, na linha de pesquisa Literatura,
Artes e Cultura Regional.
Em 2014, tornou-se participante do
projeto de pesquisa Panton Piá coordenado pelo professor Devair Fiorotti, onde
se dedicou a estudar e divulgar narrativas e cantos que compõem as artes
verbais indígenas da região. Trabalho ao qual até hoje se dedica: é fácil
encontrá-la no YouTube, divulgando
cantos da matriarca makuxi, vó
Bernaldina. Em 2020, ingressou como doutoranda, no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve
projeto sobre literatura comparada.
Chamada Wei Paasi, em idioma makuxi,
Sony busca com seus escritos conectar-se profundamente com sua ancestralidade
indígena. Publicou seu primeiro livro: Pouco
Verbo, no ano de 2013, pela Editora Máfia do Verso. Depois, publicou Movejo, em 2020, pela Editora Wei, da qual é cofundadora ao lado de
seu companheiro professor Dr. Devair Fiorotti. Hoje Sony Fersec é professora
substituta no Instituto Insirikan de Formação Superior na UFRR e dirige sozinha
a Editora Wei, após o falecimento do
marido.
Sony Ferseck é uma mulher forte e corajosa que
não perdeu a ternura apesar dos muitos embates que a vida já lhe proporcionou.
Uma voz potente na defesa do seu povo, bem como das suas tradições culturais e
do legado de arte e sabedoria das mulheres matriarcas makuxi. Sony é mulher infinita que diz palavras de cura, mas que
sabe também fazer silêncio para guardar o intocável, tecendo assim, as teias da
vida.
Weiyamî: mulheres que fazem sol (2022), terceiro livro da autora, veio
à luz pela Editora Wei, na cidade de
Boa Vista, em Roraima. Um livro ancorado fortemente no feminino ancestral, com
versos da pena dessa potente escritora indígena da Amazônia Ocidental. A
belíssima capa e a diagramação da obra foram feitas pelo designer gráfico Abraão
Batista.
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Weiyamî: mulheres que fazem sol (2022) Foto de Nara Nasco |
No miolo, um conjunto de textos poéticos muito sensíveis, semanticamente
intensificados pelos textos imagéticos da artista visual roraimense Georgina
Sarmento, indígena dos povos Makuxi e
Wapichana. Os textos verbais e
visuais aparecem dispostos em pares e se complementam na tessitura dos múltiplos
sentidos suscitados na e pela obra.
Embora estejam materializados em
linguagens diferentes, esses textos juntos engendram uma carga poética generosa
e surpreendente que propicia uma experiência estética rica a quem lê a obra.
Sobre essa construção complexa e engajada da poesia de Sony Ferseck, em Weiyamî: mulheres que fazem sol, Rita
Olivieri-Godet, pesquisadora e professora da ERIMIT-Université de Rennes 2, na
França, esclarece:
A linguagem poética de Sony Ferseck
insere-se no amplo conjunto de produções artísticas indígenas contemporâneas
que se constroem no exercício da travessia de fronteiras, instaurando um espaço
simbólico de mediação e exprimindo-se através de uma complexa imbricação de
gêneros. Na plasticidade e originalidade de sua obra, vislumbro uma conexão com
o universo das imagens de inaudita beleza do grande artista makuxi, Jaider
Esbell, cuja arte também recria o patrimônio imaterial indígena makuxi; na
missão de “escrever com o outro”, instaurando um espaço poético e político para
lutar contra o apagamento da memória cultural dos povos indígenas...
(Olivieri-Godet, 2022, p. 7)
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Foto de Nara Nasco |
No cumprimento dessa missão de
“escrever com o outro”, entre as muitas estratégias de composição poética
empregadas na obra, Ferseck reconstrói, em versos, as memórias ancestrais do
seu povo. Esse fenômeno ocorre em alguns poemas como Makunu’pa, em que a autora, ao final do texto, acrescenta
contextualizações, além de traduções dos termos empregados em língua ancestral.
Nas palavras dela: “Segundo seu
Alcuíno de Lima, da comunidade do Taxi, na TI Raposa-Serra do Sol, nasceram Makunaimi e Makuna’pa, um menino e uma menina gêmeos. Segundo ele o radical
makun – seria relacionado a makunai’ve,
gêmeos em Makuxi Maimu” (Ferseck,
2022, p.22).
Desse modo, a poeta makuxi
promove uma reconexão com as memórias ancestrais indígenas, ao conceder a voz
lírica aos seus/suas mais velho/as, que são aqueles que detêm a sabedoria
desses povos. Cabe esclarecer que a subjetividade da mulher indígena
contemporânea predomina em seu projeto de construção autoral, pois para além da
inspiração e da composição dos versos, a autora nos mostra a sua visão: “Bom,
para mim Makunu’pa é um rio que corre
pra sempre e transborda toda e qualquer margem, principalmente na época das
chuvas” (Ferseck, 2022, p.22). E assim, o caráter polifônico da produção
literária indígena, em Sony Ferseck, vai permitindo vislumbrar culturas em que
a pluralidade é acolhida e celebrada com respeito e com alteridade.
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Foto de Nara Nasco |
Encontramos em Weiyamî: mulheres que fazem sol (2022), uma belíssima “femenagem” e
a transcrevemos aqui:
Alcançar com as mãos
O útero da terra
Percorrer com os dedos
A linguagem da terra
A fala das pedras
Os grãos da voz
Que a água acalenta
Tirar o pó do mistério da existência
Matéria mesma das mãos nas mãos
Das mães do barro
Koko’Non
Afagar entre os dedos
O barro que arredonda
As formas das gentes
Da vida
Seus afetos meus afetos
De enfrentar o fogo
O fogo é a cor da pele
Do povo do entorno da Wazaka
Rigores do amor vertidos por Wei
Que depois de secos alimentam
As palavras das avós que nunca racham
De Tuma, de karutuke, tawa, de pari
Decoram as cantigas que encantam
De carinho as netas das netas que virão
A seguir.
(FERSECK, 2022, p.37)
Acompanha o texto um pequeno
glossário, com as definições para os termos em língua makuxi. Por ele, aprendemos que Koko’Non
signifca; “Vovó Barro que permite às mulheres mais velhas saber de seus
conhecimentos e mistérios, quando dá a hora certa”. Sony dedica seu poema a
Elieth e Amora - duas gerações de mulheres da sua família, - sua mãe e sua
filha: “Para Elieth e Amora, as duas
pontas do meu amor, com todo meu ser. Vivo por e para vocês”(Ferseck, 2022,
p.37).
Essa bonita louvação à Mãe Terra se
estende às ancestrais matriarcas, chega até as mulheres contemporâneas e culmina
com as futuras gerações de mulheres – aquelas que ainda virão: “as netas das
netas”. Um texto que reverbera nas palavras da crítica literária Julie Dorrico,
indígena do povo makuxi: “os versos
desse livro vêm de longe, do tempo dos ancestrais, para consagrar as mulheres
makuxi: vós, netas, pajés, mães, amantes, meninas-moças, todas filhas de Wei,
da Sol” (Dorrico, 2022, p.5).
Weiyamî: mulheres que fazem sol (2022),
é um livro único, um monumento às mulheres indígenas makuxi, um monumento em forma de poesia. Ele revela ao público leitor uma escritora determinada a colorir
poeticamente o mundo com as histórias e memórias de seu povo. Sony Ferseck é
dona de uma escrita peculiar e de uma potente voz artística que faz ressoar, - através
da literatura, - as memórias, a língua, a cultura, as lutas e as subjetividades
das mulheres da sua grande família makuxi.
FERSECK, Sony. Weiyamî: mulheres que fazem sol. Ilustrações: Georgina Sarmento.
Boa Vista/RR: Wei Editora, 2022.
Para conhecer melhor a autora e suas
obras, encontre-a em suas redes sociais: https://instagram.com/sony.ferseck?igshid=YmMyMTA2M2Y=
@heliene.rosa.965