Revoltou-me, mais ainda, o fato de nenhum, NENHUM homem que estava no mesmo veículo, mesmo com provas explícitas, não se indignarem, não se manifestarem, pareciam estátuas de sal, impassíveis diante da “normalidade” do caso, afinal, isso é corriqueiro, diário, faz parte da cena urbana, do caos da vida cotidiana… pra eles né?! só pode!
Tanto tempo caladas, assustadas, acuadas, passando todos os constrangimentos e importunações, parece que nos acostumamos a “costurar” a boca, engolir o choro e a raiva, seguir em frente. Minha mãe , de certo, passou por isso ou coisa pior, nossas tias, primas, amigas, conhecidas, vizinhas…mas todas caladas. Tem um momento que calar não faz mais sentido, a mudez corrobora com futuras agressões, nossas filhas, netas não merecem receber de nós o legado da covardia, que espécie de mulheres somos que “passa pano” para abusador, confortável em sua condição de macho predador?! Não me calo. Chega. Estou farta. Tenho medo? Diariamente. Minhas filhas estão no mundo, vivendo suas vidas com dignidade, alvos, portanto, de todo tipo de importunação. Rezo, fervorosamente, rezo para que passem ao largo desses traumas.
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[Imagem Pinterest] |
Uma vez, nunca pude esquecer, quando criança, devia ter por volta de 8/9 anos estava com minha mãe numa daquelas lojas de material escolar, no Rio de Janeiro, as aulas estavam quase começando e pais e mães se amontoavam para comprar os itens da lista em promoções. Lembro bem, centro da cidade, Casa Mattos, quase 6 horas da tarde, um empurra-empurra, gritaria, criança chorando, o caos total. Imprensada entre minha mãe e uma senhora, eu estava imóvel. Senti uma espécie de “lambida” no meu braço, mas como disse , não podia me mexer. Num esforço, puxei o braço com força, dei um grito, mas não fui ouvida, todos gritavam. Olhei para trás e vi o homem fechando o zíper apressado, empurrando as senhoras. Apertei a mão de minha mãe o máximo que pude e fiquei em estado de choque olhando aquele líquido viscoso escorrer pelo meu braço inocente de criança, sem ao menos saber o que era. Não pude falar, não pude gritar, senti uma estranha vergonha, puxei a mão de minha mãe mais uma vez e tive engulhos. Ela me levou para fora da loja e botei para fora, ali mesmo, junto com o vômito, o nojo, a angústia, a revolta e a desproteção do mundo. Tudo que queria era chegar em casa e tomar um banho, que lavasse tudo, meu corpo, minha alma, minha memória.
Quando vi a reportagem da moça no ônibus, esse mesmo engulho voltou ao meu estômago, só que dessa vez não calarei, minha mãe, guerreira que foi, a poupei de saber desse evento, mas minhas filhas não, pois esse jogo de caça e caçador não prescreveu ainda. Elas precisam estar atentas, prevenidas, fortes e prontas para lidar com os abusos até que o mundo mude. Até lá, restam-me as palavras.
Fiz este poema alguns dias atrás, não o publiquei ainda, talvez esperasse pela ocasião, talvez esperasse pelo mote. Ele veio: pela moça corajosa do ônibus, pela criança violada que fui, pelas mães acuadas, impotentes.
HÁ TANTO O QUE SE FALAR
Há tanto o que se falar de sombras
Há tanto o que dizer e nos calam
Nossos corpos, um dia de menina,
Tanto sangraram, vazaram, reclusos nos
Pântanos da alma, feridas tantas de tempos
Passados, somam distâncias no peito oco
Entre o que somos hoje e um dia fomos.
Carregam nas mãos, sujas, inocência
E medo, alisando em mácula nódoa
A pura hipocrisia, roçam, importunam,
Desdenham e ferem. Viris. Impunes.
Flanam em festas, em bares, em becos
Buscam prazer em líquidas doses
Para amaciar, das moças, as resistências.
Um cheiro de nojo que sobe e engulha
Rasga a carne, que nos habita e veste,
Subindo a saia sem consentimento ou pudor.
Sempre assim, por baixo dos panos, estamos sós.
Olhos que fingem não ver o que está exposto
Para depois, quando tudo se consumar, negar.
Não, não foi a saia, não foi o corpo, foi a violência!
Milênios de violação, abusos e sequestros
Transformam meninas em mulheres amputadas
Sobreviventes de um destino não traçado, cruel.
Aprisionadas por dentro, temendo expor a fêmea
Sedenta, que sempre foi, temendo seu próprio corpo
E desejo, por fim, exausta, sucumbe à invisibilidade.
Há tanto o que ser (re)visto sob o sol dos dias
Há tanto o que ser falado dessas dores e noites
Que, quando nos levantarmos todas, isso é certo,
Nossa voz explodirá numa aurora nuclear irrefreável.
Indomável.
Rita Alencar Clark
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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".