PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA
Banzeiro Manso é uma sinfonia poética amazônica em versos, a ser acompanhada em todos os atos. Em todos cantos. Marta Cortezão no seu livro de estreia revela um mundo (o da poesia) e desvela outro (o do poema). Liturgia e epifania da palavra poética em estado de devir. Desde o título, um paradoxo que não se resolve (e se resolvesse não seria paradoxo). Orbita o leitor em uma espiral que o leva no meio do banzeiro e do qual ele não mais quer sair. E por que quereria? É como se esse estivesse sendo atraído pelo canto de Iara: “Não tardes, Iara, tenho vazios / carentes de tua suave e rouca voz...”.
Banzeiro Manso está à venda no site da editora Porto de Lenha |
A viagem poética
segue a bússola do fio da existência em que o prumo da poesia se apresenta em
“(Re)mansos (di)versos” e “(Re)manso (re)versos”, nas duas primeiras partes do livro.
O leitor, alegre aprendiz, vai destecendo o imaginário e vê que “A cada
descortesia, / menos poesia. / A cada tropeço, / menos apreço. / A cada
descaso, / por um fio o nosso caso”. E baila ao ritmo de uma “Valsa para Eros”:
“Teus passos cegos / me vigiam. /Teus olhos passeiam / minha alma”. Entre um
passo e outro encontra metáforas suspensas na banzeira página e descobre que o
bicho-da-seda “aprendeu com a dor da solidão/ que a desventura também alimenta
a crisálida”.
Antes mesmo que a valsa
acabe surge a sensualidade em um vestido preto, justo, no corpo adornado por
uma metonímia assustada: “Ele chegou com olhos / de tigre faminto / pisando
mansinho / em meus confusos labirintos”. Mas o concerto poético não pode parar
e de forma irreverente o amor, em novo figurino, surge em tons de jeans: “Aluga-se
um coração plangente / cômodo, amplo, ardente. / Aspecto terno e sedutor / com
vistas a um louco amor”. Enternecido, os olhos do leitor se voltam para o
rodopio do verso e é seduzido por nova cadência rítmica. E degusta uma metáfora
sinestésica: “Para ser pétala / longo é o caminhar. / Para saborear o néctar /
há que saber-se despetalar”.
A arte da capa é do multiartista tefeense Elvis Braga |
A contradição – eterna
companheira da poesia – não poderia faltar, sobretudo quando tão bem empregada:
“Se nosso amor é tão sólido / por que me escorre pelos dedos?”. Eis o mistério
do verso. Há mais poesia entre o céu e a terra do que supõe qualquer dilema
shakespeariano. E como não ficar embriagado pelo humor refinado de Marta
Cortezão, em versos como estes?: “Pouco riso, / menos siso?”.
A celebração da palavra
é um capítulo à parte dessa poética sinfonia amazônica: “Quando a poesia cala,
/ a Alma verseja e fala: / o poeta versos afina/ ao compasso da Lira”. (Ao
fundo, ouço Piaf cantando “Mon Dieu”). Faço uma pausa para que a lágrima
escorra. E me emociono diante da sinestesia que parte de uma metáfora e chega à
condição de “Poesia aquarela”: “Mundo-vivo e Poesia. / Tudo soa, tudo voa! /
Letras, palavras, tintas, gotas.../ Tudo grita, tudo ecoa!”. O concerto não
pode mesmo parar. E por que pararia? Ainda há muitas páginas para ouvir e
apreciar.
Foto de uma atividade virtual do projeto de Literatura Amazonense, realizado pela Professora Andrea Dore, juntamente com os discentes do Instituto Denizard Rivail, Manaus, em 2018. |
Em dado momento o tom
muda em Banzeiro Manso, para que o
leitor reflita. (Na vitrola, Piaf canta “Non, je ne regrette rien” (Não, não me
arrependo de nada). Seguem os versos: “A sociedade de mim se burla: /
"Maria Vai-com-as-outras"! / Melhor seria se soubesse / o caminho de
Maria quando / engajada com as Outras”. Qual Marta ouvir: a poeta ou a mulher?
Não importa. O importante é que exale a poesia. Nada melhor que velejar por um
tema clássico: “Lua odalisca / Baile faceiro / Lua fetiche / Compasso brejeiro
/ (...) Lua alvorada / Tez avelã / Lua namorada / Boca romã”. A partitura segue
com sua pintura.
Hora de falar sobre o existencialismo. Uma corrente filosófica que surgiu em meados do século XX, mas que está presente na literatura desde há muito tempo. Basta ler Camões, Fernando Pessoa, Manoel de Barros e outros autores. Mas, em Banzeiro Manso... (Nesse momento, ouço notas de “C’est la vie”, em um concerto de Emerson, Lake & Palmer, em Montreal. Seguro uma lágrima que teima em cair). E passo aos versos de Marta:
Ser casulo
para entender-se
no silêncio do Ser.
Em 13/OUT/2019, projeto de iniciação científica aprovado em edital do PCE/Fapeam. "BANZEIRO MANSO: RESGATANDO O DIALETO AMAZÔNICO" analisou a poesia da poeta @martacortezaopoeta. Fotos divulgadas pelo idealizador do projeto, prof. Onison Lopes. |
Após esse sopro
poético, posso falar das duas últimas partes de Banzeiro Manso. Elas mostram uma poeta plugada em sua terra e a
poesia que daí advém é capaz de surpreender qualquer leitor desavisado.
Entramos em um “Banzeiro (re)manso(so)”, do qual não mais desejamos sair.
Trata-se de uma poética elevada e que justifica, plenamente, o título do livro
e a condição de poeta amazônica, por excelência. São tantas as passagens que,
se eu fosse você, parava de ler o prefácio e ia direto para os textos...
Muito bem. Se você resolveu continuar a leitura desse prefácio, então é preciso conhecer a “Essência”:
Sou do Norte, terra de caboclo forte,
que toma açaí, come piracuí,
bodó assado e jaraqui,
pirarucu com chibé,
tucumã com café,
que faz paneiro com cipó de ambé
(...)
Eita vidão!
(...)
No rio de minha imaginação...
De forma serelepe, a
menina poeta brinca com operações da (ma)temática do amor: “Mais amor e menos
rancor. / Menos ter e mais querer / Mais poesia e açaí com farinha! / Menos
ególatras e mais chocólatras. / Mais gratidão e pé no chão, / menos idiotas e
mais jabá com farofa!”. Não é preciso ser do Norte para entender a poética do
encanto e do espanto. A linguagem da poesia é universal e ressemantizável.
No virar de páginas, a
menina toma corpo e debuta em versos eivados de “Memórias”, em diálogo
existencial com Castro Alves:
Infância de águas
guardada no baú
das memórias... São
espumas flutuantes
de meu porto seguro.
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Quando
o leitor pensa que nada mais poderá aprender com Marta Cortezão, ele recebe
“Tenras lições”: “E aquela cunhatã reza baixinho / uma ave-maria pela doce
lição, / abre os ternos olhos de mansinho, / vê deslizando no rio aquele
regatão”. Após um saudoso fado, chega o momento de “Súplica a Iara”, a
divindade das águas, que hipnotiza o leitor e o leva para o meio do Banzeiro manso: “Leva- me contigo, Iara!
/ Cansei deste mundo raso. / Prefiro teu mundo de águas, / rio profundo, sem as
mágoas / que desafinam, a miúde, meu trovar”.
É natureza do homem
bater asas e viver paixões e “Sandices”. De forma bem-humorada dialoga com a
canção de escárnio “Dona fea”, de João Garcia de Guilhade, do Trovadorismo
português:
Ai, ai, D. Mucura!
Não chore, seja forte,
a vida é assim de dura!
A paixão ensandece,
mas a dor se cura.
Não nade contra a corrente.
Nos assuntos do coração,
é melhor ser coerente.
Amar a um colibri
é dar asas à loucura!.
(...)
O romantismo perpassa o
livro, todavia embalado como o deitar em uma rede, como o suave balanço em
“Rio-Mar”: “Desejo afluir-me / em tuas águas cálidas;/ brincar, sem reservas, /
no teu doce banzeiro, / manso balanço ligeiro, / onde desejo estar...”. Essa
poeta cunhatã joga sua rede de versos na água da poesia e de forma trovadoresca
pesca leitores em pleno dia: “Eu não desejo porfia. / Quero apenas encangar /
minha canoa na tua”. E que coisa louca falar “Dos amores”! Não há como não ser
fisgado: “Era jogar a isca e o anzol fisgava / ligeiro meu amor primeiro...”.
Um instante mágico está reservado à leitura do poema “Bênçãos”, dedicado à sua mãe, Nelci Cortezão, tenho convicção de que é o mais lírico do livro:
Mãe, e aquele rio, para onde corre?
Não descansa? Nunca morre?
Aquele rio corre para o Mundo...
Com a força de um moribundo
Sem pressa de chegar
mas com muitos caminhos a alcançar!
Na literatura portuguesa, o rio é
um ente. Em Banzeiro Manso, é poente
e insurgente de grande poesia. Os segredos são revelados nas correntezas dos
versos, que embalam a rede e o enredo dos poemas em prosa, como em “Musa
Iracema”: Assim se expressa: “Sou boto moço / Sou boto manso /Faço alvoroço /
As águas transo”.
No meio do devaneio, ela dialoga
com Almeida Garrett, poeta português. Difícil não se emocionar com “À barca
bela”:
(...)
Por que o pranto
No rio meu, Barca bela?
Por que tão triste canto?
Só caio em esparrela!
Tu sim és feliz,
Bela barca!
Eu, de amor infeliz
E tu, amores atracas:
Tens o rio e a ela!
Ela é piracema
De prazeres
Ele, rio de dilema
De mil quereres!
Eu, Barca Bela,
Espuma de remanso,
Tenho as penas
E a vil bagatela
De amar-te manso,
Barca Bela!
(...)
Foto da poeta Patrícia Cacau, Áustria, 2021 |
Chego na Parte IV do livro, denominada “Remanso Tupeba”. Um dos momentos em que a poeta atinge as notas mais altas é na paródica “Canção Tupeba”. Gonçalves Dias, lá do céu da literatura, deve estar vibrando:
Minha terra, de palmeira, tem o zau:
piassaba, jarina, bacaba, buriti, patauá,
pupunha, babaçu, tucumã, açaí e o escambau.
Ach’é pouco lugar pra Sabiá cantar por lá!
(...)
Muitas palmeiras tem meu torrão,
que são mais dos urubus que dos Sabiás.
Permita-me Deus voltar logo pra lá!
Comer tucumã com farinha até empachar.
(...)
E segue Marta Cortezão com seu
cântico tupi, com seu cântico Tefé, com sua ode poética a dialogar com “O Canto
do Piaga”, outro de Gonçalves Dias. Como um brado guerreiro, o leitor enxerga
um “Exército Tupeba”: “E assim marcha um exército decidido, / sua força
colossal não se dissipa, não falha. /Um povo que luta e não se dá por vencido,
/ porque o Tupeba é guerreiro, não foge à batalha!”. É o canto da literatura
amazonense que se destaca nesses versos.
Mas não só de batalhas vive a vida, é preciso (retro)alimentar antropofagicamente a poesia, sobretudo de forma humorada, como em um “Jeito Tupeba de ser”:
(...)
Pelas ruas e calçadas da cidade,
bodó assado na brasa, às seis da tarde,
regado ao molho de pimenta murupi,
com muita farinha-ova do Uarini.
Égua, maninha! Que jeito Tupeba de ser!
(...)
Todas (ou quase todas) as divindades da poesia são invocadas em “Olimpo de saudade”, pela magistra Marta Cortezão. Depois de flertar com a mitologia grega ela (re)cria e evoca a mitologia tefeense, posto que os versos finais de forma humorada mostram “um coração tupeba / de alma sentimental”:
(...)
Tem
os encantos de Apolo,
de
Medeia, a loucura,
a
habilidade de Diana,
de
Cupido, a travessura,
a
arte de Vulcano,
de
Ares, a fúria,
o
fogo de Prometeu,
de
Édipo, a cegueira,
a
musicalidade de Orfeu,
a dor
de Jocasta,
a
força de Hércules,
de
Ícaro, a audácia
e, em
especial,
um
coração Tupeba
de alma sentimental!
A viagem pelo
centro da terra amazônica continua em “Sangue Tapiba”: “A minha imponente
Saudade / voa no melodioso canto uirapuru, / de vastos sentimentos me invade /
e vai pousar em divina fonte / do majestoso crepúsculo Tupé! / Índia morena, de
ledos corações, Tefé!”. É o nome de sua cidade natal. Tefeense de versos
impávidos que carrega lembranças poéticas até onde parece não caber, a exemplo da
personificação e a dedicação “A um taperebazeiro”: “Taperebá! Minha Tapera, / meu
barco alado das belas tardes! / Adoçaste minha infância... / Quantas perebas
por subir neste tronco! / Bora brincar de taperabá? / Pera um pouco, per’ainda
/ que vou perambular lembranças / e jogar conversa fora / em baixo da sombra do
meu Taperabá!”. Brinca, poeta. Brinca, criança. Rebrinca, leitor. Isso ficará
um brinco.
"Tomando café Nordestino em alegre companhia. Chegou meu livro Banzeiro Manso da querida escritora Marta Cortezão! Estou amando a leitura de sua poética cultural, cativante e rica de júbilo e orgulho de sua terra. Me sinto contemplada com sua seiva amazonense, íntima de seus cânticos encantados. Aguijê Kunhâ porã." Foto e texto da professora, escritora e produtora cultural Eva Potiguara. |
As duas últimas canções de Banzeiro manso fecham com clave poética. Em “Furioso Cupido”, confira a inquieta e nem tanto solene brincadeira de amor:
Quando o Cupido
se zangou comigo,
me azagaiou o coração
só pra me dá uma lição.
Tive até passamento;
topei com grande tormento
que me deixou aperreado
com o corpo todo coisado
por um não-sei-quê de amor
misturado a um angu de dor!
(...)
Dei de pau no tucumã com farinha,
chega fiquei de bucho tufado,
mas voltei pra casa curado,
e mais feliz que pinto no lixo!
E do amor? Tu é leso é?!
Ando correndo disso!!!
E chego ao último poema que, não por acaso, chama-se “Noite de visagem”. Macunaíma andou por aqui e por ali. Por ter fé, por Tefé, ao que tudo indica:
(...)
Monto mula-sem-cabeça,
proseio com a Cabeça-sem-mula
que me conta do romance com o senhor cura.
Enquanto tomamos chá de capim-santo,
mãe natureza nos afaga com doce acalanto.
Chegam as fermosas guerreiras Amazonas
para contar das extraordinárias façanhas;
dos segredos verdes do muiraquitã
e dos estranhos vícios desumanos
cuja medida do Ter nunca se enche.
Recitamos belas trovas, heroicamente,
E rimos como traquinas cunhatãs.
Em fera brava me viro,
manso Matinta suspiro!
(...)
Após a execução dos acordes finais, Banzeiro manso chega ao final de suas páginas. Exausta, à orquestra/livro a poeta se curva em agradecimento, depois se vira e entrega a batuta ao leitor. Quanto ao bis? Basta recomeçar a leitura do livro. Difícil acreditar que esse seja somente o primeiro de Marta Cortezão. É. Ela conseguiu domar o banzeiro, com um puro jeito Tupeba de ser... o Ser da poesia. Simplesmente.
Goiás, 16 de setembro de 2016.
*O texto PURO JEITO TUPEBA DE SER foi escrito para figurar no prefácio da primeira impressão do Banzeiro Manso, editado pela Porto de Lenha, em 2017. O curioso foi que o estimado professor Isaac Ramos, coincidentemente, me enviou o texto finalizado, por e-mail, justo no dia de meu aniversário, 16|SET|2016. Foi um presente muito especial! E sempre o agradeço por esta belezura de prefácio. E você gostou? Deixe seu comentário!👇👇👇
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Isaac Ramos |
Poeta e crítico
literário, com diversos livros publicados. Dentre as publicações, destacam-se:
Reflexões (1984); Astro por rastro (1988); Teias e Teares (2014) (poemas); A
metáfora do olhar: Alberto Caeiro e Manoel de Barros (2018); Ensaios de lírica:
do poema clássico ao contemporâneo (Org.) (2020) crítica e análise literária,
livro impresso e e-book gratuito. Doutor e Mestre em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa (USP). Professor permanente do PPGEL/Unemat. 2,
Dez./2020. (Texto retirado da orelha do seu mais recente livro “álibi”.
Para comprar "álibi" (Carlini&Caniato Editorial, 2022) entre em contato com o autor via Facebook e/ou Instagram |
Os textos abaixo são da contracapa do livro "álibi":
“Álibi é o primeiro livro
da série poética (Con)sequências líricas, que deverá abrigar mais dois
volumes... Os poemas são compostos sem obrigatoriedade do uso de formas fixas e
com rimas eventuais, alguns motivos são recorrentes: a embriaguez, o erotismo,
a intertextualidade, alguns poemas de cunho social, tudo isso construído com
recursos sonoros que evidenciam os trocadilhos, os jogos lexicais, a
fragmentação das palavras, a homonímia, a homografia, a homofonia e a
paronímia, num exercício constante da metalinguagem poética”
Cláudia Coelho
“Enquanto tecelão
profissional de palavras (professor, escritor e palestrante), Isaac Ramos
entretece uma teia saborosa, que nos apanha nos ziguezagues dos seus jogos
verbais, que são, afinal, jogos entre a vida, a morte e o luxo da estética
(vivencial e comunicacional).”
Pires Laranjeira
ISBN 978-65-88600-97-9