Mostrando postagens com marcador prefácio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador prefácio. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|11: PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA, POR ISAAC RAMOS



ELES LEEM ELAS|11

PURO JEITO TUPEBA DE SER POESIA 

ISAAC RAMOS 

Banzeiro Manso é uma sinfonia poética amazônica em versos, a ser acompanhada em todos os atos. Em todos cantos. Marta Cortezão no seu livro de estreia revela um mundo (o da poesia) e desvela outro (o do poema). Liturgia e epifania da palavra poética em estado de devir. Desde o título, um paradoxo que não se resolve (e se resolvesse não seria paradoxo). Orbita o leitor em uma espiral que o leva no meio do banzeiro e do qual ele não mais quer sair. E por que quereria? É como se esse estivesse sendo atraído pelo canto de Iara: “Não tardes, Iara, tenho vazios / carentes de tua suave e rouca voz...”.

Banzeiro Manso está à venda no site da editora Porto de Lenha

A viagem poética segue a bússola do fio da existência em que o prumo da poesia se apresenta em “(Re)mansos (di)versos” e “(Re)manso (re)versos”, nas duas primeiras partes do livro. O leitor, alegre aprendiz, vai destecendo o imaginário e vê que “A cada descortesia, / menos poesia. / A cada tropeço, / menos apreço. / A cada descaso, / por um fio o nosso caso”. E baila ao ritmo de uma “Valsa para Eros”: “Teus passos cegos / me vigiam. /Teus olhos passeiam / minha alma”. Entre um passo e outro encontra metáforas suspensas na banzeira página e descobre que o bicho-da-seda “aprendeu com a dor da solidão/ que a desventura também alimenta a crisálida”.

Antes mesmo que a valsa acabe surge a sensualidade em um vestido preto, justo, no corpo adornado por uma metonímia assustada: “Ele chegou com olhos / de tigre faminto / pisando mansinho / em meus confusos labirintos”. Mas o concerto poético não pode parar e de forma irreverente o amor, em novo figurino, surge em tons de jeans: “Aluga-se um coração plangente / cômodo, amplo, ardente. / Aspecto terno e sedutor / com vistas a um louco amor”. Enternecido, os olhos do leitor se voltam para o rodopio do verso e é seduzido por nova cadência rítmica. E degusta uma metáfora sinestésica: “Para ser pétala / longo é o caminhar. / Para saborear o néctar / há que saber-se despetalar”.

A arte da capa é do multiartista tefeense Elvis Braga

A contradição – eterna companheira da poesia – não poderia faltar, sobretudo quando tão bem empregada: “Se nosso amor é tão sólido / por que me escorre pelos dedos?”. Eis o mistério do verso. Há mais poesia entre o céu e a terra do que supõe qualquer dilema shakespeariano. E como não ficar embriagado pelo humor refinado de Marta Cortezão, em versos como estes?: “Pouco riso, / menos siso?”.

A celebração da palavra é um capítulo à parte dessa poética sinfonia amazônica: “Quando a poesia cala, / a Alma verseja e fala: / o poeta versos afina/ ao compasso da Lira”. (Ao fundo, ouço Piaf cantando “Mon Dieu”). Faço uma pausa para que a lágrima escorra. E me emociono diante da sinestesia que parte de uma metáfora e chega à condição de “Poesia aquarela”: “Mundo-vivo e Poesia. / Tudo soa, tudo voa! / Letras, palavras, tintas, gotas.../ Tudo grita, tudo ecoa!”. O concerto não pode mesmo parar. E por que pararia? Ainda há muitas páginas para ouvir e apreciar.

Foto de uma atividade virtual do projeto de Literatura Amazonense, realizado pela Professora Andrea Dore, juntamente com os discentes do Instituto Denizard Rivail, Manaus, em 2018.

Em dado momento o tom muda em Banzeiro Manso, para que o leitor reflita. (Na vitrola, Piaf canta “Non, je ne regrette rien” (Não, não me arrependo de nada). Seguem os versos: “A sociedade de mim se burla: / "Maria Vai-com-as-outras"! / Melhor seria se soubesse / o caminho de Maria quando / engajada com as Outras”. Qual Marta ouvir: a poeta ou a mulher? Não importa. O importante é que exale a poesia. Nada melhor que velejar por um tema clássico: “Lua odalisca / Baile faceiro / Lua fetiche / Compasso brejeiro / (...) Lua alvorada / Tez avelã / Lua namorada / Boca romã”. A partitura segue com sua pintura.

Hora de falar sobre o existencialismo. Uma corrente filosófica que surgiu em meados do século XX, mas que está presente na literatura desde há muito tempo. Basta ler Camões, Fernando Pessoa, Manoel de Barros e outros autores. Mas, em Banzeiro Manso... (Nesse momento, ouço notas de “C’est la vie”, em um concerto de Emerson, Lake & Palmer, em Montreal. Seguro uma lágrima que teima em cair). E passo aos versos de Marta:


Ser casulo

para entender-se

no silêncio do Ser.



Em 13/OUT/2019, projeto de iniciação científica aprovado em edital do PCE/Fapeam. "BANZEIRO MANSO: RESGATANDO O DIALETO AMAZÔNICO" analisou a poesia da poeta @martacortezaopoeta. Fotos divulgadas pelo idealizador do projeto, prof. Onison Lopes.

Após esse sopro poético, posso falar das duas últimas partes de Banzeiro Manso. Elas mostram uma poeta plugada em sua terra e a poesia que daí advém é capaz de surpreender qualquer leitor desavisado. Entramos em um “Banzeiro (re)manso(so)”, do qual não mais desejamos sair. Trata-se de uma poética elevada e que justifica, plenamente, o título do livro e a condição de poeta amazônica, por excelência. São tantas as passagens que, se eu fosse você, parava de ler o prefácio e ia direto para os textos...

Muito bem. Se você resolveu continuar a leitura desse prefácio, então é preciso conhecer a “Essência”:

Sou do Norte, terra de caboclo forte,

que toma açaí, come piracuí,

bodó assado e jaraqui,

pirarucu com chibé,

tucumã com café,

que faz paneiro com cipó de ambé

(...)

Eita vidão!

(...)

No rio de minha imaginação...

De forma serelepe, a menina poeta brinca com operações da (ma)temática do amor: “Mais amor e menos rancor. / Menos ter e mais querer / Mais poesia e açaí com farinha! / Menos ególatras e mais chocólatras. / Mais gratidão e pé no chão, / menos idiotas e mais jabá com farofa!”. Não é preciso ser do Norte para entender a poética do encanto e do espanto. A linguagem da poesia é universal e ressemantizável.

No virar de páginas, a menina toma corpo e debuta em versos eivados de “Memórias”, em diálogo existencial com Castro Alves:


Infância de águas

guardada no baú

das memórias... São

espumas flutuantes

de meu porto seguro.


Clique  AQUI  para comprar o livro Banzeiro Manso.

Quando o leitor pensa que nada mais poderá aprender com Marta Cortezão, ele recebe “Tenras lições”: “E aquela cunhatã reza baixinho / uma ave-maria pela doce lição, / abre os ternos olhos de mansinho, / vê deslizando no rio aquele regatão”. Após um saudoso fado, chega o momento de “Súplica a Iara”, a divindade das águas, que hipnotiza o leitor e o leva para o meio do Banzeiro manso: “Leva- me contigo, Iara! / Cansei deste mundo raso. / Prefiro teu mundo de águas, / rio profundo, sem as mágoas / que desafinam, a miúde, meu trovar”.

É natureza do homem bater asas e viver paixões e “Sandices”. De forma bem-humorada dialoga com a canção de escárnio “Dona fea”, de João Garcia de Guilhade, do Trovadorismo português:

 

Ai, ai, D. Mucura!

Não chore, seja forte,

a vida é assim de dura!

 

A paixão ensandece,

mas a dor se cura.

Não nade contra a corrente.

Nos assuntos do coração,

é melhor ser coerente.

Amar a um colibri

é dar asas à loucura!.

(...) 

O romantismo perpassa o livro, todavia embalado como o deitar em uma rede, como o suave balanço em “Rio-Mar”: “Desejo afluir-me / em tuas águas cálidas;/ brincar, sem reservas, / no teu doce banzeiro, / manso balanço ligeiro, / onde desejo estar...”. Essa poeta cunhatã joga sua rede de versos na água da poesia e de forma trovadoresca pesca leitores em pleno dia: “Eu não desejo porfia. / Quero apenas encangar / minha canoa na tua”. E que coisa louca falar “Dos amores”! Não há como não ser fisgado: “Era jogar a isca e o anzol fisgava / ligeiro meu amor primeiro...”.

Um instante mágico está reservado à leitura do poema “Bênçãos”, dedicado à sua mãe, Nelci Cortezão, tenho convicção de que é o mais lírico do livro:

Mãe, e aquele rio, para onde corre?

Não descansa? Nunca morre?


Aquele rio corre para o Mundo...

Com a força de um moribundo

Sem pressa de chegar

mas com muitos caminhos a alcançar!

Na literatura portuguesa, o rio é um ente. Em Banzeiro Manso, é poente e insurgente de grande poesia. Os segredos são revelados nas correntezas dos versos, que embalam a rede e o enredo dos poemas em prosa, como em “Musa Iracema”: Assim se expressa: “Sou boto moço / Sou boto manso /Faço alvoroço / As águas transo”.

No meio do devaneio, ela dialoga com Almeida Garrett, poeta português. Difícil não se emocionar com “À barca bela”:

 

(...)

Por que o pranto

No rio meu, Barca bela?

Por que tão triste canto?

Só caio em esparrela!

Tu sim és feliz,

Bela barca!

Eu, de amor infeliz

E tu, amores atracas:

Tens o rio e a ela!

 

Ela é piracema

De prazeres

Ele, rio de dilema

De mil quereres!

Eu, Barca Bela,

Espuma de remanso,

Tenho as penas

E a vil bagatela

De amar-te manso,

Barca Bela!

(...)


Foto da poeta Patrícia Cacau, Áustria, 2021

Chego na Parte IV do livro, denominada “Remanso Tupeba”. Um dos momentos em que a poeta atinge as notas mais altas é na paródica “Canção Tupeba”. Gonçalves Dias, lá do céu da literatura, deve estar vibrando:

Minha terra, de palmeira, tem o zau:

piassaba, jarina, bacaba, buriti, patauá,

pupunha, babaçu, tucumã, açaí e o escambau.

Ach’é pouco lugar pra Sabiá cantar por lá!


(...)

Muitas palmeiras tem meu torrão,

que são mais dos urubus que dos Sabiás.

Permita-me Deus voltar logo pra lá!

Comer tucumã com farinha até empachar. 

(...)

E segue Marta Cortezão com seu cântico tupi, com seu cântico Tefé, com sua ode poética a dialogar com “O Canto do Piaga”, outro de Gonçalves Dias. Como um brado guerreiro, o leitor enxerga um “Exército Tupeba”: “E assim marcha um exército decidido, / sua força colossal não se dissipa, não falha. /Um povo que luta e não se dá por vencido, / porque o Tupeba é guerreiro, não foge à batalha!”. É o canto da literatura amazonense que se destaca nesses versos.

Mas não só de batalhas vive a vida, é preciso (retro)alimentar antropofagicamente a poesia, sobretudo de forma humorada, como em um “Jeito Tupeba de ser”:

(...)

Pelas ruas e calçadas da cidade,

bodó assado na brasa, às seis da tarde,

regado ao molho de pimenta murupi,

com muita farinha-ova do Uarini.

Égua, maninha! Que jeito Tupeba de ser!

(...)

Todas (ou quase todas) as divindades da poesia são invocadas em “Olimpo de saudade”, pela magistra Marta Cortezão. Depois de flertar com a mitologia grega ela (re)cria e evoca a mitologia tefeense, posto que os versos finais de forma humorada mostram “um coração tupeba / de alma sentimental”:

(...)

Tem os encantos de Apolo,

de Medeia, a loucura,

a habilidade de Diana,

de Cupido, a travessura,

a arte de Vulcano,

de Ares, a fúria,

o fogo de Prometeu,

de Édipo, a cegueira,

a musicalidade de Orfeu,

a dor de Jocasta,

a força de Hércules,

de Ícaro, a audácia

e, em especial,

um coração Tupeba

de alma sentimental!

A viagem pelo centro da terra amazônica continua em “Sangue Tapiba”: “A minha imponente Saudade / voa no melodioso canto uirapuru, / de vastos sentimentos me invade / e vai pousar em divina fonte / do majestoso crepúsculo Tupé! / Índia morena, de ledos corações, Tefé!”. É o nome de sua cidade natal. Tefeense de versos impávidos que carrega lembranças poéticas até onde parece não caber, a exemplo da personificação e a dedicação “A um taperebazeiro”: “Taperebá! Minha Tapera, / meu barco alado das belas tardes! / Adoçaste minha infância... / Quantas perebas por subir neste tronco! / Bora brincar de taperabá? / Pera um pouco, perainda / que vou perambular lembranças / e jogar conversa fora / em baixo da sombra do meu Taperabá!”. Brinca, poeta. Brinca, criança. Rebrinca, leitor. Isso ficará um brinco.

"Tomando café Nordestino em alegre companhia. Chegou meu livro Banzeiro Manso da querida escritora Marta Cortezão! Estou amando a leitura de sua poética cultural, cativante e rica de júbilo e orgulho de sua terra. Me sinto contemplada com sua seiva amazonense, íntima de seus cânticos encantados. Aguijê Kunhâ porã." Foto e texto da professora, escritora e produtora cultural Eva Potiguara.

As duas últimas canções de Banzeiro manso fecham com clave poética. Em “Furioso Cupido”, confira a inquieta e nem tanto solene brincadeira de amor:

Quando o Cupido

se zangou comigo,

me azagaiou o coração

só pra me dá uma lição.

Tive até passamento;

topei com grande tormento

que me deixou aperreado

com o corpo todo coisado

por um não-sei-quê de amor

misturado a um angu de dor!

(...)

Dei de pau no tucumã com farinha,

chega fiquei de bucho tufado,

mas voltei pra casa curado,

e mais feliz que pinto no lixo!

E do amor? Tu é leso é?!

Ando correndo disso!!! 

E chego ao último poema que, não por acaso, chama-se “Noite de visagem”. Macunaíma andou por aqui e por ali. Por ter fé, por Tefé, ao que tudo indica:

(...)

Monto mula-sem-cabeça,

proseio com a Cabeça-sem-mula

que me conta do romance com o senhor cura.

Enquanto tomamos chá de capim-santo,

mãe natureza nos afaga com doce acalanto.

Chegam as fermosas guerreiras Amazonas

para contar das extraordinárias façanhas;

dos segredos verdes do muiraquitã

e dos estranhos vícios desumanos

cuja medida do Ter nunca se enche.

Recitamos belas trovas, heroicamente,

E rimos como traquinas cunhatãs.

Em fera brava me viro,

manso Matinta suspiro!

(...)

Após a execução dos acordes finais, Banzeiro manso chega ao final de suas páginas. Exausta, à orquestra/livro a poeta se curva em agradecimento, depois se vira e entrega a batuta ao leitor. Quanto ao bis? Basta recomeçar a leitura do livro. Difícil acreditar que esse seja somente o primeiro de Marta Cortezão. É. Ela conseguiu domar o banzeiro, com um puro jeito Tupeba de ser... o Ser da poesia. Simplesmente.

Goiás, 16 de setembro de 2016.


*O texto PURO JEITO TUPEBA DE SER foi escrito para figurar no prefácio da primeira impressão do Banzeiro Manso, editado pela Porto de Lenha, em 2017. O curioso foi que o estimado professor Isaac Ramos, coincidentemente, me enviou o texto finalizado, por e-mail, justo no dia de meu aniversário, 16|SET|2016. Foi um presente muito especial! E sempre o agradeço por esta belezura de prefácio. E você gostou? Deixe seu comentário!👇👇👇

♡__________________◇_________________♤_________________♧__________________♡

Isaac Ramos 

Poeta e crítico literário, com diversos livros publicados. Dentre as publicações, destacam-se: Reflexões (1984); Astro por rastro (1988); Teias e Teares (2014) (poemas); A metáfora do olhar: Alberto Caeiro e Manoel de Barros (2018); Ensaios de lírica: do poema clássico ao contemporâneo (Org.) (2020) crítica e análise literária, livro impresso e e-book gratuito. Doutor e Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP). Professor permanente do PPGEL/Unemat. 2, Dez./2020. (Texto retirado da orelha do seu mais recente livro “álibi”. 

Para comprar "álibi" (Carlini&Caniato Editorial, 2022) entre em contato com o autor via Facebook e/ou Instagram

Os textos abaixo são da contracapa do livro "álibi":

“Álibi é o primeiro livro da série poética (Con)sequências líricas, que deverá abrigar mais dois volumes... Os poemas são compostos sem obrigatoriedade do uso de formas fixas e com rimas eventuais, alguns motivos são recorrentes: a embriaguez, o erotismo, a intertextualidade, alguns poemas de cunho social, tudo isso construído com recursos sonoros que evidenciam os trocadilhos, os jogos lexicais, a fragmentação das palavras, a homonímia, a homografia, a homofonia e a paronímia, num exercício constante da metalinguagem poética”

Cláudia Coelho


“Enquanto tecelão profissional de palavras (professor, escritor e palestrante), Isaac Ramos entretece uma teia saborosa, que nos apanha nos ziguezagues dos seus jogos verbais, que são, afinal, jogos entre a vida, a morte e o luxo da estética (vivencial e comunicacional).”

Pires Laranjeira

ISBN 978-65-88600-97-9

 

domingo, 28 de agosto de 2022

ELES LEEM ELAS|10: NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana, POR LAU SIQUEIRA

 


ELES LEEM ELAS|10

NO AÇO REVERSO DO ESPELHO - a poesia de Clareanna Santana


Por Lau Siqueira


O primeiro livro é sempre uma provocação e um desafio. Uma estirada de Língua do poeta ou da poeta. Especialmente porque as facilidades para a publicação nesses tempos modernos, geralmente convidam ao abismo. Os canais de divulgação da Poesia e principalmente da nova Poesia brasileira, são inúmeros. Os blogs, as plataformas, as redes sociais. Dificilmente um escritor ou escritora fica inédito por muito tempo. Escreveu, publicou. Ninguém está isolado. A bolha dos poetas municipais, estaduais ou federais, todavia, explodiu enquanto “tiravam ouro do nariz”.

Para adquirir Artéria, fale com Clareanna Santana via perfil @clareamente
 ou via perfil Facebook 

Anos atrás alguns acelerados acendiam o alerta máximo sobre o que seria a tal “literatura na internet”. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, mas o medo das novidades mordeu muitos calcanhares. Nos primórdios da conexão discada os poucos textos expostos eram generalizados como “escritas rasas”. Era o veredito geral da Suprema Corte Literária. Até que os “togados” também entraram nas redes. Os desconfiômetros foram sutilmente desligados.  Não se falou mais nisso. Salvo por alguns absurdos apocalípticos, a prudência sempre evitou acidentes fatais e injustiças silenciadas, mas nunca deteve a história. Assim, conclui-se que os meios não melhoram nem pioram a literatura de ninguém, mas ampliam os campos da visibilidade.

Na medida em que pensamos no turbilhão que é a atual produção poética brasileira, não nos cabe negá-la. Muito menos negligenciar sobre quem chega. Afinal, escrever e escrever poemas muito especialmente, é sempre um aprendizado cheio de boas lições. No mais, a chamada “literatura eletrônica”, não é e nunca será um novo gênero, mas uma realidade intransferível. Segundo N. Katherine Hayles, tudo isso afetou o sistema cognitivo humano e “aquilo que ilusoriamente parecia ter nascido dos livros e para os livros: a literatura”. Ou seja: um paradigma saiu silenciosamente pela janela enquanto outro instalava-se no jardim.

Nunca sei onde começa de fato um livro de poemas. Com “Artéria” (Editora Libertinagem-SP) não é diferente. Falo com a convicção de quem lê compulsivamente, mas também escreveu poemas e teve a sorte de vê-los publicados. Sou um leitor movido prioritariamente pelo prazer da leitura. Anárquico e apaixonado. Desde sempre prevalecem as minhas escolhas eletivas. Mas por onde começar e onde terminar a leitura de um livro de poemas sem deixar esquecida uma única página? Tenho meu próprio método. Nunca faço uma leitura linear. Apenas percorro este farfalhar de silêncios que, por exemplo, encontrei na poesia de Clareanna Santana. Muito jovem ainda, Clareanna aprendeu a pensar profundo. Sabe que a palavra - arma vital da poesia, também é letal. Serve para glorificar, mas também pode trucidar.

Artéria está à venda pelo site da Libertinagem, clique na imagem.

A poesia de Clareanna traz uma tradução literal da sua própria pele. Expressa um toque destemido, um mergulho represado. Um sol e uma lua que se dissolvem entre si de forma ritmada. Todos os sentidos e todos os signos conversam e trocam de lugar o tempo todo. Sim, fiz minhas escolhas e colhi bons frutos nos versos desta poeta talentosa nascida em Eunápolis, no Sul da Bahia. Hoje mais que poeta baiana, é do mundo. Integra um universo literário que apresenta ao Brasil nomes como Sérgio de Castro Pinto e Maria Valéria Rezende. Morando na Paraíba, habita um dos cenários de maior efervescência da literatura contemporânea. Sem pressa, vai ocupando espaços. Refazendo-se permanentemente, reinventando uma poesia que já se faz necessária.

O poema “coração de baleia” foi minha primeira leitura deste livro. Portanto, segui a minha lógica pessoal de leituras. Não é o primeiro poema do livro, mas um dos primeiros. Poema curto que exige leitura demorada. Fiquei buscando as paisagens nele contidas, as agonias, as fraturas expostas de cada verso e ao final me rendi aos seus apelos: “a veia recheada/ meio carne/ meio máquina/ reserva-se pronta e cheia./ liga-se ao músculo salpicado/ entre doçura e pecado:/ meu coração de baleia”. A escrita de Clareanna faz pensar e pensar um poema é a melhor maneira de senti-lo. Em “coração de baleia”, assim como em outros poemas, a poeta abre alas para uma caminhada que vem de longe, sem medo de revelar suas pegadas.

Em Clareanna Santana não vemos disfarce. Apenas um leve fingimento pessoano. Ela finge completamente “a dor que deveras sente”, mas não a disfarça. O filósofo francês Mikel Dufrene escreveu que “(...) a espontaneidade é, a um só tempo, a condição e a recompensa de sua operação e, antes de tudo, de sua docilidade.” Na espontaneidade da poesia de Clareanna é onde encontramos os seus maiores disfarces. Uma espontaneidade lírica que logo é encoberta pela artesania, pelo meticuloso trabalho com a palavra. Nossa poeta justifica as ideias de Domício Proença Filho: “(...) Na maioria dos casos é a própria obra que traz em si suas próprias regras. A obra literária de faz, fazendo-se.” Clareanna constrói em seus versos uma teoria para os seus próprios poemas.

Sua escrita tem uma unidade definida: é corpo, mente e mistério. A certeza de existir e a força onírica das suas indefinições. Tudo resumido em cada estrofe. Especialmente em poemas como “o corpo”, onde ela diz: “se de massa/carbono me faço/ é de antimatéria que vivo/ sobrevivo em meio ao cansaço/ sou matéria de corpo sofrido”. Ela sabe como afinar o instrumento. Conhece e reconhece as trajetórias do seu próprio corpo e as incertezas da pele. Sabe que o mergulho profundo é sempre revelado nas superfícies. No escambo dos sentidos, na dor e seus renascimentos. Sua verve nasce das alamedas percorridas e dos labirintos onde as certezas se perdem. Mergulhada em linguagens, vive visceralmente seus processos e suas relações impermanentes com a invenção. Vive cada vez mais profundamente a doma dos próprios delírios.

Em seu arsenal de palavras não há limites. A poeta revela suas metalurgias retorcendo os aços de cada significado. Não demonstra pressa.  Parece que faz e refaz sempre o mesmo verso. Debela agonias no trapézio que é sua invenção de segredos. Num Globo da Morte onde equilibra-se nos desequilíbrios e desafia seus limites. Como uma abelha rainha que faz e desfaz seus motivos. Ela transforma o poema num espelho de surrealidades. Mira-se no açude permanente das agonias e faz suas escolhas. Sabe que para além da imagem refletida, existe um olhar que consome os dias. Consciente da sua juventude, amplia seu tempo e sua existência em ancestralidades. Percebe que nada é fruto do acaso, mas não apressa o rio. Já percebeu que “ele corre sozinho”, como disse Barry Stevens. Sempre libertária, passeia na equidistância das margens.

Não parece preocupada com reverências programadas. Percebemos a sua consciência crítica dos nossos dias em poemas como “resistir”, onde a poeta reconhece o peso das travessias num tempo de guerras, enfrentamentos e pandemias: “acordo/ sem rito/ do luto/ vivo”. Transforma o substantivo masculino “luto” no verbo unificador das suas múltiplas existências. Sabe que sua condição de mulher num mundo de misoginias e patriarcados exige uma luta irrevogável, uma resistência que vai além do corpo. Resistir é reexistir ao nascer de cada Sol e de cada Lua. Como se o que desaba em cada esquina, o que dorme nas calçadas, o que queima nas florestas, também fosse a matéria prima do seu modo de resistir e reinventar-se em suas trincheiras de mulher múltipla, espelhada no aço reverso do espelho. Como uma ‘tigresa de unhas negras’, reage enquanto o mundo moderno impõe silenciamentos.

Certamente “há uma fome insaciável” revelada em cada verso enquanto a poeta distrai a matéria bruta. Brinca com as palavras, mas não com os pilares do poema. Talvez numa releitura de Maiakovski, vai dizendo para si mesma que “nós polimos as almas com a lixa do verso”. Antes de polir as almas dos leitores e leitoras, Clareanna tomou o cuidado de polir a sua própria. Tirou o pó das entranhas. Burilou seus versos para chegar no que Fernando Pessoa nos diz em O Guardador de Rebanhos: “ser poeta não é uma ambição minha/ é minha maneira de estar sozinho.” Visita sua sempre inevitável solidão, reconhece suas entranhas e segue deixando rastros. Jamais revela o corte nas cicatrizes. Não cobre suas dores com o couro cru da lamentação. Em plena sangria, mostra sua permanente inconformidade. Especialmente com o mundo, mas também consigo mesma: “olhos, boca, tato, vida, mundo.”

Já dizia o poeta mexicano Octavio Paz: “palavras de poeta, justamente por serem palavras, são suas e alheias”. É desta forma que Clareanna se despe aos olhares do mundo. Sem medo do que mostra. Ela mesma parece apoderar-se do que sente e vê. Quem a lê, compreende uma poesia que desnuda, mas que também estabelece distâncias. Ao falar de si, a autora reverbera seu tempo, reconfigura permanentemente seu modo de dizer. Desfralda a bandeira de uma geração que sonha e deseja um mundo de igualdades e linguagens conquistadas. Sem a imposição das certezas. Sem as convulsões do que não transborda. Sem as facilidades do que eleva, mas também oprime. Sua poesia agora não é mais apenas sua e ela sabe disso. Clareanna soltou sua alcateia de lobas famintas. Inventou sua rebelião. Como quem se alimenta das próprias feridas para se tornar imbatível. Traduz seus uivos pelas esquinas: “buscou preencher o vazio/ no corpo alheio / umbral em meio fio/ estupidez em copo cheio (eros)” Seus versos revelam bem mais do que as profusões do intimismo. Penetram na turbulência de quem os lê oferecendo generosamente o mapa dos seus esconderijos ao sabor repartido da existência.


CINCO POEMAS ESCOLHIDOS PELA AUTORA

 

a gota

 

a gota escapa da pia

como melodia ritmada

num solilóquio de dia

quebra o silêncio e nada.

 

saudade de casa

 

d’onde o sol corta a neblina

daquelas curvas acentuadas

deste barro em que sou carne

da terra indígena roubada

das linhas que marcam o asfalto

do mato que beira a estrada

do horizonte preenchido de pasto

do deserto verde que desmata

da mistura de nossas falas

das velhas cordas do violão

de todo amor que nos embala

daqueles versos de sua canção.

 

arbítrio

 

palma de cinco traços

carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas

golpeadas pela vida

eis as mãos e os calos

torneadas de danos

pele, unha e cicatriz

minha força motriz

meus caminhos mundanos.

 

a poesia está

 

na ponta da língua

na língua do dedo

no dedo a fonte

na fonte o cerne

no cerne a flor

à flor da pele.

 

terceto

 

acorda vida! Tece

a corda bamba:

tira à tira, fica a trama.

♡___________________♡__________________♡


LAU SIQUEIRA
Foto arquivo pessoal do autor

Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS, em 1957. Desde 1985 reside na Paraíba. Publicou oito livros de poemas, participou de diversos projetos e publicações sobre leitura literária. Sua poesia está incluída em antologias no Brasil e no exterior. Atualmente a Editora Casa Verde, de Porto Alegre, possui exclusividade sobre a sua obra e seus livros podem ser adquiridos pelo e-mail casaverde@casaverde.art.br

 

CLAREANNA SANTANA
foto do arquivo pessoal da autora

Clareanna Santana (1987), poeta baiana radicada na Paraíba. Escreve poemas desde a adolescência. "Artéria", livro de poesia recém publicado pela Editora Libertinagem (SP), é seu primeiro livro solo.

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: a curva da Velha Beta... Por Rosangela Marquezi

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA /05   HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: A CURVA DA VELHA BETA Rosangela Marquezi Minha mãe... Que ainda brinca! Fonte: Arquivo p...