V E R B
O M U L H E R|01
HELENA TROUXE
O TROMBONE
Por Helena Terra
“Para diminuir a febre de sentir” é o nome de um livro da Dalva Maria Soares. Comprei e estou ansiosa, embora eu não seja ansiosa, para ler. O Tonio Caetano, um escritor aqui do Sul, escreveu que o livro dela é sobre a coragem de dizer o que se sente. Lembrei na hora do poema, da Adélia Prado, que diz que “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Eu acho que até falo sobre o que sinto em alguma medida. E é esse em alguma medida o problema, o espinho que me incomoda. Mais que isso: me fere, pois me silencia. E de silêncio, de viver em uma sociedade permeada pela ausência de diálogo, com homens dizendo sobre o que, quando, até que ponto e de que forma devo existir e falar estou farta. Estou farta em causa própria e, também, das outras mulheres. O silenciamento é geral, faz parte do jogo de dominação e busca pelo poder estabelecido pelo rançoso e malsucedido patriarcado, porque, cá entre nós, o patriarcado é uma máquina primitiva e feroz de criar desigualdades e intimidações. Vou dar um exemplo:
Não faz muito tempo, um namorado me disse em tom de ameaça: Helena, não me incomoda! E por que disse? Não faço ideia. Não havia acontecido nada, não estávamos em conflito. Pelo menos, eu não estava. Na verdade, deitada no sofá de sua casa, eu, quieta e satisfeita, lia um romance. Se algo desagradável estava acontecendo, esse algo acontecia, cem por cento, na cabeça dele com as questões dele. Questões que eu nunca soube direito quais eram por diversas razões, sendo a principal a de que ele não aceitava falar sobre suas dificuldades e equívocos de qualquer ordem comigo. Não sei se com alguém. O que sei é que elas alteravam o seu humor e o autorizavam a agir no campo das hostilidades. Eu não tenho uma natureza hostil e sou bem-educada. Recebi e introjetei a perigosa boa educação dada às mulheres, e falo perigosa, porque ela, volta e meia, serve à perpetuação da verticalidade das relações entre casais heterossexuais. Cabe à mulher ser compreensiva e gentil. Cabe à mulher ser generosa com o seu homem. Cabe a ela se calar e digerir, como se fosse natural, a agressividade masculina.
Nos últimos anos, tenho cruzado com homens mais agressivos do que eu costumava. O discurso sexista propagado pelo senhor que está à frente do país, não tenho dúvida, resgatou e reforçou, mesmo entre os homens já mais civilizados e democráticos, comportamentos e falas discriminatórias e opressoras. De certa forma, houve uma recaída em direção aos ancestrais que animalizavam suas companheiras. De certa forma, o botão do protagonismo masculino foi acionado como se vivêssemos na época do Brasil colônia, aquele culturalmente dividido entre mulheres brancas e negras, sinhazinhas e escravas, todas igualmente ultrajadas embora de diferentes formas, sendo as mulheres negras em uma escala ainda maior e mais destrutiva de violência. As mulheres negras são mais agredidas e inclusive estupradas até hoje. “Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, é importante observar o grupo que está mais suscetível a ela, já que seus corpos vêm sendo desumanizados e ultrassexualizados historicamente”, Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ressalta. Eu sou uma mulher branca. Nessa nossa pirâmide de opressão e ofensas, recebo uma cota um pouco menor de dor. Mas recebo também. Ou recebia. Bati o meu martelo e inaugurei a minha era Bye Bye Autoritário enquanto não chega a de Aquário.
O último homem que me disse, sim, voltei a ouvir a frase Helena, não me incomoda, caiu da própria altura em tempo recorde. Meu detector de toxicidade disparou na mesma hora. Não há mais espaço na minha vida para abusos de qualquer natureza. Como também não há mais cegueira. Vejo a violência psicológica com clareza por mais que ela seja imaterial. Se eu estivesse dentro do livro “Ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago, me candidataria ao papel de guia e não de cega. A violência psicológica contra as mulheres, assim como o racismo, também é estrutural, vai além da misoginia, sendo que por ser invisível, acaba se tornando não denunciável e não sendo denunciável, também não se torna punível. Mas, de qualquer forma, je t’accuse! Sim, a ti e a qualquer um em que sirva a carapuça, porque a carapuça serve a muitos. Serve também àqueles que se omitem e desculpam os seus amigos quando os veem sendo prepotentes, injustos, desonestos e cruéis com uma mulher.
Me disse um amigo, escritor a quem admiro, que isso, essa boa vontade entre iguais, se deve à brotheragem, o sentimento gratuito de simpatia de um homem para com outro homem. Sentimento gratuito mesmo porque ser simpático a alguém violento não é justificável. Já uma amiga, escritora a quem também admiro, chama isso de “passar pano”. “Os homens passam pano para os homens”, ela diz. Mas eu não sou homem, portanto vou torcer o pano até não restar mais uma gota de água, sujeira ou mágoa. Violência gera mágoas. Eu guardo algumas, principalmente, por não me expressar e não ter enfrentado os agressores com que me deparei, alguns com alta competência para a destruição. No livro “Pandemonium”, do Zeca Fonseca, o livro que mais gosto de ler depois do “Lavoura Arcaica”, do Raduan Nassar, Lemok, o protagonista, conta que, na tentativa de minimizar as frustrações e dores que sentia, acabava por fazer as coisas de um jeito que o fazia sofrer ainda mais. Ou seja, enlameando a vida de um modo autodestrutivo. Eu, sinceramente, acho o direito de autodestruição super legítimo. O problema é que existe o autodestrutivo da espécie terrorista.
Espécie terrorista? Explico: o autodestrutivo terrorista é aquele homem que explode bombas em vez de tomar um silencioso copo de cicuta e depois, diante dos estilhaços, corpos e sentimentos atingidos de quem estava perto, normalmente a mulher que o estima, ainda se vitimiza quando ela se recusa a virar cinzas junto com ele e vai embora. Aí, em vez de pensar sobre si mesmo, o que fez, se desculpar e tentar uma reparação, o terrorista se enche de raiva como se se enchesse de dignidade e fala grosserias: sua opinião sobre mim não me interessa. É claro que não interessa. Todo mundo sabe o quanto Narciso acha feio o que não é espelho e o quanto não conhece remorso. Narciso, o do mito, até onde sei, via em seu reflexo algo encantador. O que não é o caso da maioria. A maioria dos narcisos contemporâneos vê a sua própria brutalidade e os seus próprios fracassos. E, para lidar com eles, é óbvio, que coragem e humildade são itens necessários. Quem não se vê, não se transforma. Segue viciado em si mesmo. Não conheço pior adição do que essa. Ela está por detrás de todas as outras. O viciado sempre encontra uma justificativa para o que faz e diz qualquer coisa para manter-se drogado. Até rouba.
No último verão, uma mulher, em estado
de estresse, me procurou em uma rede social. Tinha sido roubada por um homem
com quem convivi anos atrás e estava muito confusa. Segundo ela, um dos fatores
que tinham contado a favor de seu interesse por ele era o dele ter tido um
relacionamento comigo. Julguei ele por ti, Helena, me disse, comecei a sair com
ele pensando que ele fosse bacana como você. Eu sabia que ele não era. Roubou
também a mim. Mas como advertir as outras mulheres sobre os homens que
conhecemos? Nesse ponto também vivemos
um silenciamento e um aprendizado. Falo por mim. Já entendi que mesmo que
andemos em pares, seguimos sendo cada um cada um. Não é porque a ex de um
fulano é uma mulher incrível que ele também é. E já entendi que devo soltar o
verbo, dizer o que sinto, como escreveu o Tonio Caetano a respeito do livro da
Dalva Maria Soares. E o que sinto é que devo, doa a quem doer, tocar o trombone
de Asdrúbal. Fazer barulho. Reagir. Incomodar. E por falar em Asdrúbal, esse
era o nome do meu avô paterno. Não foi um homem legal. Depois de quarenta e
três anos tratando minha avó como uma serviçal, a abandonou. Perguntei a ela o
porquê. Respondeu: por um só menos, netinha. Acho que não. Meu pai foi vê-lo em
seu derradeiro momento, e pensou em dizer te amo, velho. Não conseguiu. Não era
verdade. E sem a verdade é tudo de mentira.
Maravilhoso o texto, principalmente em época pré eleições onde só aparece homem...
ResponderExcluirVerdade, Julia! O patriarcado segue com o poder público nas mãos, dando as coordenadas políticas e sociais.
ExcluirQue texto sensacional, quantas verdades!!
ResponderExcluirObrigada, Martha!
ExcluirAplausos não dá p interromper a leitura com a qual se aprende. Parabéns
ResponderExcluirObrigada.
ExcluirHelena,parabéns p trajetória!
ResponderExcluirSucesso que mereces!
Te sigo onde escreveres.
Texto lúcido mt bem escrito.Continua botando a boca no trombone pq temos uma caminhada longa q exige persistência e determinação q não te faltam.
Vai em frente...
O patriarcado com seus machistas de direita, de centro, de esquerda não quer ceder. Pois insistiremos no combate a ele!
ExcluirTexto incrível, parabéns!!!
ResponderExcluirObrigada.
ExcluirExcepcional texto dos melhores neuronios que ja conheci :) Loved 3,000!
ResponderExcluirObrigada, Luis. Tou no celular. Por alguma razão fico anônima! 😱 Fico felicíssima por você gostar do texto e dos meus neurônios. Eu gosto deles! E gosto muito dos seus. 😘 Beijo. Le.
ExcluirTexto excelente, Helena! Parabéns! Uma alegria tê-la conosco, obrigada pela parceria.🌷🤝🌷
ResponderExcluirMarta, tou anônima! Rsrsrs Muito obrigada por esse convite. 😘
Excluir😁😁😁
ExcluirParabéns, querida Helena! Que texto fodástico! Ele é daqueles que a gente tem que guardar e reler sempre, afinal, autoestima é algo difícil de se manter. Obrigada e boa sorte! ❤️
ResponderExcluirObrigada, Monica. Temos de trazer o trombone! Basta de violência psicológica!
ExcluirTexto fan-tás-ti-co!!!
ResponderExcluirObrigada! Beijos
ExcluirHelena, vou precisar voltar muito nesse texto! Gracias pelas palavras!
ResponderExcluirGabi, querida, era esse o texto que eu tinha comentado contigo. Ele é muito necessário. Se os homens fossem mais decentes conosco e de verdade democráticos, esse texto não seria necessário. Um dia há de não ser. 😘
ExcluirQue texto p o mundo. Por mais escritas farol como a tua. Gracias. Diovana.
ResponderExcluirObrigada, Diovana! Temos de trazer o trombone. Basta de patriarcado.
ExcluirParabéns Helena! Como dito em outro comentário, texto para se reler seguidamente, pois a autoestima é algo difícil de se manter. Obrigada! 🌹
ResponderExcluirObrigada! 😘
ExcluirObrigada! Vamos persistir. Beijo. Helena
ExcluirHelena, seu texto é necessário, tantas de nós calam-se diante da agressão, pública ou privada, explícita ou disfarçada, explosiva ou corrosiva. Não mais! Precisamos , cada vez mais, nos unir , dar as mãos, socorrer umas às outras, fazer barulho, muito barulho! Obrigada pelo texto.
ResponderExcluirOi, Rita. Aqui pelo celular fico anônima. Não sei porquê. Mas sei que persistiremos juntas no combate ao patriarcado e pelo fim das relações tóxicas e abusivas. Beijo. Helena.
ExcluirTexto excelente! Parabéns pela estreia!
ResponderExcluirObrigada, Carolina. Sigamos juntas! Beijo. Helena
ExcluirQue maravilha de texto Helena! Um presente necessário para esses tempos de retrocesso, em que devemos unir forças e escancarar nossa voz,botar no trombone mesmo ! Volta logo com outro que eu já quero ler.
ResponderExcluirObrigada, Rilnete. Sigamos juntas. Beijos. Helena.
ResponderExcluir