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domingo, 9 de outubro de 2022

CONTE-ME UM CONTO, POR LUCIRENE FAÇANHA


CONTE-ME UM CONTO|08

C O N E X Ã O   N O   T E M P O

POR LUCIRENE FAÇANHA


Terminava o expediente.

Uns cinco quarteirões andando apressada, curvada pela saudade, movida pela solidão.

No posto de comunicações,a atendente já conhecia seu pedido. Uma conexão discada,  para uma cidade do interior de outro estado. Aguardava por cerca de meia hora. A fome doendo no estômago. Muitas vezes escorregava na cadeira para o piso em busca de conforto.  Algumas vezes a espera era em vão: porque a conexão não se dava,  ou por não ter ninguém para atender.  Essa era a parte mais dura. Uma carta demorava cerca de um mês para retornar com  notícias. Tudo já estava tão distante - sem aquele fogo do Olho no olho, sem o abraço tao esperado,  o Aconchego.  Foram longos três anos

De volta para o seu lugar, convivio refeito. As lutas parecem brandas com o amor dos que a rodeiam.

Hoje num click pode ver ouvir e partilhar com todos, seja aqui no seu ninho ou em  outro país.  

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Lucirene Façanha nasceu em Morada Nova, reside em Fortaleza/CE. Aposentada do Banco do Brasil, escritora, artesã, mãe de Silvia e Adriana, graduada em História, com especialização em Ensino. Publicou em 2020 O Homem na Janela. Em 2021, foi selecionada pela Caravana Grupo Editorial, com o conto Hecatombe. Publicou pela Amazon os ebooks: Silencio sobre o algodão e O Elo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO|06, POR GABRIELA LAGES VELOSO

 CONTE-ME UM CONTO|07

O   R E L I C Á R I O

POR GABRIELA LAGES VELOSO

Após uma longa noite de sonhos intranquilos, Moira desperta sobressaltada, levanta-se e põe-se em frente à uma antiga penteadeira – uma relíquia pertencente à sua família, por gerações. Por um instante, ela contempla o espelho e vê uma mulher de oitenta anos, com seus cabelos grisalhos em completo desalinho, rugas ao redor dos olhos e boca, bem como, olhos azuis, que outrora cintilavam, mas agora se encontram opacos.

– “Em qual espelho ficou perdida a minha face?”  – suspirou, angustiada.

Moira é uma juíza renomada, aposentada há alguns anos, que mora em uma suntuosa mansão. Mas, apesar de toda a sua riqueza, não tem herdeiros. Logo após a aposentadoria, ela entrou em crise, pois encontrou-se frente a frente com a pergunta que a inquietou por toda a sua vida: quando será o meu tempo?

Ao sair de seu quarto, Moira caminha até uma grande janela, no final do corredor, e põe-se a observar a chuva. À medida que cada pequeno cristal d'água cai sobre a grama, traz à tona, com toda a vivacidade, as antigas memórias da aurora de sua vida.

A pequena Moira adorava dias de chuva, pois, nesses dias, sua mãe tinha o hábito de contar histórias, sentada em uma cadeira de balanço, para ela e suas duas irmãs, que faleceram em um trágico acidente, quando Moira tinha apenas cinco anos de idade. Por isso, a menina cresceu sufocada pela superproteção materna e as altas expectativas do pai.

Agora, em frente à grande janela, Moira estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu o avançar das horas. Permaneceu nesse transe até as sete horas, quando a governanta veio chamá-la para tomar seu desjejum. Alguns instantes depois, Moira estava perante à mesa posta com fartura, mas ela estava sem apetite, e quis tomar apenas uma xícara de chá.

– De fato, do fundo do poço só se pode tirar memórias ou mesmices ... – refletiu, Moira.

Que contraste Moira enxergou entre a fartura deste café da manhã, para uma única pessoa, e todas as refeições de sua família – ou até mesmo a ausência delas – em seus dias de infância. Essa percepção a transportou para o dia em que sua mãe recebeu um misterioso presente de uma falecida senhora: uma penteadeira de mogno, com miligramas de ouro incrustado em desenhos floreados, e um espelho embutido no majestoso móvel.

Moira aprendeu a ler e escrever bem cedo. Seus dias eram milimetricamente administrados pelo pai, que tinha um único objetivo na vida: fazer com que a filha jamais enfrentasse as mesmas privações pelas quais ele passou. Por isso, a menina tinha de estudar, dia e noite, para que, no futuro, tivesse uma profissão de prestígio e retorno financeiro a curto prazo.

Após o seu desjejum, Moira caminha por vários corredores e decide ir até o seu oásis particular: uma biblioteca de grandes dimensões, com prateleiras até o teto, todas preenchidas com edições de luxo de centenas de livros, desde os clássicos até os contemporâneos da literatura universal, em vários idiomas. Um leve lampejo, acende uma fagulha em seus olhos azuis. Ela está no único lugar em que realmente se sente realizada.

Moira pensou como teria sido sua infância em uma biblioteca como aquela, como teria se divertido, inventando suas próprias histórias, ou até mesmo imaginando ser a protagonista de seus romances favoritos.

Quando menina, seus passatempos favoritos, nas folgas de sua pesada rotina de estudos, imposta pelo pai, eram ler contos de fadas e romances que a transportavam para outros momentos e mundos e brincar em frente à majestosa penteadeira de sua mãe. Ao contemplar o espelho, ela não via a pequena garota de belos cachos castanhos e olhos azuis cintilantes, e sim, a protagonista da história que estava lendo, ou escrevendo.

O maior sonho de Moira era se tornar uma grande escritora, no futuro. Por isso, ela tinha um diário, no qual criava um mundo todo seu, cuja única lei era a liberdade. Bem, esse era o seu sonho, porém ele não estava nos planos de seu pai, que queria, a todo custo, que ela fosse rica. Por essa razão, ela escondia seu diário na última gaveta do imponente móvel de mogno, assim também como sua força para escolher o próprio destino.

Ainda na biblioteca, uma pequena lágrima cai dos tristes olhos azuis de Moira, ao lembrar de seu antigo diário infantil e perceber o quanto a sua existência foi vazia... vazia de significado, e, principalmente, de felicidade.

– Cada instante do nosso passado, nos faz ser quem nós somos – disse consigo mesma.

Nesse instante, a governanta entra na biblioteca e encontra Moira em prantos.

– A senhora está se sentindo bem? – perguntou a governanta.

– Não se preocupe comigo, só estou um pouco emotiva. – disse Moira, enxugando as lágrimas.

– Desculpe interrompê-la. Mas o Contador está lhe aguardando na sala de visitas, devo pedir-lhe que retorne em outro momento? – disse a governanta, com um olhar compreensivo.

– Não. Diga que irei descer em alguns minutos – disse Moira, resignada.

– Certo, senhora. Você realmente está se sentindo bem? – insistiu a governanta.

– Obrigada pela preocupação, mas o meu problema não pode ser resolvido agora – disse Moira, enigmática – não deixe o Contador esperando, diga que irei em instantes.

A compaixão de sua funcionária a fez viajar mais uma vez em suas memórias. Moira se viu perante o seu único e melhor amigo, que era também seu vizinho. Os dois costumavam brincar juntos no quintal de suas casas. Ele costumava ouvir, pacientemente, as queixas de Moira sobre a superproteção dos pais e como se sentia sufocada, por isso. O garoto sempre a alegrava e distraía com suas histórias, pois ele também era dono de uma imaginação fértil, porém, estava fadado a um destino no qual sua criatividade de nada valia. Ele era extremamente pobre, vivia em uma miséria maior do que a família de Moira jamais experimentaria. Por isso, quando completou apenas dez anos de idade teve de começar a trabalhar em uma fábrica de tijolos, para que a família não definhasse de fome.

Temendo que a filha se apaixonasse pelo garoto, quando eles chegassem à juventude, e assim tivesse um destino diferente do que ele planejara, o pai de Moira proibiu a amizade das duas crianças, o que as condenou a um caminho, no qual não havia tempo, nem espaço, para amizades ou sentimentos, somente para a monotonia diária e a solidão.

O temor do pai de Moira tinha uma explicação. No passado, ele é que fora o melhor amigo pobre de sua esposa. A avó, que Moira jamais conhecera, era uma mulher muito rica, que tinha apenas duas filhas, dentre as quais a primogênita um dia viria a ser a mãe de Moira. Contudo, a rica senhora não aprovava o relacionamento entre sua distinta filha e um rapaz tão humilde, pois acreditava não passar de um mero interesse financeiro. Por isso, deserdou sua primogênita no dia em que recebeu a notícia do casamento e se ausentou, assim, para sempre da vida de sua filha. Somente em seu leito de morte, arrependeu-se pela dura decisão e suplicou a sua segunda filha, a única herdeira de toda a sua fortuna, que entregasse a penteadeira à sua irmã, pois era uma relíquia, que atravessava gerações de primogênitos de sua descendência.

Agora, em seu escritório, Moira discute acaloradamente com o seu Contador, pois descobre um desfalque em suas finanças. E toda essa agitação lhe causa uma enorme dor no peito e ela cai desmaiada. Quando Moira recobra seus sentidos, ela se encontra deitada em sua cama e percebe o olhar cansado de sua governanta, que ficara em vigília, a noite inteira, cuidando de sua estimada senhora.

Um turbilhão de pensamentos invade a mente de Moira. Ela enxerga sua vida como um delicado castelo de areia que está sendo soprado pelo impetuoso vento da morte. Restam, agora, poucos grãos...

Ela percebe que sua existência fora preenchida unicamente pelas ausências de seu passado. Em seu peito aquela mesma dor se acentua, ela enxerga uma luz muito forte e imagina como teria sido a sua vida se ela tivesse, de fato, tomado as rédeas de seu próprio destino. Pois, em seu último suspiro, ela compreendeu que o futuro é um quebra-cabeças, com inúmeras lacunas, que podem ser preenchidas por várias peças disponíveis.

Inquieta, com a respiração ofegante, Moira desperta no dia de seu décimo oitavo aniversário. Tudo não passou de um sonho...

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Gabriela Lages Veloso (@_gabriela_lv) 

É escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). É colunista da Revista Sucuru, editora do núcleo poético de divulgação feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso, colaborou com coletâneas e revistas nacionais e internacionais.

 

Referência:

VELOSO, Gabriela Lages. Conto O Relicário. In: Revista Intransitiva – Memórias que nos atravessam, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, Dez./2020.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

CONTE-ME UM CONTO, POR MARGARIDA MONTEJANO

 


                 CONTE-ME UM CONTO|06

A   M Ã O   E   O   E S P E L H O

Por Margarida Montejano

Era uma sexta-feira comum numa cidadezinha pacata do interior de São Paulo.  Éramos jovens funcionários de um banco, na casa dos 20 anos. Eu, Márcia e meu amigo Jorge sentados em guichês coligados, esperando os clientes do banco chegarem.

Sim. Trabalhávamos como caixas bancários, naquele tempo em que não havia caixas eletrônicos e o atendimento era mecânico e humano simultaneamente, tínhamos que executar as operações monetárias e, ao mesmo tempo, agradar o cliente, pois era essa a política para se manter no emprego.  Pois bem. Havia alguns dias no mês em que o trabalho era raro. Tínhamos que nos cuidar para não cochilar.

Num desses dias, apesar de me mostrar sempre animada e criativa para passar o tempo, estava meio entediada, pois as horas não passavam. Foi então que meu colega Jorge provoca, dizendo: 

─ Não é você que sempre arranja um jeito de nos animar? Qual talento usará hoje para que o tempo passe depressa?

Pensei um pouco e, como adoro ser desafiada, fui logo dizendo:

─ Me dê tua mão!

─ Por quê? Vai me pedir em casamento?

Olhei paro os olhos dele e falei sério:

─ Jorge. Dentre os talentos que tenho, há um que você não conhece. Eu leio mãos. Pratico quiromancia.

Ele olhou-me incrédulo, duvidando. Foi então que o desafiei:

Vamos! Me dê sua mão esquerda!

Ele, em meio àquela calmaria, olhou e viu que não vinha ninguém em direção aos caixas. Esticou o braço e estendeu a mão.

Quero ver isso!

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Foi aí que tudo começou. Como alguém que entendia do assunto, fui logo lançando meu olhar na direção das linhas daquela mão jovem e magrela, que se encontrava, naquele momento, úmida de suor. Estava meu companheiro nervoso e eu me divertindo um bocado.

Anda, Márcia! Por que essa demora? Dizia meu colega aflito com receio que chegasse algum cliente.

Séria, como se visse algo nas linhas de sua mão, relatei a ele o texto que em minha mente se formava:

─ Jorge. Você irá se transferir de agência… será promovido em breve e, após formar-se na faculdade, se casará com uma jovem que não é a sua atual namorada. Pronto.

Importante dizer que as palavras descritas a ele eram uma projeção possível, pois eu o conhecia há um bom tempo: ele era um bom funcionário, dedicado e com potencial para liderança, logo uma promoção teria muita chance de acontecer. A transferência, uma possibilidade real para todos nós que lá trabalhávamos, também era fato. Muito bem. Com relação ao futuro afetivo de Jorge, eu também já tinha os dados. Ele estava terminando o curso superior e o namoro dele, pelo que ele mesmo contava, ia de mal a pior.

Conclusão. Brinquei com Jorge e fiz a previsão de seu futuro considerando as possibilidades.

Ele ficou pensativo, mas logo os clientes vieram e tratamos de esquecer essa brincadeira de desocupados. Seguimos por cerca de uns três meses trabalhando, levando a sério as atividades a nós confiadas e nos ocupando de passar o tempo com criatividade, o tempo que nos rodeava.

Jorge, um belo dia me chama e diz:  

Márcia! Não é que você adivinhou mesmo! Recebi uma promoção e terei de me mudar de cidade.

Que bacana, amigo! Eu disse surpresa! 

Fico feliz por você!

E assim Jorge foi para outra cidade, outra agência e eu fiquei sem meu companheiro de trabalho e de assuntos aleatórios.

Não é que, em uma manhã, eu ainda não havia assumido os trabalhos no caixa, pois faltavam 50 minutos para a agência bancária abrir, uma funcionária me chama e avisa que havia uma mulher à minha procura, dizendo-se ser a mãe de Jorge. A dona Odete.

Fui, é claro, atendê-la, como fazia com todos que me procuravam na agência. Ofereci a ela um café e já embalei na pergunta:

Bom dia, dona Odete! Em que posso ajudá-la?
Ela pediu para falar comigo em particular. Levei-a até a cozinha que estava vazia naquele momento.

─ Márcia! Leia minha mão? Disse-me ela de forma direta.

 O quê? Engasguei com o café. Não estou entendendo!

 Márcia, você leu a mão de meu filho e você acertou. Está acontecendo tudo o que você viu nas mãos dele. Ele se mudou de agência e cidade, foi promovido a gerente e você acredita que ele rompeu com a Cris e está super apaixonado por Paula?

Naquele momento lembrei-me de minha travessura lendo, de forma inconsequente, as mãos de Jorge. Tremi nas bases. Respirei e expliquei a ela que eram coincidências, pois eu havia brincado com Jorge. Que não lia mãos.

Ela foi logo pegando em minhas mãos e oferecendo as suas, implorando para que eu as lesse.

Dona Odete. Ouça-me. Eu brinquei com Jorge. Não leio mãos, repeti:

Ela com os olhos cheios de lágrimas me implorou. 

Moça. Por favor! Diga-me alguma coisa, pelo menos! Eu estou a um passo de explodir, de fazer uma loucura! 

Estava desesperada, com os olhos tomados de lágrimas. Era visível a necessidade daquela mulher de ser ouvida. De receber atenção. De um ombro, um colo, uma palavra!  Sentamo-nos no banco daquela cozinha gelada como todo ambiente bancário, peguei as duas mãos da senhora aflita à minha frente, e disse:

Fala-me: o que está acontecendo? Rendi-me ao pedido.

E ela falou da traição e separação do marido que tanto amava, das dificuldades que tinha com os filhos mais novos e do medo de não conseguir lutar e seguir sozinha, pois estava a ponto de desistir de tudo. 

Ela desabou ali e contou-me de suas dores. A mim, uma mulher desconhecida.

Ouvi com atenção cada palavra. Ela chorou e eu chorei junto com ela. Quando ela parecia mais calma e recomposta, eu disse:

Odete. Vou lhe chamar assim. Não preciso ler tua mão. Você vai vencer essa tormenta, porque você é mulher e, por isso, é forte. Vai enfrentar a adolescência dos filhos com coragem, porque você é mãe e os ama e vai ainda ser muito feliz. É esse o seu desejo e também porque o mundo não acaba quando um casamento não dá certo. Creia nisso! Acredita. Tudo se encaminhará! 

Ela secou os olhos vermelhos com as mãos. Agradeceu-me por ouvi-la e saiu. 

Naquele dia, a agência lotou de clientes e eu mal tive tempo de pensar no que havia se passado na cozinha. De organizar as ideias. De respirar, de entender o ocorrido naquela manhã.

Passou o tempo, desliguei-me do banco, formei-me professora, casei-me e fui morar no Rio de Janeiro. 

Um belo dia, em visita à cidade natal, estava eu na farmácia São José, sendo atendida por um balconista, quando, dentre outros clientes que também esperavam no balcão, uma mulher reconhece minha voz e, sem demora, me aborda!

Moça. Dá licença. Você não é a Márcia que trabalhava no banco com o Jorge, meu filho? 

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Eu gaguejo, olho nos olhos dela e a reconheço. Estava mais envelhecida, mas ainda muito bonita. A senhora é a…

Odete. Sim, mãe do Jorge! 

Enquanto o balconista providencia minha compra, converso com ela:

Olá Odete! Prazer em vê-la! Eu disse meio espantada.

Como a senhora está? E seu filho? Eu gostava muito de trabalhar com ele!

Ela esperou eu terminar de ser atendida, puxou-me pelo braço num canto da farmácia e foi logo dizendo:

Nossa, menina! Como eu a procurei! Muito obrigada! Preciso dizer que tudo o que você falou para mim, naquela cozinha, aconteceu! 

Emocionada pegou minhas mãos e apertou-as como se quisesse transpor a mim sua energia. Sua gratidão.

Aos poucos fui me desvencilhando das mãos da bela senhora e fiquei por uns segundos olhando-a. Um tempo de um raio ou de uma eternidade durou a cena. Só sei que foi o suficiente para lembrar-me de tudo o que aconteceu e pude dizer a ela, com detalhes, o que senti naquela manhã no banco.

Dona Odete. Naquele dia eu não fiz a leitura de sua mão. Eu não podia atender seu pedido, porque seria imprudente fazer aquilo. Mas, eu fiz a leitura das minhas mãos, das nossas mãos. 

Quando a ouvi, entendi o quanto precisamos, nós mulheres, umas das outras e, não importa o quanto somos próximas ou distantes, nos fortalecemos quando estamos juntas. Quando nos ouvimos, quando nos damos as mãos!

Ela me olhava atenta e eu respirei fundo e continuei:

 Quanto às palavras ditas naquele dia, é preciso que eu lhe diga: mirei os seus olhos marejados e, naquele momento, eles pareciam um espelho. Um espelho refletindo… e, o que eu neles lia e repetia em voz alta, eram os seus desejos.

Sou também grata por aquele momento, Odete! Aprendi muito. Boa sorte a você querida!

Sequei meus olhos com uma sensação estranha, mas feliz. Me despedi dela e saí da farmácia com o espelho na mão, o qual eu acabara de comprar.

(Margarida Montejano, in Fio de Prata, 2022)


domingo, 16 de janeiro de 2022

CONTE-ME UM CONTO: IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S), POR DALVA LOBO

 


CONTE-ME UM CONTO/05


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


IDENTIDADE(S) E CALCINHA(S)

Por Dalva Lobo 


Pedaços de mim espalhados entre palavras que busco tentando encontrar a rima perfeita para esse dia que termina. Não há rima, apenas o ritmo do mundo acontecendo. Uma nota de melancolia surge.  Sempre pode surgir, nada de novo nisso. O novo é a forma de lidar com ela, percebendo nesse exato momento melancólico, o desejo de deixar a “identidade” em casa, dessa vez o desejo assumido, não o ato falho de “esquecer de levar calcinha na viagem”. Engraçado, nunca esqueci a calcinha, aliás, tenho montes delas, cores, texturas, tamanhos. Duas gavetas. Como alguém se esquece de levar a calcinha para a viagem?

Por que é tão bom deixar a identidade em casa? Abrir espaços para outras identidades entranhadas e adormecidas? Quem sabe um pequeno jogo de esconde-esconde, perverso às vezes, é verdade, mas também, extremamente sedutor.

        Entre mim e meu(s) desejo(s) muitas cores; algumas vibrantes, outras “pasteis” como podem ser as identidades em alguns momentos, socialmente vestidas para matar, matar o desejo com ares de plena seriedade, identidades “pastel”, serenas e inofensivas, até.  Passam ao longo do tempo misturadas à massa mundana sem qualquer ímpeto. Essas são as mais vistas e bem-vistas, diga-se de passagem.

Mas há as identidades coloridas, como o desejo, vibrantes... e de várias texturas, assim como as calcinhas. Para elas, gavetas especiais, afinal são identidades coloridas, merecem ser separadas por cor, textura, tamanho.  Um luxo de fazer inveja a qualquer... bem... “calcinha”?  Não importa, sempre podemos ter gavetas para calcinhas e identidade(s).

Por falar nisso, gavetas são muito interessantes. Pequenas ilhas nas quais guardamos “coisas” como se em algum momento não houvesse a tal confusão de guardar a identidade na gaveta das calcinhas!  Às vezes, deliberadamente, para não esquecer nenhuma na viagem.

Gavetas com pequenos compartimentos para separar documentos, meias, absorventes, perfumes, bijuterias, penduricalhos e todo treco que não nos interessa “naquele momento”, ou que nos interessa por demais. Lembranças. Gavetas são ilhas de lembranças de toda sorte – boas, engraçadas, estranhas, tristes (que juramos jogar fora um dia).

Gavetas são ilhas em que guardamos partes de nós, de nossas identidades e de nossas calcinhas. Gosto de gavetas, mas por algum (des)-cuidado acaso, em algum momento tudo se perde dentro delas e então a angústia se revela: onde será que guardei isso? Já me desfiz? Guardei tão bem que escondi de mim mesma?

          Grande acaso! Uma mão do destino, diria algum sábio de plantão. No momento em que o acaso cuida do destino, tudo se modifica, o olhar viciado é obrigado a seguir em outra direção para encontrar nas pequenas ilhas, os guardados valiosos do tempo.

Se por acaso isso cheira à naftalina, não se engane, apenas atente para as pequenas ilhas, olhe sabendo que vão mudar, afinal, ninguém sobrevive ao cheiro de naftalina, isso não é passado valioso, é passado remoído e não cabe em minhas gavetas.

Nestas, somente a mistura de identidades coloridas e as calcinhas, claro! E se as esqueço é porque de alguma forma não preciso delas (ao menos po algum momento). E isso me basta.



quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

CONTE-ME UM CONTO: GATE 36




CONTE-ME UM CONTO/04


Para ouvir o podcast, clique AQUI.


GATE 36

Por Marta Cortezão

 

No saguão do aeroporto, sentada à espera do voo que me devolveria de volta ao Amazonas, meus sentidos, atordoados pela espera, capturam a realidade à minha volta e dão um pouco de colorido emocional ao tédio das longas horas que se arrastam preguiçosamente... tanta gente, tantas pernas ziguezagueando diante de mim, pernas bem torneadas, outras nem tanto, outras curvadas pelo peso da idade, outras ainda cheias de vigor, de vida, umas e outras bem tuíras, meio cor canela de urubu, até que um cremezinho Nívea não cairia mal! outras estilo Garrincha, porque sim... Eita! E essas que passam levando uns glúteos tão bem definidos, talvez na academia à custa de muito suor! Ou não, quem sabe a boa genética lhes tenha em total apreço… talvez. Acho que preciso levar mais a sério a academia, sinto que, quando dou um tchauzinho, estilo princesa Kate Middleton, meu tríceps também se despede...

Quantos narizes pendurados em rostos de tantas raças que aqui se misturam no portão de embarque 36 de Viena! Uns, estilo Mozart, outros, pontiagudos, arrebitados, que parecem crescer a cada pausa de minha espera, mas o meu e o de uma outra senhora, à minha frente, são bem similares, aplanados e têm protuberantes asinhas para combinar com o voo que se espera, coisas do destino, vamos dizer assim, porque tenho a cansativa mania de amarrar todos os cabos soltos, como uma boa virginiana que sou e que acaba de entrar na Era de Aquário... O relógio marca 3h06 da tarde primaveril austríaca... 3 mais 6 são 9, um bom número, simboliza a luz interior, prioriza ideais e sonhos, experienciados mediante às emoções e à intuição; representa a ascensão a um grau superior de consciência e a capacidade de sair pelo mundo espalhando amor aos outros.... Claro, vai que por culpa de qualquer fio solto, a incoerência do tal destino coloque um ponto final à vida… uma turbulência... sei lá… nunca se sabe! Espero que a última mão que eu segure forte, em clima de despedida, seja pelo menos de um passageiro bonitão..., só porque lembrei de Belchior cantando “foi por medo de avião/que eu segurei/pela primeira vez a tua mão”... Bem, melhor nem pensar nisso!

Um senhor elegantemente vestido, charmoso até, se senta em uma das cadeiras de descansar nádegas cansadas de passageiros, abre a pasta de empresário, retira um tablet e põe cara de homem de negócios conectado com o mundo das finanças, parece super concentrado, até que passam diante dele umas pernas torneadas com umas leggings super coladas... assim que os olhos do businessman se esticam para apreciar as passantes pernas e, no caminho de volta, seu olhar esbarra com o meu, e rapidamente nossos olhos serelepes e desorientados desviam a direção, como se fôssemos nos comprometer naquele encontro visual... uma sensação estranha, égua! Ficamos nessa lenga-lenga umas quantas vezes, havia uma sensação nítida de que eu era a raposa e ele, as uvas, até desejei um beijo roubar, mas nenhum de nós tinha laquê no cabelo... O que diria Reginaldo Rossi disso?

De repente, meus sentidos foram sequestrados pelos ósculos ardentes do jovem e assanhado casal beijoqueiro sentado a meu lado, eram beijos estalados e sussurros ao ouvido, com direito a cafungadas no cangote... essas coisinhas que animam o espírito das diabruras de quem se sente alcançado pelo “fogo que arde sem se ver”... Nisso, um rapaz bem engomadinho e engravatado avisa, via megafone, num inglês britânico, que dentro de bilhões de segundos o embarque se iniciaria. Rummm, pra que, maninha? Aqueles passageiros do gate 36 imediatamente avançam em marcha, em movimentos mecânicos, como se fossem saúvas cortadeiras, carregando cada uma seu quinhão de folha. Que saco! me vejo obrigada a abandonar meu confortável lugar de espera, justo quando o clima erótico começava a esquentar... Fui me reunir às outras companheiras saúvas da gigantesca fila. A saúva da minha frente tinha um pescoço que pedia beijo, juro!... Cruzes! Acho que aquele jovem casal me contagiou de amores..., mas não vou me render a esse louco e convidativo pedido, nego-me terminantemente, não estou aqui para isso!... E se estivesse? “Ah, para com isso, boba, o universo deseja a sua felicidade!”, me repetiu aquela vozinha amiga interior que sempre me anima para o pecado. Bem que seria uma boa ideia... as horas passariam até mais rápidas e prazerosas! E se eu tropeçasse em minha pequena folha de 10 kg e caísse esparramada nesse saúvão da frente?! Ai, melhor esquecer isso.

Passeio os olhos e vejo meu ex sentado, abraçando a namorada, ela dormindo apoiada em seu ombro e ele roçando carinhosamente seu rosto ao dela... Que cretino! Nunca me fez um carinho assim e sequer me abraçou tão apaixonadamente em público... Prefiro admirar o amor do jovem casal que continua sentado praticando a religião dos ósculos ardentes e que agora mesmo tem braços e pernas entrelaçados... Como eles podem ser tão flexíveis assim?! Claro, o amor é flexível, não precisa ser forte, basta ser dócil, complacente e transigente... Não! já basta a longa espera, nada de fazer conexão com a filosofia, né, maninha!? Caramba, não é meu ex, mas o primo dele, tenho certeza, claro, o primo foi sempre mais bonito e mais carinhoso, é isso mesmo! Sempre gostei do primo, mas como ele nunca me deu bola, fiquei com o arigó do Gerisney para fazer ciúmes e deu no que deu, afff! Se arrependimento matasse, já havia retornado ao pó, segundo o Gênesis, amém! Estava tudo muito claro para mim, como pude me enganar! O primo do meu ex e a namorada saem abraçados, como dois pombinhos, e juntam-se às outras saúvas que aguardavam a entrada na monstra fila rumo ao formigueiro alado.

Nossa! Não acredito! Tem um viking lindo, na fila ao lado, cheio de barbaridades no olhar e outra vez acontece a mesma coisa estranha que sucedeu com o businessman: nossos olhares se encontram e outra vez saem correndo espavoridos para ensimesmarem-se nas respectivas e assanhadas entranhas... Mas deu tempo de sentir o viçoso verde daqueles olhos... Meu cartão de embarque foi ao chão juntamente com o passaporte, nos agachamos quase ao mesmo tempo, foi como se estivéssemos apenas nós dois, tudo acontecia na Era de Aquário, no compasso de minha respiração ofegante, nossas mãos se tocaram, meu coração acelerou... Aquela barba bem povoada, tão bem feita, deixando aqueles lábios rosados e carnudos em destaque... Ele sorriu, ficamos meio atrapalhados porque nos chocamos de leve, enquanto Elvis Presley cantarolava Oh my love, my darling/ I’ve hungered for your touch... De repente, estávamos nas ilhas Maldivas, duas taças de vinho, um jantar especial, ele chegando vestido com uma saia atrevidamente escocesa (sim, foi um equívoco, ele não era um viking, como disse antes), se aproximando com um lindo sorriso na boca, voz grave, sedutora, seus braços com sede de entrelaçar-me apetitosamente, vinham em minha direção, aquela fragrância máscula inebriando-me os sentidos, desde seus quase dois metros de altura (eu suspirando enxerimentos) para dizer-me... “Senhora, faça o favor de andar, o embarque já começou!”. Abandono meu louco devaneio “p” da vida! Essas saúvas mecânicas não sabem viver o prazer da espera!

 

(Marta Cortezão, In: Entre linhas, memórias e outras passagens [livro eletrônico] / Organizado por Letícia Pinto Cardoso. - Manaus : Edição do Autor, 2021. Link de acesso https://drive.google.com/file/d/1nvT8MoNSWtgRWJY-__4V8iqzqQMgG9ek/view )




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