CONTE-ME UM CONTO|07
O R E L I C Á R I O
POR GABRIELA LAGES VELOSO
Após uma longa noite de sonhos intranquilos, Moira desperta sobressaltada, levanta-se e põe-se em frente à uma antiga penteadeira – uma relíquia pertencente à sua família, por gerações. Por um instante, ela contempla o espelho e vê uma mulher de oitenta anos, com seus cabelos grisalhos em completo desalinho, rugas ao redor dos olhos e boca, bem como, olhos azuis, que outrora cintilavam, mas agora se encontram opacos.
– “Em qual espelho ficou perdida a minha face?” – suspirou, angustiada.
Moira é uma juíza renomada, aposentada há alguns anos, que mora em uma suntuosa mansão. Mas, apesar de toda a sua riqueza, não tem herdeiros. Logo após a aposentadoria, ela entrou em crise, pois encontrou-se frente a frente com a pergunta que a inquietou por toda a sua vida: quando será o meu tempo?
Ao sair de seu quarto, Moira caminha até uma grande janela, no final do corredor, e põe-se a observar a chuva. À medida que cada pequeno cristal d'água cai sobre a grama, traz à tona, com toda a vivacidade, as antigas memórias da aurora de sua vida.
A pequena Moira adorava dias de chuva, pois, nesses dias, sua mãe tinha o hábito de contar histórias, sentada em uma cadeira de balanço, para ela e suas duas irmãs, que faleceram em um trágico acidente, quando Moira tinha apenas cinco anos de idade. Por isso, a menina cresceu sufocada pela superproteção materna e as altas expectativas do pai.
Agora, em frente à grande janela, Moira estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu o avançar das horas. Permaneceu nesse transe até as sete horas, quando a governanta veio chamá-la para tomar seu desjejum. Alguns instantes depois, Moira estava perante à mesa posta com fartura, mas ela estava sem apetite, e quis tomar apenas uma xícara de chá.
– De fato, do fundo do poço só se pode tirar memórias ou mesmices ... – refletiu, Moira.
Que contraste Moira enxergou entre a fartura deste café da manhã, para uma única pessoa, e todas as refeições de sua família – ou até mesmo a ausência delas – em seus dias de infância. Essa percepção a transportou para o dia em que sua mãe recebeu um misterioso presente de uma falecida senhora: uma penteadeira de mogno, com miligramas de ouro incrustado em desenhos floreados, e um espelho embutido no majestoso móvel.
Moira aprendeu a ler e escrever bem cedo. Seus dias eram milimetricamente administrados pelo pai, que tinha um único objetivo na vida: fazer com que a filha jamais enfrentasse as mesmas privações pelas quais ele passou. Por isso, a menina tinha de estudar, dia e noite, para que, no futuro, tivesse uma profissão de prestígio e retorno financeiro a curto prazo.
Após o seu desjejum, Moira caminha por vários corredores e decide ir até o seu oásis particular: uma biblioteca de grandes dimensões, com prateleiras até o teto, todas preenchidas com edições de luxo de centenas de livros, desde os clássicos até os contemporâneos da literatura universal, em vários idiomas. Um leve lampejo, acende uma fagulha em seus olhos azuis. Ela está no único lugar em que realmente se sente realizada.
Moira pensou como teria sido sua infância em uma biblioteca como aquela, como teria se divertido, inventando suas próprias histórias, ou até mesmo imaginando ser a protagonista de seus romances favoritos.
Quando menina, seus passatempos favoritos, nas folgas de sua pesada rotina de estudos, imposta pelo pai, eram ler contos de fadas e romances que a transportavam para outros momentos e mundos e brincar em frente à majestosa penteadeira de sua mãe. Ao contemplar o espelho, ela não via a pequena garota de belos cachos castanhos e olhos azuis cintilantes, e sim, a protagonista da história que estava lendo, ou escrevendo.
O maior sonho de Moira era se tornar uma grande escritora, no futuro. Por isso, ela tinha um diário, no qual criava um mundo todo seu, cuja única lei era a liberdade. Bem, esse era o seu sonho, porém ele não estava nos planos de seu pai, que queria, a todo custo, que ela fosse rica. Por essa razão, ela escondia seu diário na última gaveta do imponente móvel de mogno, assim também como sua força para escolher o próprio destino.
Ainda na biblioteca, uma pequena lágrima cai dos tristes olhos azuis de Moira, ao lembrar de seu antigo diário infantil e perceber o quanto a sua existência foi vazia... vazia de significado, e, principalmente, de felicidade.
– Cada instante do nosso passado, nos faz ser quem nós somos – disse consigo mesma.
Nesse instante, a governanta entra na biblioteca e encontra Moira em prantos.
– A senhora está se sentindo bem? – perguntou a governanta.
– Não se preocupe comigo, só estou um pouco emotiva. – disse Moira, enxugando as lágrimas.
– Desculpe interrompê-la. Mas o Contador está lhe aguardando na sala de visitas, devo pedir-lhe que retorne em outro momento? – disse a governanta, com um olhar compreensivo.
– Não. Diga que irei descer em alguns minutos – disse Moira, resignada.
– Certo, senhora. Você realmente está se sentindo bem? – insistiu a governanta.
– Obrigada pela preocupação, mas o meu problema não pode ser resolvido agora – disse Moira, enigmática – não deixe o Contador esperando, diga que irei em instantes.
A compaixão de sua funcionária a fez viajar mais uma vez em suas memórias. Moira se viu perante o seu único e melhor amigo, que era também seu vizinho. Os dois costumavam brincar juntos no quintal de suas casas. Ele costumava ouvir, pacientemente, as queixas de Moira sobre a superproteção dos pais e como se sentia sufocada, por isso. O garoto sempre a alegrava e distraía com suas histórias, pois ele também era dono de uma imaginação fértil, porém, estava fadado a um destino no qual sua criatividade de nada valia. Ele era extremamente pobre, vivia em uma miséria maior do que a família de Moira jamais experimentaria. Por isso, quando completou apenas dez anos de idade teve de começar a trabalhar em uma fábrica de tijolos, para que a família não definhasse de fome.
Temendo que a filha se apaixonasse pelo garoto, quando eles chegassem à juventude, e assim tivesse um destino diferente do que ele planejara, o pai de Moira proibiu a amizade das duas crianças, o que as condenou a um caminho, no qual não havia tempo, nem espaço, para amizades ou sentimentos, somente para a monotonia diária e a solidão.
O temor do pai de Moira tinha uma explicação. No passado, ele é que fora o melhor amigo pobre de sua esposa. A avó, que Moira jamais conhecera, era uma mulher muito rica, que tinha apenas duas filhas, dentre as quais a primogênita um dia viria a ser a mãe de Moira. Contudo, a rica senhora não aprovava o relacionamento entre sua distinta filha e um rapaz tão humilde, pois acreditava não passar de um mero interesse financeiro. Por isso, deserdou sua primogênita no dia em que recebeu a notícia do casamento e se ausentou, assim, para sempre da vida de sua filha. Somente em seu leito de morte, arrependeu-se pela dura decisão e suplicou a sua segunda filha, a única herdeira de toda a sua fortuna, que entregasse a penteadeira à sua irmã, pois era uma relíquia, que atravessava gerações de primogênitos de sua descendência.
Agora, em seu escritório, Moira discute acaloradamente com o seu Contador, pois descobre um desfalque em suas finanças. E toda essa agitação lhe causa uma enorme dor no peito e ela cai desmaiada. Quando Moira recobra seus sentidos, ela se encontra deitada em sua cama e percebe o olhar cansado de sua governanta, que ficara em vigília, a noite inteira, cuidando de sua estimada senhora.
Um turbilhão de pensamentos invade a mente de Moira. Ela enxerga sua vida como um delicado castelo de areia que está sendo soprado pelo impetuoso vento da morte. Restam, agora, poucos grãos...
Ela percebe que sua existência
fora preenchida unicamente pelas ausências de seu passado. Em seu peito aquela
mesma dor se acentua, ela enxerga uma luz muito forte e imagina como teria sido
a sua vida se ela tivesse, de fato, tomado as rédeas de seu próprio destino.
Pois, em seu último suspiro, ela compreendeu que o futuro é um quebra-cabeças,
com inúmeras lacunas, que podem ser preenchidas por várias peças disponíveis.
Inquieta, com a respiração ofegante, Moira desperta no dia de seu décimo oitavo aniversário. Tudo não passou de um sonho...
Gabriela Lages Veloso (@_gabriela_lv) |
É escritora, poeta e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). É colunista da Revista Sucuru, editora do núcleo poético de divulgação
feminina Sociedade Carolina e membro do projeto Entre Vasos y Versos, que conta
com a participação de escritores de diversas nacionalidades. Além disso,
colaborou com coletâneas e revistas nacionais e internacionais.
Referência:
VELOSO, Gabriela Lages. Conto
O Relicário. In: Revista Intransitiva – Memórias que nos atravessam, Rio
de Janeiro, v. 4, n. 2, Dez./2020.
Muito obrigada por compartilhar o meu conto, Feminário Conexões!
ResponderExcluirAmei seu conto! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada!
ExcluirPrazer tê-la conosco, Gabriela Lages. Fraterno abraço🌷
ResponderExcluir❤
ExcluirO seu conto, Gabriela é lindíssimo. Moira é personagem de romance e pede continuidade, querida! Vamos! Fiquei com vontade de ler mais sobre ela e sua história por construir. Parabéns a você e ao Feminário Conexões. Amo esse espaço.
ResponderExcluirMargarida Montejano
Muito obrigada, querida Margarida ❤
ExcluirQue belíssimo conto Gabriela Lages! Viajei durante a narrativa, e também suspirei no desfecho acalentador. Voltarei, você é sensacional! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
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