sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE





FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|03

A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA – O INFINITO PARTICULAR

 POR ISA CORGOSINHO

 

Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto. (...), basta uma observação preliminar: uma gaveta vazia é inimaginável. Pode apenas ser pensada. E, para nós, que temos que descrever o que se imagina antes do que se conhece, o que se sonha antes do que se verifica, todos os armários estão cheios.                                                                    

(BACHELARD, 1994, p. 21)

A epidemia COVID--19 que assombra a humanidade nos cinco cantos do mundo, enlutando os continentes com as cifras desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira, a responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia fascista que desgoverna o país. 

Os movimentos sociais criam meios e modos de organização para confrontar o caos sanitário e o total descaso governamental que impera de norte ao sul do país. As organizações de resistência, que em contexto de normalidade expressavam-se nas manifestações de rua, apropriam-se das mídias virtuais, que ganham força devido às medidas de segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse complexo e desafiador contexto, com posições estéticas vinculadas ao ético, com militância firmada nos movimentos feministas e em outras bandeiras dos movimentos culturais.

Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.

A arte é o front principal da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta, circulação e trocas entre as poetas participantes.      

Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição de protagonista, vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina contemporânea, e já nos oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas coletâneas de poesias. Ao nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto, ocorreu-nos a vontade de refletir teoricamente sobre a constituição de algumas imagens reincidentes na poética feminina que merecem um início de conversa. 

Além das marcas ideológicas, a riqueza imagética que transborda dos versos das enluaradas nos movimentou em direção a uma obra que parece se localizar na constelação das filhas de Selene: A poética do espaço, de Gaston Bachelard.  Por que essa obra mobiliza nossa atenção? Primeiro, porque a casa, local por excelência de abrigo, tornou-se, no contexto pandêmico, um complexo sistema espacial: isolamento, lazer, esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina e, sobretudo, território propício aos vários tipos de violência e neurose. Segundo, porque a casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família que ali estava quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que seja, pode nos dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a intuição, erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes, proporciona um insight penetrante, assegura o poder incisivo da observação e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o negam e o rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando proveito de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre a escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em cosmos.      

Na Poética do espaço, Bachelard apresenta a casa como um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Constrói uma ideia de casa que diverge da noção de um objeto, apresenta uma reflexão sobre as relações simbólicas pelos trilhos da relação realidade e imaginação, na concepção de um ideário fenomenológico. Para um fenomenólogo, as nuanças de nosso apego a um lugar predileto não são colorações superficiais suplementares. É necessário dizer como habitamos o nosso espaço vital em conformidade com as dialéticas da vida, como nos enraizamos, cotidianamente, “num canto do mundo”.   

 

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.  

(BACHELARD, 1993, p. 24)

 

Destacam-se, nesses trilhos, as relações oníricas que simbolicamente transcendem os espaços físico e material, normalmente pensados em seus predicados utilitários, e nos leva a interpretar a ideia de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (1993, p. 25).  Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando afirma que na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por meio do pensamento e do sonho.

É nessa forma expandida da simbologia da casa que nos orientamos para interpretar os sentidos enunciativos da poesia: abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem frente ao mundo de dispersão dos sonhos, das lembranças e do pensamento; avassalados por inundações de imagens exteriores e pelo medo da morte, enlutados por perdas de entes queridos.   

Bachelard esclarece que não é apenas em sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado; a antiga locução: “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variantes (BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham para aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem.  De tal modo, a casa não vive somente no dia a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que representam o refúgio das emoções - sótão, porão, corredores – que são desvendados pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. A literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que associam a intimidade aos espaços físicos da casa e suas adjacências.  Assim compreendida, a casa configura um corpo de imagens que dão ao indivíduo razões e ilusões de estabilidade, constância. É preciso reinventar constantemente sua realidade: distinguir suas possíveis imagens é perseguir a alma da casa; perseguir uma psicologia da casa.  O resultado dessa ordenação está na representação da casa como ordenação de imagens que a torna um ser vertical, muito ligada à ideia de consciência ou, por outro lado, a imagem da casa como um ser concentrado em que se enfatiza a “consciência de centralidade”. A relação consciente e inconsciente - realidade da casa e do espaço de forma concreta e realidade do espaço de forma abstrata - indicam a relação junguiana com a realidade e seus símbolos.

A poética do espaço de Bachelard oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que situam o lirismo numa relação estreita com as dimensões metafóricas da casa e as ambivalências dos seres ali representados. Nota-se que, na poesia, o espaço adquire o caráter de poética ao estabelecer relações simbólicas que envolvem os dramas e aspirações dos seres em seus espaços habitáveis ou desejados, sonhados. Esse mundo simbólico funde elementos do eu lírico a espaços que transcendem o material e acenam para representações arquetípicas junguianas.  Trata-se não apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço.  São os poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos detalhes e da simplicidade.  Por outro lado, a imensidão reflete uma busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o espaço.

 

C(ASAS)

                Nic Cardeal

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidas

a habitar minhas casas por trás das retinas

que corressem livres, cantantes, felizes

– esses meninos e essas meninas –

entre o balanço das redes e a colheita das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

 

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

– depois da lama, além do lótus –

haverá de nos caber um respirar em amor

onde ‘meus meninos e minhas meninas’

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

O eu lírico expressa no signo casa um continente que contém asas, aprisionadas na ambivalência dos parênteses, mas libertas pelas janelas do olhar, que não está doente dos olhos.  A imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais projetados nas asas do desejo da refração. A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. Os elementos telhados, chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência, o telhado metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na vida do homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo Bachelard. Sem ela, a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa.  Mas os meninos e as meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de estrelas.  O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos sentidos podem oferecer.  O corpo metamorfoseia-se expressando o sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de toda essa 'minha gente'.”   Por fim, a integração com a mãe Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.   

A casa cosmológica no poema de Nic Cardeal está em luta, em ação terrena pelo acolhimento social dos vulneráveis. Bachelard diz em seus devaneios que uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores.  No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve-o. O filósofo reafirma que o ser deveria reinar numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece, diz ele, que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens materiais. Para além das metafísicas, o poema de Cardeal denuncia a vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um sistema que se mantém às custas de graves, medonhas injustiças sociais.  O lúcido anseio, desejo de libertar as crianças da precariedade material, em dialógicos cruzamentos artísticos e cósmicos faz coro com a música Comida, dos Titãs  diversão, arte e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.  

 

INSPIRAÇÃO

                                             Patrícia Cacau

Mulheres

somos iguais em tudo que é invisível aos olhos.

E nas lágrimas nos encontramos.

Nada é tão banal

E o pouco é tão importante quanto o essencial

Um universo em fios

unindo-se para reconstrução do grande ventre de sustentação

da divina mãe.

Eu sou porque muitas foram,

Tu serás e outras serão após.

Recebi e agora entrego o que foi por herança.

Permanece aquele que se entrega.

Olhado pra ti, me vejo cada vez mais mulher.

E o que antes foi solto agora está ligado.

Passado e presente reconectando com o futuro.

Seja um ser que reconhece o seu papel nessa fazedura.

Independente do corpo que habita.

Não se distraia, seja MULHER!


O poema de Cacau é um canto ancestral da sororidade. A casa aqui se desenha na ciranda das mulheres sábias. Seus versos conjugam, evocam todas las madres, as muitas mães para que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata o conceito da mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais ser abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza profunda, “a que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas as agulhas de espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e o descanso, para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229).  A mãe selvagem é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual também ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração: embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria (seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por você”.  O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos, ideias, sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das mulheres sábias em pleno processo de criação.          

 

MATRIOSKAS 

                              Cátia Castilho Simon

 

Antes de mim

Houve um rosário

de sim

 

Em clausuras

ad infinitum

formatado

 

No eterno

jogo

das matrioska

 

As Matrioskas russas constituem-se de uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). São pintadas com cores vivas e desenhos variados. A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matriona. A imagem das Matrioskas pode ser entendida como pequenas casas, metáfora onde habitam nossas ancestrais. O poema de Simon pode ser compreendido no jogo de ressonâncias, que se dispersam nos diferentes planos de nossa vida no mundo; e a repercussão, que nos convida a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A morfologia das bonecas, o oco das ressonâncias das matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão, ao aprofundamento de uma escuta ancestral e o repensar de nossa própria existência. A exuberância e a profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da ressonância e repercussão reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado.  Mas a imagem atinge as profundezas antes de emocionar a superfície.          

Para compreensão dos consentimentos, forjados na clausura, é necessário o restabelecimento da intimidade com a natureza instintiva. A metáfora das Matrioskas nos revela o aprendizado das histórias das quais fazemos parte, não existem fora de nós. Imaginemos uma longa história pela porta de escuta de cada uma das Matrioskas, responsável por novas gerações de mulheres. A última geração representada pelo eu lírico que se define “Antes de mim” denuncia o enclausuramento ad infinitum, mas a própria denúncia do rosário de consentimentos, abre canais através das mulheres. É uma forma de luta da mulher selvagem para reerguer suas descendentes, por mais que sejam proibidas, silenciadas, podadas e enfraquecidas, torturadas, rotuladas de loucas, perigosas e de outros depreciativos, elas voltam à superfície. É o que revela o ser pungente da linguagem poética de resistência do feminino selvagem. Essa imagem, que a leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente nossa; enraíza-se em nós mesmas.  Como almeja o saudoso poeta e semiólogo Décio Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa linguagem; expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e uma devir de nosso ser.     

 

SÉCULOS

                                    Flavia Ferrari

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso, que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer, sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua, prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse latifúndio.       


ALCATEIO-ME

                           Marta Cortezão


uma alcateia me habita

multitudinária presença

que, em noite de lua cheia,

me devora e me expande

me dilacera e me liberta

me uiva e me assume

alcateia-me

em espetáculo ritualístico...


a loba já não corre

pode vislumbrar

o lume dos anseios 

Pode apreciar e uivar poesia

aos cantos cinzas do mundo

gozando em alcateia


O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação pura dos versos de Alcateio-me.      

O poema realiza uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo. Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios.  Pinkola assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz.   Outro ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos, um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.      

 

ORAÇÃO

Francis Mary

 

Rasga meu peito depressa

Planta na minha terra

Árvores fortes a me enraizarem.

 

Dá-me de beber da seiva

Que alimenta as abelhas.

Desperta-me com o tecido das maritacas

em seus gritos.

 

Liberta-me nas corridas dos veados

Solitários nas estradas.

Pinta-me com o colorido alegre das araras

E me acalma com as águas dos igarapés.

 

Joga em meu colo, em minha sombra, a luz.

Acorda a minha vontade de amar

e no rio do amor incondicional

inteiramente ser e navegar!


A ORAÇÃO de Mary nos apresenta a imagem da casa como um grande habitat natural. A poética do espaço se configura na dialética do grande e do pequeno, nas experiências sinestésicas com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta, sem o intermédio das ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A imensidão no poema encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso da natureza, mas a relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus valores ontológicos, a dialética do interno e do externo, a impressão da imensidão fica impregnada em nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima e integrada dos movimentos das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam sobre nossos sentidos: ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas generosas das imagens sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta civilizatória e reivindica seu habitat natural; a integração profunda com a mãe terra; a necessidade de restabelecer o contato profundo com natureza selvagem. Existe aí o desejo de desapegar-se do mundo da superfície, onde reina soberano o ego civilizado.    

O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o sagrado.  Acordar a vontade de amar é um pedido para o restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza, deslizamento.   

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ESTÉS, Clarissa. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.     

 





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domingo, 12 de dezembro de 2021

POESIA NA REDE: REFLEXOS, POR FLAVIA FERRARI



POESIA NA REDE|01

REFLEXOS

Por Flavia Ferrari

 

A música de Gilberto Gil, Pela Internet, canta versos que em 1996 foram transmitidos pela internet, algo inovador no Brasil. “Criar meu website/ Fazer minha homepage/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada e um barco que veleje...” Desta forma, a música e a poética de Gil inauguraram algo que hoje é muito corriqueiro: diariamente criamos, recebemos, ouvimos e publicamos muito pela rede.

 

Todos os dias, ao acessar minha página na rede social, me deparo com colegas poetas que transmitem poemas que recebo como se fossem presentes; as criações poéticas que chegam até mim pela rede me emocionam, inspiram e me incentivam a criar. Foi através da rede que conheci o trabalho de várias autoras que hoje acompanho e admiro. Poder comentar, curtir, estar próximo delas e criar laços, mesmo que virtuais, é o lado muito bom da internet.

 

A poesia já vem com asas, mapa de navegação, gps e satélite acoplado. O poema tem a capacidade de atravessar o tempo, gerações e ficar “impresso” nas nossas memórias, no papel, em arquivo digital e nos nossos dizeres, já que vira e mexe elaboramos versos de improviso quando dizemos algo e, de repente: “Que lindo, parece poesia”.

         

Finalizo com um poema de Jéssica Iancoski, autora contemporânea, idealizadora do Toma Aí Um Poema, que a rede me trouxe e permitiu que nos transformássemos em parceiras de trabalho e amigas.

 

Para ouvir o podcast, clique AQUI.


ESPELHO

{Jéssica Iancoski}

 

em pé parada

em frente

ao espelho

encaro-o

 

olho-o

e não me vejo

encaro o espelho

 

se sou antiga ou jovem

menina mulher ou homem

não me importa

todas essas perguntas

são sempre tortas

 

tento descobrir

qual o sentido

incutido no vidro

na moldura

na parede ou

na porta

 

todo léxico é vazio

e toda realidade é delírio

tudo se modifica pela memória

os reflexos mudam com a história

 

mas o espelho

o vidro

a moldura e

a porta

ficam e

atravessam a trajetória

*_*    *_*    *_*    *_*    *_*

    

    Sobre Jéssica Iancoski: publicou em várias antologias e revistas, nacionais e internacionais. Teve o poema “Rotina Decadente” reconhecido pela Academia Paranaense de Letras, aos 16 anos. É idealizadora do Toma Aí Um Poema – o maior podcast lusófono de declamação de poesias e, também, revista literária digital. Nasceu em Curitiba/Paraná em 1996.

 


 

MOMENTO COM GAIA: Poesia em tempos de pandemia|77




Momento com Gaia/77


Esse projeto, de autoria da poeta Janete Manacá, nasceu em 16 de março de 2020, com a chegada da Pandemia causada pelo novo Covid-19. Por se tratar de algo até então desconhecido, muitas pessoas passaram a desenvolver ansiedade, depressão e síndrome de pânico. Com o desejo de propiciar a essas um “momento poético” no conforto dos seus lares, toda a noite é enviado, via WhatsApp, um áudio com poesias de sua autoria para centenas de pessoas do Brasil e de outros países. E estas são replicadas pelos receptores. Acompanhe o poema abaixo:


Por Janete Manacá




Para ouvir o PODCAST clique AQUI


Encontro com a paz


ansiei loucamente pela paz

sobrevoei ao meu redor à procura

infelizmente nada encontrei


fui buscar junto aos amigos

em cada canto da cidade

nos bosques, nos parques


tentei encontrar na música

naveguei junto às poesias

peregrinei em tantas igrejas


entre perfumes dos jardins

em volta das cachoeiras

nas correntezas dos rios


sobre as verdejantes montanhas

nas paisagens do pôr do sol

no brilho da estrela guia


e quanto mais eu a buscava 

mais longe dela eu me encontrava

tropeçando nos próprios pés


então fiz uma viagem ao meu interior

como quem se entrega à sede de ser

e encontrei a paz na simplicidade de viver




sábado, 11 de dezembro de 2021

NAS TEIAS DO POEMA XIV: ENLUARADAS E A POÉTICA DO ESPAÇO



 

NAS TEIAS DO POEMA XIV: ENLUARADAS E A POÉTICA DO ESPAÇO

                    Por Marta Cortezão

As artes e a literatura são importantes e precisam ser incentivadas porque oferecem beleza e, também, espaço de reflexão sobre as desigualdades sociais e as injustiças que nos cerceiam. São ferramentas para sonhar um mundo melhor.

{Regina Dalcastagnè, em entrevista à Revista Tantas-folhas}

 

Durante os dias 03, 04 e 05 de dezembro/2021, o Movimento Literário Feminino Contemporâneo realizou o 1º FLENLUA, o Festival Literário de Lançamento Enluaradas, onde celebramos a Deusa Palavra Viva em estado de alquimia poética: o livro Coletânea Enluaradas II: uma Ciranda de Deusas (Sarasvati Editora, 2021). O 1º FLENLUA fortaleceu a filosofia enluarada de que somos um coletivo, onde nós, escritoras contemporâneas, construímos um “espaço de reflexão” para pensar a palavra, o nosso fazer literário,  a nossa condição feminina, os porquês de nossas inquietações, a arte como um todo e “as desigualdades sociais que nos cerceiam”.

Hoje, o episódio 14º do Nas Teias do Poema quer falar de nosso fazer literário, tendo como pano de fundo várias das reflexões feitas pelas autoras enluaradas no 1º FLENLUA; reflexões que nos fizeram/fazem mergulhar na importância de nós, autoras contemporâneas, nos reconhecermos também pensadoras de nossa arte, vez que tomamos consciência de que o maior poder que temos é saber quem somos; somos mulheres, poetas que comungam da poética do abraço, da utopia de um mundo melhor. Somos a continuidade de todo um Sagrado Feminino que nos precedeu e nosso instrumento de luta é a palavra. Deixo, a seguir, um pequeno recorte do que nos disseram (durante o 1° FLENLUA) as poetas enluaradas sobre este Movimento Literário Feminino Contemporâneo, o Enluaradas:

“trazer cada vez mais mulheres para a escrita, para a publicação, segurar na mão, cirandar [...] é parte bastante importante da militância feminista que, para mim, é uma forma de estar no mundo [...] A nossa situação como mulheres é complexa (digamos assim, para não dizer triste), no mundo inteiro. Todo o espaço que a gente tem é um espaço ganho, é lutado, nada nos é dado e nada continua a não ser pela nossa luta. [...] Este é meu lugar de mulher, é o lugar de todas as mulheres. Quem não for feminista que não use calça comprida, que devolva o passaporte, que devolva a carteira de motorista, que não vote, porque tudo é fruto desta luta.”

{Maria Alice Bragança (RS), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}


“O que eu percebo nesse grande movimento, em que as mulheres, sobretudo nesse processo criativo da literatura, das artes, é essa necessidade de se colocar mesmo como protagonistas. Eu percebo neste projeto essas dimensões muito atadas, muito “dialogizadas”, que é a questão do estético, dessa procura do processo criativo, inovador, constitutivo e também a questão social, ética, moral, no momento de distopias, de isolamento, de pandemia, de refluxos, de bandeiras do social.”

{Isa Corgosinho (PB), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}

 

“Estou aqui para falar com que força surgiu esse movimento, porque ele já nasceu empoderado e empoderando [...] E de poetas, num estalar de dedos, nós viramos deusas, as deusas da poesia. E isso mostra o quanto o Projeto Enluaradas veio para nos fortalecer nesse meio literário, para fortalecer a nossa escrita e a nossa poética.”

{Marina Marino (SP), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}

 

“Talvez a gente nem tenha noção do que é que nós estamos fazendo dentro desse coletivo, agora uma coisa eu tenho certeza, ele veio para fazer a diferença, eu não estou falando de vaidade, eu estou falando de necessidade da gente buscar sim o arquétipo dessas deusas que há muito tempo adormeceu [...] (O Projeto Enluaradas) vem com afetos, as inclusões, os acolhimentos e traz à tona a poética que nos habita. É um trabalho bem socrático, a maiêutica que reconhece que você tem dentro de você o conhecimento, só precisa de alguém para ajudar nesse parto de luz.”

{Janete Manacá (MT), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}

 

“Estou muito feliz por fazer parte deste movimento [...] (que) tem levado o trabalho de todas nós, conhecidas, desconhecidas, sem distinção. Isto é realmente o que eu chamo Literatura, que é dar oportunidade a todas, não só a uma parte, como se considera a elite,”

{Ana Mendes (Suíça), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}

 

“Lembrei da menina mulher que fui e quanto faria a diferença se eu tivesse encontrado mãos acolhedoras e agregadoras como nós temos agora e, para mim, não foi só um livro a mais, eu recebi a certeza de que é possível um mundo novo onde cada mulher, assumidamente poeta, entende o que é entrar numa ciranda, dar as mãos [...] dividindo a força, e todas sem medo de expor sua fragilidade e grandeza nesse universo de poesia”

{Vania Clares (SP), Abertura do FLENLUA, 03/12/2021}

 

“Eu sinto que eu pertenço à essa família, que eu encontrei o meu lugar, poeticamente falando, e isso é tão raro hoje em dia [...] não sei se elas (Marta e Cacau) têm a dimensão da história que elas estão fazendo na arte contemporânea, mas elas estão deixando um legado pós-moderno, reunindo o que há de melhor das escritoras que compõem esta coletânea.”

{Aline Galvão (AM), Mesa 1 do FLENLUA, 03/12/2021}


“A luta só começou; a gente já consegue votar, já consegue dirigir, já consegue escrever com nosso próprio nome, mas ainda tem muito que se lutar, e os nossos espaços vão ser ocupados por nós e pela próxima geração porque uma hora nós também seremos legado da próxima geração.”

“Não quero a literatura só para mim, eu preciso de um coletivo, eu preciso de mulheres que girem comigo, eu preciso de mulheres que tenham esse sentimento de não querer a literatura só para si, as oportunidades só para si.”

{Patrícia Cacau, Mesa 2 do FLENLUA, 04/12/2021}

 

“Esse projeto [...] me diz muito, me diz demais. Eu também me confesso não feminista, no sentido mais ativo dessa palavra, mas porque eu acho que não me foi dada essa oportunidade que eu vim a ter quando conheci esse projeto. Isso para mim representa muito”

{Dalva Lobo, Mesa 2 do FLENLUA, 04/12/2021}

 

“A palavra Ciranda tem tantos significados, assim como passagem do tempo, aquilo que vai passando, o transcurso dos dias, na ciranda dos dias. E a primeira acepção da palavra, se você vai para o dicionário [...] ciranda é uma peneira grossa que serve para joeirar, separar os materiais, as impurezas [...] Eu acho que nesta Ciranda com tantos significados, nos faz tirar as impurezas da vida, aquilo que não serve mais [...] que caia por terra”

{Rosangela Marquezi (PR), Mesa 2 do FLENLUA, 04/12/2021}

 

“Nós sabemos que exclusão é uma questão de patriarcado, segregação é uma questão de patriarcado, concentração de riqueza é uma questão de patriarcado e nós precisamos, mulheres, todas nós somos maioria, ter consciência do nosso papel. É muito importante essa consciência começar a explodir dentro de nós e nos fazer realmente participativas e transformadoras [...] Que as mulheres pensem muito, repensem, estudem, participem de lives, penetrem mesmo na discussão política tão em voga e que veio à tona com uma força muito grande depois do golpe que vivemos, para que vocês votem certo, conheçam seus candidatos, se aprofundem na política. Tudo é também uma questão política [...] A poesia é uma ferramenta de transformação [...] é uma ferramenta política.”

{Teresa Bendini (SP), Mesa 4 do FLENLUA, 04/12/2021}

 

“Eu trabalho com a temática das mulheres há mais de 20 anos [...] e me encontrar com esse projeto (Enluaradas), para mim foi assim uma luz mesmo no meu caminhar, porque essas produções coletivas de mulheres, elas oportunizam um conjunto de vozes silenciadas. Nós somos tantas mulheres que, individualmente, não conseguiríamos publicar [...] essas escritas que são revolucionárias e aqui eu quero retomar, na minha fala, a fala de nosso amigo Sidnei que acho que foi muito propícia mesmo, toda vez que uma de nós constrói um verso, compõe um verso, grita esse verso para a humanidade, uma algema do patriarcado se quebra porque nós, mulheres, trazemos a revolução na nossa poesia, nas nossas vozes, somos nós com os nossos poemas, com a nossa sensibilidade que vamos construir um mundo mais humano.”

{Heliene Rosa (MG), Fechamento do FLENLUA, 05/12/2021}


           E para o Nas Teias do Poema de hoje, teremos a alegre e poética companhia das poetas enluaradas:

NELI GERMANO reside em Porto Alegre/RS/Brasil. Arquivista aposentada. Curso Superior (Incompleto) em Letras e Serviço Social pela ULBRA Canoas/RS. Participação em oito antologias, poemas publicados em jornais e revistas alternativos de cultura (Gente de Palavra, Entreverbo e Todas Escrevemos) e tem um livro solo, Casa de Infância. Integra o Coletivo Mulherio das Letras.

CARLA GOSSUIN-AZEVEDO é Luso-Suíça, nasceu em Angola, passou por Portugal, mas é a Suiça há mais de 25 anos o seu país de adoção. Embora escreva desde a adolescência, é somente a partir de 2015 que entra no universo literário nacional e internacional, tendo participado em mais de 50 antologias. Foi premiada várias vezes pelos seus trabalhos. É Diretora-adjunta da Helvetia Edições. Assina os seus trabalhos com o pseudónimo de: CARLA DE SÀ MORAIS. 

PATRÍCIA CACAU, atualmente vive em Fortaleza/ CE, é empreendedora e ativista social, incentivadora do Mulherio das Letras Ceará, Áustria e União Europa. Escreve desde a adolescência, sua escrita nasceu no coletivo Mulherio das Letras Europa. Idealizadora do Projeto Enluaradas. Participou de coletâneas/antologias no Brasil e Europa. Livro individual Quintais (In-finita/PT, 2020). 

MARTA CORTEZÃO nasceu em Tefé/AM, mas mora em Segóvia/ES desde 2012. É escritora, poeta, tradutora, trovadora, ativista cultural, idealizadora dos projetos Enluaradas e Tertúlias Virtuais. Tem obras publicadas em antologias, tanto nacionais como internacionais; Livros de poesia Banzeiro manso e Amazonidades: gesta das águas (Penalux, 2021).

Aguardamos você lá! E não esqueça de que pode baixar nossas coletâneas clicando nos links abaixo:

 

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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

MULHERES & TRAJETÓRIAS: Anna Liz Ribeiro recebe Prêmio UBE (RJ)/2021

 



ESCRITORA LUZIENSE, ANNA LIZ RIBEIRO, É PREMIADA EM CONCURSO INTERNACIONAL DE LITERATURA

 

A escritora e professora da Rede Estadual e Municipal de Ensino, Ana Elizandra Ribeiro (Anna Liz), foi premiada no Concurso Internacional de Literatura 2021, promovido pela União Brasileira de Escritores – UBE, Rio de Janeiro. A primeira solenidade de premiação acontecerá dia 09 de dezembro, as 16h, em formato on-line, logo será marcada a cerimônia presencial que ocorrerá no Rio de Janeiro.


Ella: repertório amoroso / Anna Liz. – Guaratinguetá, SP: Penalux, 2020.


Anna Liz, como é conhecida no meio literário, ficou em terceiro lugar no Prêmio Alejandro Cabassa, na categoria crônica, com o livro “Ella – repertório do cotidiano”. O Prêmio é considerado um dos mais importantes do segmento no Brasil. No Maranhão, já foram premiados nesse concurso, escritores como Ferreira Gullar, Nauro Machado, Salgado Maranhão, Paulo Rodrigues, Luiza Cantanhêde.

Sobre a obra

Ella – repertório do cotidiano é um livro de crônicas curtas sobre o universo da mulher, sobre as estradas, igarapés e rios de Santa Luzia também. Histórias ora engraçadas, ora reflexivas. Tratam-se de textos leves e agradáveis mas também fala de dores e superações. Como diz Luiza Cantanhêde; “Anna explora o universo feminino, sendo ela protagonista de sua história ou dando voz a outras mulheres”.

 

Sobre a escritora 

Anna Liz é de Santa Luzia, Maranhão. Poeta, cronista e professora. Tem participação em quase 100 antologias lançadas no Brasil e em diversos outros países, além de já ter publicado oito livros solo. Organizou duas antologias com obras de 25 escritoras maranhenses. Ao longo de sua trajetória recebeu vários prêmios de Literatura de entidades relevantes no campo literário no Brasil e em outros países.  Faz parte de algumas Academias e Núcleos Acadêmicos de Letras e Artes no Brasil, Chile, Argentina e Portugal e, atualmente, é presidente/coordenadora da Associação de Jornalistas e Escritoras Brasileiras, coordenadoria Maranhão/AJEB-MA

 

Tudo começou com a avó

A escritora diz: Minha infância foi embalada por músicas folclóricas, brincadeiras na rua, como roda, cair no poço, dizer quadrinhas,  convivência com outras crianças e principalmente  com a minha avó materna, dona Neném, que me contava histórias fantásticas, que me faziam tremer e emocionar. Minha avó vendia café no mercado e sempre depois da feira, ela comprava um “romanço”. À noite, depois do jantar, nós nos sentávamos na calçada para eu ler o cordel. Minha avó era analfabeta, mas foi ela que despertou em mim o prazer e a descoberta da leitura. Eu era pobre, a casa da minha avó era rica, não havia muitos livros, mas havia muita prosa e poesia.




quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

ELES LEEM ELAS: A LANTERNA NO LABIRINTO, POR ROGEL SAMUEL



 ELES LEEM ELAS|09

Mapa das Narrativas nos Romances de Milton Hatoumde Francisca de Lourdes Souza Louro

A LANTERNA DO LABIRINTO


Em “Mapa das narrativas nos romances de Milton Hatoum de Francisca de Lourdes Souza Louro. -- Manaus, 2021” há uma cartografia, um passeio pelo mundo das ruas, das portas da linguagem, do som da crítica e da imaginação, as algaravias, as falas, as cartas, as identidades.

            O livro vai tecendo um tapete de significações, explicitações, com a vantagem de que vai ficando cada vez mais interessante à medida que avança, de forma que em vez de ser cansativo, acadêmico,  árido, repetitivo para o leitor mais alarga mais aumenta os interesses hermenêuticos, aquelas confissões, murmúrios, fofocas, recados, sintomas, cartas, como disse alguém: “Conta logo, mas devagar...”, que o prazer está nos cantos escuros do texto, e detalhes, n“as mocinhas do viúvo Talib, não as filhas: as outras, que ele fisgava perto dos armazéns. Na casa dos Reinoso era muito pior, Zana ficava sem fôlego, me pedia para contar tudinho. Quando a confusão começava, os empregados ligavam o gerador para abafar os guinchos dos macacos e os gritos de Abelardo Reinoso”.

            “Em que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?

            Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tampouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Recherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É certo que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase musical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembrança, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação material".  A obra de Proust é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos. (Deleuse: “Proust e os signos”).

            Esse aprendizado o faz a leitura que a Lourdes Louro faz (por exemplo) das mulheres que emergem dos romances, principalmente daquelas invisíveis, as “escravas”, crias, prostitutas. É na teia dos igarapés, da cidade flutuante, das falas, dos esquecidos, da algaravia. O aprendizado da vida amazônica. Sua tristeza, seu capitalismo periférico. Como em Proust, “é baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos”.

        Pode-se dizer que Lourdes Louro construiu um romance fragmentado sobre os três romances do Milton através de “pistas sobre sua produção, cartas, fotos, conversas com os mais velhos, especialmente os avós, o pai, muitos artifícios para dar os nós nos fios que amarram o texto”.

            Escreveu Hatoum:

        “Decidi, então, perambular pela cidade, dialogar com a ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço (p. 122). Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Crescemos ouvindo histórias macabras e sórdidas daquele bairro infanticida, povoado de seres do outro mundo, o triste hospício que abriga monstros. Foi preciso distanciar-me de tudo e de todos para exorcizar essas quimeras, atravessar a ponte e alcançar o espaço que nos era vedado: lodo e água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco-íris e recortadas por rasgos verticais...”

            De acordo com Ricoeur e Gadamer, a hermenêutica vê os textos como expressões da vida social fixadas na escrita, através de fatos psíquicos, de encadeamentos históricos. Sua interpretação consiste, então, em decifrar o sentido oculto no aparente, e desdobrar os diversos graus de interpretação ali implicados. Na realidade a hermenêutica é compreensão de si, mediante a compreensão do outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor se compreende a si mesmo, interpretando o texto.

            A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade, mas compreender não significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula uma superação: Ela se quer uma teoria e uma arte, fazendo da leitura uma nova criação, e dela se exige uma reflexão que leve à ação.

            A hermenêutica questiona a evidência, recusando-se a explicar completamente o fato interpretado. Uma interpretação definitiva deve ser uma contradição em si mesma, diz Gadamer. Pois, mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado, é perguntar pelos interesses que o guia.

         “Vemos nas cores da grande tela amazônica, os quadros narrativos que o autor imprime e apresenta aos leitores, como se observa nos três romances”, diz a Lourdes Louro.

            Ele conclui que “neste texto, mas por acharmos ser a mais exata para fechar a análise pode-se constatar que estudar os três romances nessa “perquirição” foi uma aprendizagem abalroada (em que) eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas ou visgado na penumbra dos quartos (RcO: p. 51) onde percebi e tive o prazer de (re)ver nas histórias hatounianas o (re)viver da vida amazônica.”

        O termo hermenêutica, num sentido mais radical, não quer dizer arte da interpretação, mas a tentativa de determinar a própria interpretação, a própria compreensão. E assim, a hermenêutica torna-se interpretação da compreensão ou “círculo hermenêutico”, pois toda compreensão apresenta uma estrutura circular: “Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar.” O mundo, portanto, é o que se encontra no horizonte da compreensão. Nosso mundo é o que se encontra no horizonte de nossa compreensão, mas podemos alargá-lo, mediante a compreensão do outro, realizando então uma fusão de horizontes.

       O que deve ter norteado a dra. Lourdes Louro é compreender a nossa cidade de Manaus, estabelecendo e abrindo um mapa de sentidos, um roteiro no labirinto, do entrecruzamento de vidas, de relatos, de sofrimentos, um quadro que se amplia no espaço, no tempo, na profundidade dos sentimentos – os nichos e escondidos, as gavetas – as tensões, amizades, e tudo que constitui a vida, esse mistério. As estórias daqueles personagens naquela cidade única, cercada de floresta, rios e lagos. Através dos textos do Milton procurou o valor de sua própria vida, de sua humanidade, que é o que faz a hermenêutica. Toda pergunta busca essa impossível resposta nos fragmentos das recordações (e assim o livro é fragmentado).

        O livro de análise e leitura é propositalmente costurado em temas e lemas, em fatos e motes, em fantasmas, medos, vultos, sombras, pois em certa época (que eu conheci) não se podia andar à noite sem levar uma lanterna.

           Essa lanterna é o que busca o rumo do nosso destino.


Sobre Francisca de Lourdes Louro:

        De Manaus/ AM. Possui Pós-Doutorado em Sociedade e Cultura da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Mestrado e Doutorado em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra-Portugal. Especialista em Literatura Moderna e Pós-Moderna pela UFAM, Graduação em Letras – Língua e Literatura Portuguesa pela UFAM. Professora de Língua e Literatura Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC/AM). A autora escreveu mais de uma dezena de artigos sobre a produção literária de autores amazonenses  que estão disponíveis em versão eletrônica pela internet. Em 2019, publicou o livro Manaus de dois rios, gentes e matas: literatura e geografia dos sentimentos, em parceria com José Aldemir de Oliveira. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP e do Projeto Poesia, Prosa e Cinema no Amazonas: 1996-2016, ambos desenvolvidos na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sob a coordenação da professora Dra. Rita Barbosa de Oliveira. É Membro do Grupo de Pesquisa – Estudos Semióticos: Literatura, Cultura e outras Artes (GES), do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Coordenado pela Dra. Socorro Viana de Almeida. Publicou em parceria: com a Dra. Socorro Viana de Almeida :IMAGENS AMAZÔNICAS - Estudos de Semiótica, Poética e Hermenêutica.


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