LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA|06
COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL
Por Isa Corgosinho
O
livro de Nic Cardeal Costurando ventanias
me acompanhou na volta de João Pessoa para Brasília, as suas páginas vieram
impregnadas da maresia de Jampa e agora experimentam o ar seco e a energia revitalizante
do cerrado candango. Tive que interromper a leitura várias vezes em virtude da
organização desse retorno. A cada retomada, experimentei novos sentidos em suas
particulares costuras, por isso fui tomada pelo desejo de escrever sobre elas.
Nas
costuras da prosa, as ventanias da poesia
O
escritor Julio
Cortázar,
ao refletir sobre as características do conto, afirma que escrever contos e
poemas é algo parecido, quase um estado de transe. Esse estado seria provocado
pela escolha de um material significativo. O livro Costurando ventanias conjuga-se no hibridismo de gêneros, ao
associar acontecimentos da realidade (crônicas) com elementos fictícios
(contos), desvelando, assim, uma misteriosa propriedade de irradiar alguma
coisa para além dele mesmo. Irradia ventanias que informam e conformam um
breviário da condição humana, principalmente no que se refere ao embate do ser
e o cosmo, o ser e o tempo, a materialidade das coisas dissolvidas pelas
ventanias da temporalidade. É ainda o contista argentino que nos diz que a
gênese do conto e do poema assemelha-se, porque nasce de um deslocamento
provocado pelo estranhamento, um deslocar-se que altera o regime “normal da
consciência”.
Enxergamos,
ainda sob o ponto de vista de Cortázar, um perfil de contista, uma mulher que
repentinamente cercada pela imensa algaravia do mundo, comprometida em maior ou
menor grau com a realidade histórica que a contém, escolhe um determinado tema
e faz com ele um livro de contos e crônicas. O tema parece se impor
irresistivelmente por cima ou por baixo de sua consciência, e a quebra do
silêncio da folha em branco vem pela música, e tudo aquilo que a eleva como
linguagem das subjetividades.
Dito isso,
é importante ressaltar as afinidades dos contos de Cardeal com a poesia. A
poesia é um dos mais importantes destinos da palavra, a palavra poética nesse
livro não se limita a exprimir ideias ou sensações apenas, almeja, na tomada de
consciência da linguagem, se lançar ao futuro. Com notável precisão, Gaston
Bachelard declara que a imagem
poética, em sua novidade, abre um povir da linguagem.
A
prosa de Ventanias é tecida em três redes
aéreas que modulam a sua arquitetônica: Eu
quero a música que mora dentro da flauta; Então proponho um faz-de-conta que me avizinha: paradoxos dessa dança
chamada vida; Mas o tempo passou muito... passou ligeiro. A função poética
nos contos e crônicas é marcada pela projeção do ícone sobre o símbolo, pela
presença de códigos não verbais como a música, a dança, as imagens visuais
sobre a linguagem verbal.
A
poesia presente nos contos de Cardeal chega aos nossos ouvidos energizada pela
melopeia, assim como a entende Ezra Pound. Se trouxermos, como
aliada, a experiência de sua obra poética, não seria inadequado afirmar que as
frases nesses contos e crônicas estão carregadas, acima e além de seus
significados comuns, de marcantes qualidades musicais que dirigem o propósito
ou tendência desses significados, basta escutar a temática que abre os
primeiros contos Eu quero a música que
mora dentro da flauta: O som inaudível, o sopro, as batidas do coração que
ressoam na caixa torácica, no som que repercute nas vértebras.
Lista
de desejos
Eu
não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota
escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção
– e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a
moradora da flauta. (CARDEAL, p. 15,
2021)
A
musicalidade é composta pela exploração das paranomásias, das aliterações, assonâncias,
trocadilhos nos títulos e, principalmente, nos versos rimados, ritmados no
interior dos contos.
Títulos de contos
Tralhas fora dos trilhos de dentro
Os olhos chuvosos de Deus
Do barro ao berro
Fragmento do conto A linha
Empenho-me,
assim, no ofício de pescar palavras no vasto mar que navega, para lá e para cá,
dentro do meu peito, feito da mesma água que invade meus olhos fundos, bem
distante da superfície do mundo. (CARDEAL, p. 14, 2021).
Sobre
a influência da melopeia, a prosa de Nic comparece nas fronteiras da música, e
a música aqui talvez seja a ponte entre a consciência e o universo sensível não
pensante, ou mesmo não sensível. Ainda
nesse conto, a contista afirma que os poemas a descrevem, que os poemas são a
alma, as palavras seu corpo. Sim, pois que seus poemas transmitem uma vertente
peculiar de sensibilidade, são mais que ideias transmitidas, são imagens que
devem ser sentidas, tocadas na corporeidade das palavras.
Ao
lado da função poética, concorre a função metalinguística que comparece em lances
certeiros de autoconsciência do fazer literário, metapoética. Na composição do
sensível conto A palavra, todas as
características do sentimento são expressadas pelos movimentos dos sentidos e
pelos traumas da ausência, da distância, das separações, da perda vivenciadas
pela infância e pela vida afora. Todas as metonímias, eufemismos são empregados
para dissipar a inalcançável compreensão dos sentimentos gerados pela
separação, pelo luto ou pelo amor. Tudo circunda essa coisa, palavra esquisita,
multifacetada, adjetivada, jamais nomeada. Apenas ao final, a palavra que, pela
dor se vela, enfim se desvela – saudade – a palavra pronunciada em coro pela aldeia tinha o dom de dividir e curar
a dor, como uma hóstia em forma de pão, alimento coletivo do amor.
A
gente tinha um nome para essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos
até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que
pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor.
Porque
a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra
esquisita... (CARDEAL,
pp. 55-57, 2021)
No
conto (A)porte de poesia as funções
poética e metalinguística andam entrelaçadas, enamoradas, ocupando singular equidade
de posição e isonomia de valor. O leitor pode se deliciar com os jogos metalinguísticos,
a começar pelo próprio título, que é um verdadeiro slogan pelo desarmamento. A
prosa encena o nascimento da paz no corpo potente da poesia.
Sou
a favor do porte de poesia. Carregá-la desde a semente, até que a palavra infle,
insufle, percorra o caminho do ventre, saia do ninho, alce voo em direção ao
céu do meu/teu/nosso coração. Ali aportada a poesia, que ela absorva a empatia,
a boemia, a leveza ou a entropia, a expressão, a expansão, a exuberância da
própria vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a poesia na direção da
alma! (CARDEAL, p. 61, 2021)
Nas
ventanias dos devaneios
As
camadas sonoras e imagéticas da música e da dança em Costurando ventanias compõem, junto a outras figurações, notável
relação com a Poética do devaneio, de
Gaston Bachelard,
mas é precisamente no capítulo V Devaneio
e cosmo que encontramos a trilha interpretativa. Nessa obra encontramos
verdadeiras constelações de imagens de elevada cosmicidade: fogo, terra, ar e
água estão disseminados em outras imagens que fazem da leveza o contraponto da
petrificação, do pesadume do mundo (pássaros, ninhos, borboleta, árvores, céu,
estrelas, astros, asas, chuva, lágrimas, chapéu, horizontes, barro, sementes
etc), revelando extraordinária imaginação criativa.
É
a ênfase no devaneio operante que nos interessa na travessia interpretativa. O
devaneio cósmico que experimentamos nos contos de Cardeal é aquele ao longo do
qual o universo sensível se transforma em universo de opostos complementares, cuja
ambivalência das sombras soma-se à luz irradiada da poesia. Os contos trazem
fragmentos do universo: a unidade da beleza se concretiza nos elementos água,
ar, fogo e terra. O cosmos em Ventanias
é constituído de palavras grávidas. Segundo Bachelard:
Um
devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitário numa companhia
aberta a todos os seres do mundo. O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo
lhe fala. Amando as coisas do mundo, aprendemos a louvar o mundo: entramos no
cosmos da palavra. (BACHELARD, p. 179, 1996).
Na esteira de Bachelard,
Nic Cardeal reafirma em sua obra o clímax do devaneio cósmico, que é o de
constituir um cosmos da palavra. É pela função poética da linguagem que seus
leitores são seduzidos, arrebatados da inércia, conduzidos por uma espiral de
louvores que transforma o universo sensível em universo de beleza.
A
leveza, num mundo cada vez mais empobrecido no falar, no expressar, saturado
por imagens que poluem e avassalam nossa visão, parece se sustentar em palavras
primeiras, em imagens primeiras. Os poetas dos devaneios cósmicos, para calar o
barulho ensurdecedor, recobrem o mundo com a musicalidade das palavras que
sonham. É assim que um sonhador de palavras reconhece, numa palavra do homem
aplicada a uma coisa do mundo, uma espécie de etimologia onírica, como nas
belas frases poéticas:
Pois,
de que será feita a poesia, senão da veia aorta que nos conduz ao peito – do
lado esquerdo de dentro – na emoção da palavra gasta, apontada sobre o alvo da
flecha? Depois do alvo, da flecha, por certo que estarão felizes os operadores
de sonhos a recortar palavras – exaustas – em algodão: poesia qu´inda flutua,
aportada ao cais da alma.
Finalmente
então, depois desse tempo cinza, haverá um lugar no refazer do amor. N´alguma
estrada aberta, onde plantações extensas de esperanças, por ordem dos poetas
(esses operadores de sonhos a portar palavras!) - serão colhidas aos montes em
novas eras. (CARDEAL, pp.61-62, 2021)
É
extraordinário o encontro das duas poéticas no que se refere o agenciamento de
palavras cósmicas, imagens cósmicas que costuram os vínculos do homem com o
mundo, mas precisamente da mulher com o mundo. Nas epifanias, a poeta nos
arrebata com as duas tonalidades, humana e cósmica, que ao se encontrarem se
transfiguram:
Eu
tenho um céu que mora em mim. Ele amanhece e anoitece vez por outra. Gosta de
salpicar-se de estrelas, receber algum sol de visita, tem na lua uma amiga
confidente pra tristezas escondidas. [...]
No
meu céu de estimação os horizontes são fios compridos, feito linhas em novelos,
que se estendem desenhando lindos montes, que passeiam sorrateiros, inventando
as paisagens dos meus sossegos.
Eu
não sei o que dá em mim para ter um céu inteiro inquilino dos meus anseios. Mas
eu amo de paixão esse meu céu de estimação. Nele eu penduro estrelas cadentes e
sei que um dia elas germinarão desejos inusitados transformados em viventes.
Vou seguir acreditando. Porque um céu de estimação é muito mais repleto de
infinitos, e os infinitos são maiores, são inteiros. (CARDEAL, p.28, 2021)
O
olhar fenomenológico da contista nos convida a vivenciar os paradoxos de uma
tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas da
natureza e, ao mesmo tempo, a confrontá-las com o mundo em plena crise com um
modelo de civilização que nos empurra para a barbárie.
Não
sei dizer se essa rota será promissora... é o meu delírio do verbo resistir no
mundo. Como a lira que delira nas cordas até encontrar o sentido de ser instrumento.
Do verbo ‘ser delírio’ (‘de-lira´): a palavra primeira da lira ao dizer o som
do mundo.
Sem
o GPS das minhas preces a ninguém, serei tão somente um arado ressoando o chão
- suprema ausência de sentido nesse
imenso mundo cão. (CARDEAL, p. 27, 2021)
O
confronto acontece no interior da linguagem, por meio de uma consciência
crítica criativa. Dentro das imagens poéticas pode estar o germe de um mundo,
ou como diz Cortázar, essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do
individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana. Todo conto que
se lança no tempo grande da literatura, é como uma semente onde dorme a árvore
gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória.
Árvore
sementeira
Às
vezes me lembro de um tempo em que fui árvore. O momento em que a semente tocou
o chão, adormeceu na terra quente, germinou tão de repente, esticou raízes em
seu ventre. O tronco subindo em direção aos céus, galhos seguindo livres para
todos os lados, folhas verdes abrindo-se em leques sem receios. (CARDEAL, p.
29, 2021)
No
conto In-finitudes, o eu que narra
contém infinitos particulares que se comunicam entre si e com o mundo:
Mesmo
assim, seguirei descosturando a linha. Desfazendo os nós. Até que todos nós
sejamos sonhadores de novos gestos – e uma luz se acenda na cabeceira de uma
outra história que se avizinha.
Sonhar
é o que importa – ainda que seja um bom retrato em branco e preto pendurado na
parede da imaginação. Porque comporta um infinito inteiro. Abaixo. Acima.
Dentro. Além das beiras. Bem profundo. Ao abrir as portas de um novo mundo. (CARDEAL,
p. 20, 2021)
Bachelard
assevera que uma imagem poética nova pode ser o germe de um mundo, o germe de
um universo imaginado diante de um devaneio de um poeta. Mas Nic Cardeal não se
molda totalmente ao perfil do sonhador de Bachelard, que se entrega de corpo e
alma à imagem que acaba de encantá-lo. A personagem que narra em primeira
pessoa nos contos é parte encarnada das imagens cósmicas, com as quais opera
suas metáforas, seus dialogismos da parte no todo e do toda na parte. O
embelezamento se faz nessa relação sistêmica da gênese primordial do planeta,
do sistema solar, da Via Láctea:
De
passagem
Estou
à procura da melhor parte, em que em mim se acende a palavra propícia para os
sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura
terrena – do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da
teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo antes
de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra também sou
aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou folha
verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que vim.
Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim. (CARDEAL, pp. 18-19, 2021)
A
cosmicidade das imagens nos convida para experiências simbióticas com o mundo,
para além de sua materialidade palpável. Não exatamente um lugar onde o
sonhador possa descansar tranquilo, mas onde certamente se sentirá largo,
expandido em todos os elementos terra, fogo, ar e água. Fica patente o devaneio dos ares em todos os
seus redemoinhos, bem como as peripécias de uma dialética que vai do universo
líquido ao universo aéreo.
Chuvas guardadas
Já não sei se amo mais as chuvas externas ou internas.
Ambas solicitam rios. Águas que correm em direção aos mares.
As águas do mundo querem seguir.
Minhas aguas internas pedem passagem.
Se chorei mares outrora, por ora só rio rios. Entre um
e outro, meu barco vazio transborda de mim. (CARDEAL, p. 31, 2022)
Os olhos chuvosos de Deus
Eu
imaginava que as águas caíssem dos céus porque Deus também sentia dores
intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes.
[...]
Naquele
dia aprendi a lição, não por Deus, mas por minha própria solidão a fazer
desaguar o coração – foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas
internas de amor nem Deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das
lágrimas.
Hoje
chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove, lembro dessa minha imaginação de
outrora – quase criança – e posso ver aquele meu Deus imaginário todo
encharcado, espiando d´alguma janela do céu, para ver se estendo meus olhos
molhados de tanto enxugar sua dor. (CARDEAL, pp. 32-33, 2021).
Ao
alçar as asas imaginárias, o devaneio do voo nos abre um mundo, portal de
desmesurada abertura, o céu é a janela do mundo, e a poeta nos ensina e nos
convida a mantê-la aberta de par em par:
Há
dias em que me sinto exausta. Pudesse deixar, por um dia apenas, ‘a roupa de
viver’ pendurada no varal, tomando um ar, um vento, ao sol, sairia apenas com a
alma (e suas asas), a passear entre as árvores, as folhas, as flores e as
águas! Ah, seria tão delicioso esse dia!
Um dia de leveza, sutileza, calmaria, em que ela – eu – a alma, compreenderia,
enfim, a amplitude, o sentido, o motivo da vida, para muito além dessa
concepção limitada e tão paradoxal que nos foi imposta nesse tão raso objetivo
de existir...
Confesso.
Não sei dizer por que às vezes cansa. Quero minhas asas. E um agosto diáfano,
com gosto de brisa. ‘Porque eu continuo a
acreditar em anjos, sei que eles existem. ‘ (CARDEAL, p.43, 2021)
No
inspiradíssimo conto intitulado Lista de
desejos, observamos uma importante declaração de poética, ao mesmo tempo sentimos
sopro alusivo dos versos da Flauta-vértebra,
do altissonante Vladímir Maiakóvski.
Sim,
sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro
lado da lua. Esse lado da rua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra
batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em
perfurados sapatos.
Essa
é a minha pauta – a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta.
(CARDEAL, p. 15, 2021)
Quando
leio essas frases poéticas (ou versos?), lembro-me de passagens do filme Easy Rider,
ou reminiscências da geração beat,
e sua vertente na contracultura dos anos 50.
Mas os parágrafos seguintes nos rementem ao repouso projetado pelas
imagens cósmicas que correspondem, seguindo o alegre paladar Bachelardiano, a
uma necessidade, a um apetite. Ao invés do mundo como vontade de representação,
o mundo como apetite. É o que demonstra o eu narrativo: uma relação
antropofágica com o mundo, sem outra preocupação a não ser o desejo de
mordê-lo, devorá-lo:
Eu
não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de
vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu
quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro
do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva,
o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida,
a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o
riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.
Eu
não quero a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio
escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo
favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente – da
flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021).
O
paladar se mostra em potência: cada apetite, um mundo. O sonhador bacherladiano
participa então do mundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo,
substância densa ou rara, quente ou doce, clara ou cheia de penumbra segundo o
temperamento da sua imaginação. E a poeta Nic Cardeal certamente vem na pele do
sonhador, vem transfigurar em belas imagens o mundo exaurido de realidade, só assim
pode compartilhar a saúde cósmica com seus leitores, porque nas imagens
cósmicas parece que as palavras do homem infundem energia humana no ser das
coisas:
Ao
corpo que me leva de um lado ao outro eu sou deveras grata. Não fosse ele, que
seria de mim – solta no ar. Diáfana, fora da gravidade, rarefeita, quem sabe
líquida – a olhar por olhos inexistentes a vida a vagar desde a terra removível
até a semente?
Este
corpo que me carrega – a minha casa de viver a vida – porção considerável de
resistir no mundo até a última gota do sopro de vento que há de virar chuva
fininha: garoa miúda lavando a calçada, por onde outrora pisou um dia, feliz,
este corpo que me carregou de um lado a outro das minhas esperanças tão ávidas
de existência... (CARDEAL, p. 17, 2021).
De
mãos dadas com a tese de Bachelard, enfatizamos que, no grande como no pequeno,
o devaneio é uma consciência de bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa
imagem da casa ou da casa almejada pela nossa alma, estamos no bem-estar de um
repouso, é o que a narradora de ventanias propõe a si e aos seus leitores.
As
fadas? Ficaram do lado de lá. Os duendes continuam no jardim. Quando chegar
minha hora de voltar para casa, eles sabem muito bem que serão outra vez
visíveis as minhas asas. Afinal, de que são feitos os sonhos? Eles são feitos
de medidas de eternidade, costurando ventanias em asas de borboletas. (CARDEAL, p.44, 2021)
Podemos
assegurar que as imagens extremamente significativas dos contos e crônicas
atuaram como uma espécie de abertura, projetando nossas inteligência e
sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento literário. Ao
ecoar Shakespeare nos seus versos, Nic Cardeal costura suas ventanias em nossa
memória. Como assegura Cortázar, os contos que perduram em nossa memória são
aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta que a do seu mero
argumento. Ainda é o contista argentino que nos assevera que um bom tema é como
um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas
vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos
revela sua existência. E é assim que me
sinto: girando maravilhada nos devaneios das ventanias cósmicas.
Referências
bibliográficas
POUND, Ezra. A
arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José
Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39.